Bispos portugueses pedem maior rigor aos políticos
Crise financeira do país preocupa a CEP
Para resolver o problema do défice das contas públicas, as medidas anunciadas pelo governo “ameaçam penalizar ainda mais aqueles que já são mais sacrificados, pela situação de pobreza ou de falta de trabalho, pela doença e pela desajustada carga fiscal” – denuncia a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) sobre «Um olhar de responsabilidade e de esperança sobre a crise financeira do país».
O documento, publicado hoje (29 Junho), refere também que não compete aos bispos pronunciar-se sobre questões técnicas de política económico-financeira mas “parece-nos oportuno relembrar alguns aspectos da doutrina social da Igreja, que devem inspirar o comportamento dos cristãos e de quantos procuram o melhor para o país”.
A situação actual necessita de realçar as “exigências do bem comum” e “a prevalência do bem de toda a colectividade sobre interesses pessoais ou corporativos”. Esta busca do bem comum supõe “lucidez de discernimento e generosidade de comportamentos” – descreve o documento. Aos cidadãos é pedida ajuda na busca de soluções “quer pagando os impostos justamente distribuídos, quer empenhando-se criativa e solidariamente no implementar de soluções”.
O Estado tem, “como primeira responsabilidade, administrar com rigor os bens públicos, constituídos pelo contributo de todos nós e deve fazê-lo garantindo bens essenciais, dinamizando e regulando a iniciativa criativa de pessoas e grupos” – sublinha a Nota Pastoral da CEP. Se a estatização da economia e dos serviços não é solução também “o não é a privatização de tudo. É preciso discernir continuamente a complementaridade entre a função pública e a iniciativa privada, na certeza de que um justo equilíbrio entre essas funções poderá ser portador de resultados positivos na busca de equilíbrios económico-financeiros” – aconselha o documento «Um olhar de responsabilidade e de esperança sobre a crise financeira do país».
No sentido de ajudar a alterar a situação actual, a nota da CEP refere que não haverá solução “se determinados valores, como a generosidade, a criatividade e a responsabilidade do bem comum, não forem veiculados pelo sistema educativo”. E adianta: “este não pode ser monopólio do Estado, mas tarefa de toda a comunidade, em que as famílias, as associações, as igrejas podem ter um papel relevante”.
Em jeito conclusivo, os bispos pedem aos portugueses para não terem medo “dos momentos difíceis, pois eles constituem, tantas vezes, alicerce de um futuro melhor. Ele só pode ser o fruto da competência e da generosidade”.
Luís Filipe Santos,
«Agência Ecclesia», 2005-06-29
Um olhar de responsabilidade e de esperança sobre a crise financeira do país
Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa
1. As medidas anunciadas pelo Governo da Nação, em ordem a resolver o problema do défice das contas públicas do Estado, originam um período de austeridade e exigência, geram contestação social, suscitam visões particularistas de pessoas e grupos na defesa dos próprios interesses, ameaçam penalizar ainda mais aqueles que já são mais sacrificados, pela situação de pobreza ou de falta de trabalho, pela doença e pela desajustada carga fiscal.
Não compete aos bispos pronunciar-se sobre questões técnicas de política económico-financeira. Mas porque se trata de um problema grave que afecta toda a comunidade nacional, que condiciona o presente e compromete o futuro, de incontornáveis dimensões éticas, parece-nos oportuno relembrar alguns aspectos da doutrina social da Igreja, que devem inspirar o comportamento dos cristãos e de quantos procuram o melhor para o país.
2. Antes de mais parece-nos claro que estamos num momento em que é preciso realçar as exigências do bem comum, isto é, a prevalência do bem de toda a colectividade sobre interesses pessoais ou corporativos. A busca do bem comum supõe lucidez de discernimento e generosidade de comportamentos. Essa salvaguarda do bem comum sublinha a responsabilidade de todos, na consciência de que a harmonia da sociedade será irremediavelmente comprometida pela defesa de interesses particularistas.
As soluções encontradas e propostas têm de ser globais e não particulares, privilegiando aquelas que não se limitam a resolver aspectos imediatos do problema, mas são portadoras de solução a médio e longo prazo, como o são, por exemplo, o investimento na inovação tecnológica, uma economia geradora de emprego, uma educação para a liberdade responsável, a análise aprofundada das causas da pobreza e a responsabilização social. O contributo de todos para o desenvolvimento colectivo, faz de cada cidadão protagonista das soluções, quer pagando os impostos justamente distribuídos, quer empenhando-se criativa e solidariamente no implementar de soluções.
3. A presente situação leva-nos também, a reconsiderar o papel do Estado na solução dos problemas da sociedade. A opinião pública reage espontaneamente na linha de exigir ao Estado a solução de todos os problemas. Ora não é essa a função do Estado numa sociedade plural e democrática, que só progride com a iniciativa e a responsabilidade de todos. O esforço a desenvolver será prolongado, requerendo o contributo dos partidos políticos, parceiros sociais, empresas, instituições da sociedade civil e cidadãos.
O Estado tem, como primeira responsabilidade, administrar com rigor os bens públicos, constituídos pelo contributo de todos nós e deve fazê-lo garantindo bens essenciais, dinamizando e regulando a iniciativa criativa de pessoas e grupos. Do mesmo modo que a estatização radical da economia e dos serviços não é solução, também o não é a privatização de tudo. É preciso discernir continuamente a complementaridade entre a função pública e a iniciativa privada, na certeza de que um justo equilíbrio entre essas funções poderá ser portador de resultados positivos na busca de equilíbrios económico-financeiros. Na sua função de gerir os bens públicos, o Estado deve exercer a autoridade democrática, garantindo a justeza das opções e a moralidade na administração, elemento decisivo para a credibilidade do Estado e a construção da justiça social.
4. Na busca de soluções há valores que é preciso preservar: a equidade, a convergência na complementaridade e a subsidiariedade. O contributo de todos é necessário; o que se pede a cada um deve ter em conta a sua situação peculiar, não pedindo o mesmo a pobres e ricos, não descurando os doentes e as pessoas dependentes, não fragilizando as famílias, já tão atingidas por fenómenos como a desagregação ou endividamento insustentável. Em todas as políticas, mas de modo particular nas políticas de austeridade, há grupos sociais que precisam de uma atenção particular, porque quando se agravam os seus problemas, agravam-se inevitavelmente os problemas de toda a comunidade.
Problemas como o desemprego criam situações angustiantes. Estamos conscientes de que os próximos tempos conduzirão a uma profunda mudança de mentalidades a exigir estímulo a quem cria oportunidades, a requerer invenção de pronta solidariedade e a conduzir a uma opção pessoal pela sobriedade, terreno realista, contrário a promessas impossíveis.
5. Não haverá solução de médio e longo prazo se determinados valores, como a generosidade, a criatividade e a responsabilidade do bem comum, não forem veiculados pelo sistema educativo. E este não pode ser monopólio do Estado, mas tarefa de toda a comunidade, em que as famílias, as associações, as igrejas podem ter um papel relevante. Uma educação radicalmente estatizada não serve uma comunidade plural, onde as responsabilidades e iniciativas são partilhadas.
Um sistema educativo adaptado à sociedade que queremos ser, vencendo os problemas presentes em ordem a uma harmonia futura, comunicará modelos de vida a aspirações justas na concepção de felicidade e de bem-estar, que não dependem apenas de factores económicos. Sentimos que uma das causas dos problemas que atravessamos são padrões de vida, desajustados do nosso estádio de desenvolvimento e pelos quais se pautam revindicações consideradas justas. Começa a ser um lugar comum afirmar-se que o país está ou quer viver acima das suas possibilidades. Um pouco mais de modéstia nos objectivos desejados ajudará a construir caminhos sólidos de progresso, assentes na objectividade daquilo de que somos capazes. E a história mostra-nos que somos capazes de muito.
6. E, finalmente, queremos deixar uma palavra de esperança. Análises catastróficas sobre o País e sobre a União Europeia em nada ajudam a serenidade e a generosidade, essenciais para construir o futuro. Não tenhamos medo dos momentos difíceis, pois eles constituem, tantas vezes, alicerce de um futuro melhor. Ele só pode ser o fruto da competência e da generosidade.
Apelamos a todos os católicos para que promovam, dentro das possibilidades ao seu alcance, objectivos do bem comum nacional e mobilizem as instituições em que se inserem para uma identificação operativa dos meios, transparência de critérios, rigorosa aplicação na busca das soluções e permanente avaliação dos resultados.
Em particular, desafiamos as Obras sociais da Igreja para uma maior “fantasia da caridade” e para que redobrem os seus esforços de solidariedade com os mais empobrecidos, designadamente proporcionando-lhes intervenção na sociedade democrática que a todos cabe construir.
Convocamos todos os católicos para dar realismo à esperança, com o seu compromisso inovador, criativo, impulsionando formas de planeamento e gestão transparente, participada, cooperante; aproveitando a oportunidade para aprendermos a viver numa cidadania mais esclarecida, criteriosa, responsável e solidária.
Fátima, 23 de Junho de 2005
apud «Agência Ecclesia»