Cristina:
Não creio ser correcto dizer que a FSSPX sempre aceitou o Concílio Vaticano II. Não o aceita como dogmático, mas nem sequer como pastoral; não lhe reconhece legitimidade, por considerar que ele significou o triunfo da heresia na Igreja. Os seus membros não escondem o desejo de ver anulado o Concílio. O Concílio Vaticano II é visto por eles como uma ruptura com a Tradição (basta ver
o título desta página). Parece-me que tens uma visão muito romântica da FSSPX...
Faz uma leitura aprofundada do que se publica na net, escuta ou lê o que diz Msr. Williamson e verás o quão longe estão (e cada vez mais longe) de aceitar o Concílio.
A notícia de que daqui fizeste eco é menos notícia do que parece (a forma como o «Paco Pepe» escreveu o «post» original faz-me levantar algumas dúvidas; pelo menos em alguns aspectos importantes.
Entretanto, com ou sem levantamento das excomunhões, tenho a forte convicção de que a situação dos lefebvrianos ou filolefebvrianos
vai mudar bastante a médio prazo, porque a actual situação é insustentável.
Por vários factores:
a) Sedevacantismo latente, divisões internas e liderança titubeante. As posições praticamente sedevacantistas de Msr. Williamson e de muitos padres da FSSPX (todos eles suspensos) são um obstáculo enorme. Nota que embora eles digam que não são sedevacantistas, a percentagem daqueles que cultivam uma atitude de fundo sedevacantista é muito alta. Msr. Williamson disse já que Ratzinger é pior que Lutero e profere a cada passo frases bombásticas contra o Papa. Msr. Fellay às vezes parece-me demasiado inconsistente e falto de carisma, dividido entre pressões internas de sentido contrário. Ainda por cima, às vezes mete-se em considerações tão absurdas que dificilmente pode ser levado muito a sério por alguém que leia/oiça o que ele diz com alguma distância. Por exemplo, uma pessoa com a responsabilidade que ele tem não devia dizer que Bento XVI tem uma visão hegeliana da liturgia e da história recente da Igreja (porque o Papa diz que a forma ordinária e extraordinária do rito romano podem enriquecer-se mutuamente). Com uma asneirada destas, que os pobres blogueiros andam a repetir à exaustão, mostra que nem sabe muito de filosofia nem lhe parece estar muito atento ao pensamento do Papa. De resto, uma coisa que me parece muito preocupante é o
fraco nível intelectual que grassa na FSSPX. Creio que há nela alguns bons canonistas, mas teólogos?... Compreende-se que haja uma atitude defensiva, mas custa compreender que a criação teológica tenha parado. A Igreja não foi assim nos séculos passados! Mais um sinal de que a FSSPX não é representativa do que tem sido a Igreja ao longo dos séculos. Temos na FSSPX uma espécie de heresia da «Sola Traditio», com um mau entendimento (parcial e unitaleral) do que é a Tradição viva da Igreja.
As divisões internas por causa do «Summorum Pontificum» põem muitos ainda mais em atitude de defesa. De resto, os tradicionalistas comportam-se cada vez mais como um saco de gatos. Os blogues tradicionalistas deixam bem clara esta situação. Outro aspecto curioso é notar que a esmagadora maioria dos escritos da blogosfera tradicionalista é para dizer mal disto e daquilo. Fica-se com a forte impressão que nada de positivo os move; apenas o «contra». Por exemplo, são raríssimos os temas de fundo de espiritualidade. Cada um escolhe os seus «inimigos de estimação» e toca a debitar «posts», libelos, anátemas e insultos. E, não raro, uns contra os outros. A fragmentariedade de «subpertenças» e «fidelidades» e a forma como se guerreiam é outro sinal de que algo está mal nesta «Dinamarca» tradicionalista... Também não ajuda nada o estilo beligerante, tantas vezes associado ao facto de muitos tradicionalistas mais radicais serem «ex» qualquer coisa: ex-protestantes (é o caso de Msr. Williamson), ex-carismáticos, etc...
b) Factores externos: um mundo em aceleração cada vez maior. Há uns tempos ouvi e gravei um sermão do Msr Williamson numa celebração do Crisma. É um monumento. É um sermão que me fez pensar que a situação da FSSPX é cada vez mais complicada na sua atitude de entrincheiramento contra o mundo. Nesse sermão ele criticava os fiéis da FSSPX que têm empregos intimamente ligados à mentalidade do mundo actual: computadores, bancos, meios de comunicação social... Dizia ele -- e não lhe falta alguma razão -- que o trabalho habitual com estes meios «do mundo» ajuda a apegar-se a eles... Ora, isto toca um problema real vivido por muitos fiéis filolefebvrianos:
uma divisão interna, uma esquizofrenia espiritual, e a necessidade de viver uma espécie de catolicismo antigo em privado, para poderem sobreviver. Ora,
isto significa assumir um aspecto totalmente moderno-contemporâneo: a relegação do plano religioso para o foro pessoal e íntimo! Há muito fiel lefebvriano que durante a semana «disfarça» ser uma pessoa como as outras, trabalhando como bancário, jornalista de um qualquer jornal corrente, informático, etc., tem algumas práticas piedosas pessoais e depois, ao fim-de-semana, anda dezenas de quilómetros para ir a uma missa em rito tridentino celebrada por um padre da FSSPX. A «esquizofrenia espiritual» é então cada vez maior: um discurso religioso que usa as categorias da sociedade «civil» da Idade Média (e nisto não ponho qualquer conotação negativa) e uma vida civil contemporânea que não «encaixa» com o discurso religioso usado.
Esta «esquizofrenia espiritual» (que não é exclusiva dos tradicionalistas, mas neles é especialmente complicada) é notória em vários tradicionalistas que se regem por uma inexplicável duplicidade de vida, que às vezes parece atingir níveis patológicos. [Não estou aqui a considerar a questão em termos propriamente morais.] Ora, com a aceleração cada vez maior da «História», o problema torna-se mais premente e então isto tende a «rebentar» ou a «enquistar». No primeiro caso, pode acontecer na FSSPX o que aconteceu na Igreja de uma forma mais ampla entre finais dos anos 40-50 e 70 do século passado; no segundo caso, acentua-se a atitude de «corte» com o «mundo», aumentando os caracteres sectários. Provavelmente teremos as duas coisas: uns descobrirão a História (foi a grande descoberta do Concílio Vaticano II), outros endurecerão as suas posições, avançando alguns para posições mais claramente sedevacantistas.
c) Quarenta anos começa a ser muito tempo. O passar dos anos torna cada vez mais insustentável a situação. Quarenta anos é muito tempo e começam-se a desenhar pontos de não retorno. A desafectação real dos (filo)lefebvrianos em relação ao Papa reinante, qualquer que ele seja, vai cultivando uma atitude, minando a pertença real à Igreja. Por isso, se nos próximos anos não se chega a uma solução, dificilmente alguma vez teremos a FSSPX reconciliada com a Igreja de Roma.
Alef