Caro mrBlue:
Bem-vindo a este fórum.
Algumas notas de esboço a uma resposta...
Ter fé
não significa prioritariamente ter uma estupenda «folha de serviço», cheia de virtudes e sem mancha. É, sim, saber em Quem acreditamos (acreditar = dar crédito), confiando que, mesmo da nossa experiência de fragilidade e pecado, Deus pode tirar muito proveito. Quantas vezes é precisamente a experiência de pecado que leva a grandes mudanças de vida... O que não significa que a «luta» termine ou que ela signifique perda de fé... S. Paulo sentiu esta luta de uma forma muito forte e era tudo menos um homem sem fé. E dele temos frases tão claras como estas:
- «[...] o querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico» (
Rom 7:18-19);
- «Ele [o Senhor] respondeu-me: "Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza". De bom grado, portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. [...] Pois quando sou fraco, então é que sou forte» (
2 Cor 12:9).
De uma outra forma: a vida de fé não se pode reduzir a uma determinada conduta levada mais ou menos voluntaristicamente, só porque queremos ser santos por nossa conta e risco. O
voluntarismo da vida de fé depressa será confrontado com alguma «queda do cavalo». E se tal queda for ocasião para nos levantarmos, já teremos dado um passo muito importante no crescimento da fé, porque então percebemos que é Deus quem conduz a nossa vida e não vamos lá pela mera boa vontade ou à força bruta do voluntarismo. Ninguem se faz santo a si mesmo. Sê-lo-emos na medida em que não colocarmos resistência ao Espírito Santo. Ele é que nos santifica. E um dos primeiros passos nesse caminho é o reconhecimento de que tudo quanto possamos fazer de bom vem-nos d'Ele. Ter esta consciência pode ser muito importante para termos uma visão verdadeiramente cristã do pecado. Diante do Deus que é Amor, arrependemo-nos e isto abre-nos a uma nova relação; diante de nós mesmos e da nossa imagem «encarquilhada» de um orgulho ferido, apenas temos remorso e o mero remorso não é cristão... [O remorso e o arrependimento são coisas MUITO diferentes.]
Isto em nada significa ser «manga larga», nem pôr «paninhos quentes» desculpabilizadores e enganadores. Pelo contrário, é um passo para a vida cristã adulta: sabemos o que queremos, colocamos os meios para isso, mas olhando para a nossa vida tal como a vê Deus... O problema é que somos sempre menos misericordiosos que Deus, mesmo em relação a nós próprios, e vivemos muitas vezes com imagens falseadas de Deus. Ah, se víssemos a nossa própria história como Deus a vê...
A tua questão sugere-me ainda outra consideração. Como em tudo na vida, aprendemos também por tentativas e erros. É verdade que, como diz o povo, «há erros que se pagam caros», que «quem brinca aos afogados se afoga» ou que «não se brinca com o fogo». Isto significa que há que ter presente que «não é tudo a mesma coisa». Mas, tendo isto presente, é necessária a humildade de ir avaliando e corrigindo. Só assim se cresce. Quem não avalia não progride. No caso concreto que apresentas, o que podem fazer é precisamente avaliar o que se passou, à luz de um critério que pode ajudar: a distinção entre o
desejar (apetecer) e o
querer, distinção que explico brevemente a seguir.
A distinção entre o desejar e o querer poderá parecer inútil a alguém ou demasiado subtil, mas cada vez me parece mais pertinente, particularmente para o difícil campo das relações ambíguas ou para as situações de «planos inclinados». Uma coisa é o
desejo momentâneo, que pode «apanhar de surpresa» (podemos ser «assaltados» pelo desejo; nesta acepção, somos passivos do desejo); está ao nível do apetite. Outra coisa é o querer. O
querer tem uma componente claramente activa; é muito mais «projectiva» e muitas vezes associa-se precisamente a um projecto, àquilo que quero da minha vida. Com um exemplo algo «banal» entende-se melhor: o Abílio, que está casado com a Bárbara, pode ter um momentâneo desejo de «curtir» com a Camila, mas dá-se conta de que aquilo que realmente QUER é respeitar e viver a sério a sua relação com a Bárbara. E em função daquilo que realmente quer mantém-se fiel à Bárbara, ao seu projecto de vida e a si mesmo. Muitas confusões acontecem porque não se distinguem as coisas, porque não se define o que se quer e então é-se levado a pensar que se quer o que simplesmente se deseja.
Colocando agora o «guizo ao gato», ambos (tu e a tua companheira) poderão/deverão ter a capacidade de «definir» aquilo que querem, cada um e os dois. À luz do que realmente querem da vossa vida e relação poderão compreender responsavelmente um percurso que poderá ter as suas dificuldades. Mas nessa altura as dificuldades já estarão devidamente enquadradas e não serão um «bicho de sete cabeças».
E dado que este assunto é apresentado num contexto de fé, parece-me de todo útil levar isto à oração, na transparência com Deus. Deixa que Deus te fale sobre o assunto... Quando se busca uma tal transparência, tudo se torna mais simples. O que não significa que deixe de ter as suas dificuldades. Mas uma coisa é ter dificuldades sabendo o que se quer, para onde se caminha e em Quem se põe a confiança; outra é andar ao «deus-dará», a «borboletear» segundo o «desejo» do momento.
Alef
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[Nota: Evidentemente, pode-se falar em desejo numa outra acepção, a que eu chamo «Desejo», com maiúscula, mas esse é outro tema, para outro lugar.]