Cara Lena:
Muito obrigado pelas tuas respostas. Para mim, não se trata de um «ping-pong», sobretudo se as perguntas-respostas forem levadas a sério, com profundidade e não como mero ripostar ao primeiro impulso. E, na medida em que outras pessoas «aproveitam» desde diálogo e nele podem participar, vamos muito para lá de um mero «ping-pong». Há, então, muita diferença entre um «ping-pong» e uma troca de mensagens pensadas com princípio, meio e fim.
Agora vamos às tuas respostas.
1. Quando te pergunto se a dignidade é um sentimento subjectivo, «trocas-me as voltas», porque não respondes ao objecto da pergunta, a dignidade, mas falas do «sentimento de dignidade». Suponho que isto não é uma escapatória, mas que, mais ou menos inadvertidamente substituíste uma coisa pela outra. Ora bem, não se trata da mesma coisa. Mesmo que a dignidade seja, hipoteticamente, um sentimento. De qualquer forma, se bem entendo, tendes a dizer que a dignidade é um sentimento, subjectivo, portanto. Mas, acabas por dizer mais do que isto, como veremos.
Ora bem, no caso de identificarmos a dignidade da pessoa humana com o seu sentimento de dignidade, esbarramos com imensas dificuldades. Por exemplo, está a dignidade e/ou o sentimento de dignidade vinculado à consciência? Suponho que dirás que sim, pois normalmente falamos de sentimentos conscientes. De alguma forma podemos dizer que
o sentimento é um tomada de consciência da forma como a realidade nos afecta.
Mas então, voltemos ao tema da dignidade em si mesma: é-se menos digno quando não existe consciência ou sentimento? Por exemplo, enquanto uma pessoa dorme, enquanto está em coma, enquanto está hipnotizada ou anestesiada… Suponho que não dirás que qualquer destas situações implica menos dignidade para a pessoa…
Por outro lado, depois de falares do «sentimento de dignidade», dizes:
Citação:«Ninguém é mais digno ou indigno pela sua condição ou actos. Considero um homem honesto tão digno quanto um assassino, apenas se afastam na moral dos seus actos. E mesmo esta depende do contexto cultural, o libertador de uma nação pode ter sido um assassino, enquanto o honesto um cobarde perante a opressão.»
Ou seja, aqui já não falas propriamente de «sentimento de dignidade», mas de um ponto de vista «externo» ao sentimento próprio. Falas de outras pessoas, da sua dignidade. Dizes até que
a dignidade de uma pessoa não depende dos seus actos ou condição. Ora bem,
pegando nas tuas próprias palavras e aplicando-as à grávida, concordarás que ela não está afectada na sua dignidade pela sua condição de estar grávida contra a sua vontade. Replicarás que sentir-se-á menos digna, mas tu mesma concedes que «ninguém é mais digno ou indigno pela sua condição ou actos».
Então, serás levada a concluir: a mulher grávida poderá sentir-se menos digna, subjectivamente, mas não o é, de facto.
Agora, podemos perguntar: o sentimento de menor dignidade, subjectivo, como dizes, é soberano? Soberano até que nível?
Aqui não podemos escapar a um problema que nos espreita há muito: a hierarquização de realidades, segundo valores.
[O tema dos valores é complexo e alguma discussão filosófica, na qual não vou entrar. Contudo, parece-me que há algo prévio aos valores e isso nota-se neste ponto. Não são meros «valores» o que está em jogo, mas sim realidades, às quais se reconhece ou não um determinado valor.]
Então, o problema é o seguinte. Uma vez que a redução da dignidade ao sentimento subjectivo é insatisfatória, como se pode dizer que o sentimento subjectivo de uma mulher será razão suficiente para abortar? Ou seja, será necessário avaliar se tal sentimento supera em dignidade o ser (humano) que será abortado. E, certamente, justificar devidamente, porque se trata de um assunto de enorme importância. Porque, ninguém pode afirmar com conhecimento de causa que não se trata de nada ou que é indiferente abortar ou não. Logo, no mínimo, urge a pergunta: e se estivermos a atentar contra uma vida humana, com a mesma dignidade que nós?
2. No meu segundo ponto escrevi:
Citação:«De que falamos quando falamos de dignidade? Em que medida uma gravidez indesejada torna uma mulher menos digna? Há critérios de dignidade?»
Não sei se compreendeste bem o que eu queria, porque a tua resposta mistura acepções diferentes de dignidade e não diz, de facto, a que nos referimos quando falamos em dignidade. Pelo menos, omites o aspecto ontológico ou «objectivo», que, a meu ver, é o determinante e o único que nos pode tirar deste «sarilho» que se está a montar. Como dizia, falas de dignidade em três acepções diferentes.
a) Na primeira dizes que «o conceito de dignidade [é] algo indissociável ao direito de exprimir o Eu e de trilhar o seu próprio caminho», pelo que «não há padrões universais para considerar o que é digno ou não». Ou seja, continuamos mais ou menos na órbita anterior, onde se situava o «sentimento subjectivo» de que falavas antes, dando-lhe agora um novo «matiz», o da «expressão do Eu». Mas aqui encontramo-nos com maiores dificuldades que no primeiro grupo de questões. Por exemplo, um bebé sente, mas até que ponto exprime o Eu? E pouco antes de nascer? E um doente de Alzheimer? Etc. Vincular a dignidade de alguém ao exercício do direito de expressão do Eu parece-me levantar dificuldades dificilmente sanáveis.
b) Em seguida, aquilo que pareceria uma ilustração do anteriormente dito, introduz, a meu ver, uma segunda acepção de dignidade. Escreves:
Citação:«Se uma gravidez for considerada por quem a vive algo contrário aos seus objectivos de vida é licito admitir que aquela mulher se sinta indigna ao carregar até ao fim um estado que não desejou para si.»
Aqui parece que a dignidade aparece vinculada à consecução de objectivos, dado que «algo contrário aos seus objectivos» pode ser vivido como indigno. Creio que este é um pormenor de grande importância, que revela, a meu ver, o modo de pensar de muita gente que defende a licitude de todo o tipo de aborto. Para esses, o aborto torna-se então necessário porque a gravidez indesejada é um empecilho à consecução de determinados objectivos. Mas vincular isto à noção de dignidade parece-me muito forçado. Para que isto tivesse sentido, ter-se-ia que ver noutros âmbitos da vida e talvez concluíssemos que somos uns desgraçados… Uma doença, um chumbo num exame, a perda do emprego, uma amizade perdida… Tantos «algos contrários» aos «objectivos de vida»! Perde-se a dignidade por isto?
c) Finalmente, introduzes outra acepção de dignidade, ao dizeres:
Citação:«O inverso também é válido... há quem considere indignos aqueles que defendem ou praticam um aborto, e os visados sentirem-se dignos na sua escolha.»
Quase parece uma «farpa» extemporânea, mas é uma acepção estranha ao que eu tenho dito aqui. Aqui a dignidade teria um sentido «moral» (espero!), mas no que me diz respeito eu não considero nem mais nem menos dignos os que defendem ou atacam o aborto. Creio que já ficou claro que não considero a dignidade um sentimento, muito embora possamos «sentir» a nossa dignidade. Mas não somos dignos porque sentimos; antes «sentimos» porque somos dignos.
3. Quanto ao meu terceiro grupo de questões, em que propunha o exercício de aplicar a lógica do teu discurso às pessoas que se julgam mais dignas que as demais, dizes que isso é soberba. Contudo, essa é uma caracterização «desde fora». Se, na tua ordem de ideias, a dignidade é um «sentimento pessoal»,
como pode um soberbo discernir que o seu sentimento pessoal é soberba? Há algum «meta-sentimento»? Por que razão no caso da grávida usamos um critério «interno» e no caso do soberbo um critério «externo»?
E ilustras:
Citação:«Eu posso pensar que sou mais digna que X, isso não significa que o seja. Y também pode achar que sou mais digna que X, o que continua a não ser garantia de coisa alguma. Todos menos X podem dizer que sou mais digna que X, e no entanto X acha-se digno. Quem está certo? A meu ver ninguém.»
Ora bem: experimenta aplicar isto que acabas de dizer à vivência subjectiva da grávida que deseja abortar. Se justificas o aborto da mulher que se sente menos digna por estar grávida, como condenar aquele que aniquila os que ele vê como competidores, que põem em causa a sua auto-estima, amor-próprio ou dignidade? Pensemos, por exemplo, nos crimes de sangue entre tantas culturas, incluindo a cigana. Usam, curiosamente, uma palavra próxima à de dignidade: honra!
Em todo o caso, nos teus exemplos introduziste um dado que pode ser perigoso: o da comparação com outrem. Chamo apenas a atenção para isso, porque, por enquanto, não tem maiores consequências. Mas não é «inocente». As tuas perguntas em termos de comparações levam-te a perguntar: «Quem está certo?». E sentencias: «A meu ver ninguém». Aqui está à vista o problema de vincular a noção de dignidade a um sentimento subjectivo! A solução para este problema é tão simples e tão complicada quanto isto:
todos os seres humanos são igualmente dignos, independentemente dos seus sentimentos, da sua auto-estima, dos seus objectivos, da sua capacidade de se afirmar… Esta é única forma de salvaguardar algo tão importante como os direitos humanos (das pessoas, já se vê), reconhecendo a todos os seres humanos iguais direitos, porque têm igual dignidade. O inverso significa metermo-nos por uma selva de desumanidade…
E da selva salvamo-nos na medida em que formos capazes de estabelecer mecanismos para defender os mais débeis, pelo critério da igual dignidade de todos os seres humanos. E isto só pode ser verdadeiramente salvaguardado na medida em que ponhamos toda a prudência, mesmo quando agimos com seres humanos nos primeiros estágios da sua vida. Num tempo em que nos preocupamos pelas gerações futuras e pelos «direitos dos animais», é uma vergonha que não tenhamos a mesma diligência para com todos os seres humanos, fazendo-nos critério absoluto de «dignidade» face aos demais.
Naturalmente, muitos dos que defendem a licitude de todo o tipo de aborto, procuram justificar tal posição dizendo que até às 10 semanas não temos uma pessoa ou mesmo um ser humano. Trata-se de uma tentativa de nadificar ou anular o ser humano segundo determinadas conveniências. Mas parece querer passar ao lado de questões fundamentais do ponto de vista antropológico: de onde «vem» a pessoa, como surge, o que a define... Mas pensar incomoda...
4. Quanto ao quarto grupo de questões, eu apontava o problema do trauma pós-aborto e a ineficácia do aborto enquanto «solução» para «repor» a dignidade da mulher. Interessa-me comentar a tua resposta no que diz respeito ao trauma pós-aborto, nomeadamente a culpabilidade. Escreves:
Citação:«Quanto aos traumas pós-aborto eles surgem pelo enorme conflicto interno que envolve a decisão, fruto de toda uma educação inoculada pelo contexto socio-cultural. Se o aborto fosse moralmente aceite pela sociedade como algo perfeitamente válido e "normal" não haveria traumas. Mas viver em sociedade é assim mesmo, nenhum de nós se pode dar como totalmente padronizado. Felizmente as sociedades mudam e actualizam-se.»
Creio que este é um elemento muito importante. Parece-me que à custa de querer «actualizar-se» se pretende passar ao lado da questão da culpabilidade, pela via da negação ou da omissão. E, a meu ver, comete-se grande violência sobre as mulheres, levando muitas vezes a um resultado oposto ao esperado. O pior é que nessa altura a mulher é descartada, fica sozinha; deixou o dinheiro e o «produto» da sua gravidez e regressa sozinha, com a «necessidade de uma justificação» que de repente se torna «vã». À clínica que lhe fez o aborto já não interessa. Este é um dos problemas mais sérios nas mulheres que abortaram que vêm pedir ajuda a entidades como as «Vinhas de Raquel». Claro, dizes, se o aborto fosse normal não haveria traumas. Mas este «se» não pode tratado com «paninhos quentes». Talvez porque o aborto realmente não é mesmo normal. [Nisso até muitos defensores do aborto parecem concordar.] Na verdade, fico com a impressão de que se tenta justificar «à força», artificialmente, algo que em si não se reveste de qualquer bondade. Em vez de querer esquecer artificialmente a culpabilidade, culpando dela a sociedade, não seria mais correcto ir às raízes mesmas da culpabilidade e tentar perceber o seu significado antropológico?
A meu ver, este ponto é crucial e fico com a impressão de que deverias voltar a pensar sobre ele. E digo isto não apenas porque me parece insatisfatória a tua resposta, mas porque as minhas piores expectativas foram ultrapassadas pela tua mensagem ao Tilleul. Aí escreves:
Citação:«Quanto às consultas de aconselhamento nada tenho contra, desde que não se tornem mini-julgamentos à porta fechada.
Espero que as equipas técnicas envolvidas sejam formadas por profissionais cujo humanismo ultrapasse a frieza do dever a cumprir, e capazes de respeitar o facto de algumas mulheres já saberem muito bem o que pretendem quando se apresentam na consulta. Quero com isto dizer que não aceito fórmulas do tipo "é pegar ao largar que a lista é longa" nem do tipo "pense bem, pois vai matar um ser humano".
Mais que isto não posso falar pois a lei ainda terá de ser aprovada e regulamentada. Considero imprudente avaliar uma lei que ainda não saiu com base no que um qualquer político diz perante uma plateia de militantes no rescaldo de uma votação.»
Devo dizer que, embora julgue perceber o que dizes, fico espantado com os termos usados. Talvez te possas explicar melhor depois desta interpelação.
- Esperas que «as equipas técnicas envolvidas sejam formadas por profissionais cujo humanismo ultrapasse a frieza do dever a cumprir, e capazes de respeitar o facto de algumas mulheres já saberem muito bem o que pretendem quando se apresentam na consulta». Pergunto: uma mulher que decide abortar está isenta «do dever a cumprir»?
- Dizes: «[…] não aceito fórmulas do tipo "é pegar ao largar que a lista é longa" nem do tipo "pense bem, pois vai matar um ser humano"». Por que razão é inaceitável dizer a alguém que quer abortar que «pense bem»? Por que razão é inaceitável lembrar-lhe que no aborto se aborta (mata) um ser humano? O facto de «algumas (sic) mulheres já saberem muito bem o que pretendem quando se apresentam na consulta» não deve fazer esquecer algo muito importante: muitas não sabem ainda muito bem o que fazer e de entre as que «sabem», muitas estão terrivelmente condicionadas na sua capacidade de discernir.
Mesmo de um acérrimo defensor do aborto eu esperaria um «discurso limpo», diplomático, do género: propomos consultas que ajudem as mulheres a aferir a maturidade da sua decisão, informá-las dos riscos envolvidos, de possíveis alternativas, etc… Mas não: um mero «pro forma» justificador.
5. Concluindo, fico com a forte impressão de que se apela a conceitos «bonitos», como o de dignidade, mas depois vemos que não estão devidamente fundamentados. Aliás, os mesmos conceitos acabam por ser empobrecidos. Pior, fica a impressão de que o desejável é não pensar muito e evitar o convite a que se «pense bem».
Em suma:
sem pensar,
sem demora,
sem dor,
sem custos,
sem culpabilidade.
Nota: com isto não digo que é exactamente assim que pensas. Seria excessivo! Apenas tiro algumas consequências do que escreves. E a conversa continua. Temos sempre a possibilidade de clarificar, rectificar, aprofundar. Pode ser proveitoso para todos averiguar com serenidade as razões aquém dos «slogans».
Alef