TEOLOGIA À ROMANA:
UMA ANÁLISE DA DEFINIÇÃO DE INFALIBILIDADE DO CONCÍLIO VATICANO I
por Fernando D. Saraví
A 18 de Julho de 1870, na sua IV Sessão, o Concílio Vaticano I sancionou a Constituição Dogmática
Pastor æternus sobre o primado e a infalibilidade do papa. O capítulo IV trata sobre a infalibilidade.
Citação:Capítulo 4: Sobre o magistério infalível do Romano Pontífice
Esta Santa Sé sempre tem crido que no próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do magistério. O mesmo é confirmado também pelo uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecuménicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade.
Assim, os Padres do IV Concílio de Constantinopla, seguindo o exemplo dos antepassados, fizeram esta solene profissão da fé: "A salvação consiste antes de tudo em guardar a regra da fé verdadeira. [...]. E como a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo que disse: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja [Mt 16,18] não pode ser vã, os fatos a têm confirmado, pois na Sé Apostólica sempre se conservou imaculada a religião católica e santa a doutrina. Por isso, não desejando absolutamente separar-nos desta fé e desta doutrina, [...] esperamos merecer perseverar na única comunhão pregada pela Sé Apostólica, na qual está sólida, íntegra e verdadeira a religião cristã".[ Fórmula do Papa Hormisdas, 11 de agosto de 515] .
E os gregos, com a aprovação do II Concílio de Lião, professaram "que a Santa Igreja Romana goza do supremo e pleno primado e principado sobre toda a Igreja Católica, primado que com verdade ela reconhece humildemente ter recebido, com a plenitude do poder, do próprio Jesus Cristo, na pessoa de S. Pedro, príncipe dos Apóstolos, de quem o Romano Pontífice é sucessor; e assim com a Igreja Romana, mais do que as outras, deve defender a verdadeira fé assim também, quando surgirem questões acerca da fé, cabe a ela o defini-las".[ Da profissão de fé do Imperador Miguel Palaeólogo, lida no segundo Concílio de Lião, sessão IV, 6 de julhode 1274].
E finalmente o Concílio de Florença definiu "que o Romano Pontífice é o verdadeiro vigário de Cristo, o chefe de toda a Igreja, o pai e o doutor de todos os cristãos; e que a ele conferiu Nosso Senhor Jesus Cristo, na pessoa de S. Pedro, o pleno poder de apascentar, reger e governar a Igreja universal" [ Concílio de Florença, sessão VI.].
Com o fim de satisfazer a este múnus pastoral, os nossos predecessores empregaram sempre todos os esforços para propagar a salutar doutrina de Cristo entre todos os povos da Terra, vigiando com igual solicitude que, onde fosse recebida, se guardasse pura e sem alteração. Pelo que os bispos de todo o mundo, quer em particular, quer reunidos em sínodos, seguindo o velho costume e a antiga regra da Igreja, têm referido a esta Sé Apostólica os perigos que surgiam, principalmente em assuntos de fé, a fim de que os danos da fé se ressarcissem aí, onde a fé não pode sofrer quebra. [São Bernardo, Carta 190 (Tratado a Inocêncio II Papa contra os erros de Abelardo) (PL 182, 1053D)]. E os Pontífices Romanos, conforme lhes aconselhavam a condição dos tempos e as circunstâncias, ora convocando Concílios Ecuménicos, ora auscultando a opinião de toda a Igreja dispersa pelo mundo, ora por sínodos particulares ou empregando outros meios, que a Divina Providência lhes proporcionava, têm definido como verdade de fé [tudo] aquilo que, com o auxílio de Deus, reconheceram ser conforme com a Sagrada Escritura e as tradições apostólicas. Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos. E esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos: Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos [Lc 22, 32].
Foi, portanto, este Dom da verdade e da fé, que nunca falece, concedido divinamente a Pedro e aos seus sucessores nesta cátedra, a fim de que cumprissem seu sublime encargo para a salvação de todos, para que assim todo o rebanho de Cristo, afastado por eles do venenoso engodo do erro, fosse nutrido com o pábulo da doutrina celeste, para que assim, removida toda ocasião de cisma, e apoiada no seu fundamento, se conservasse unida a Igreja Universal, firme e inexpugnável contra as portas do inferno.
Mas, como nestes nossos tempos, em que mais do que nunca se precisa da salutífera eficácia do ministério apostólico, muitos há que combatem esta autoridade, julgamos absolutamente necessário afirmar solenemente esta prerrogativa que o Filho Unigênito de Deus dignou-se ajuntar ao supremo ofício pastoral.
Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que:
O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.
Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, - seja anátema.
Dado em Roma em sessão pública, confirmado solenemente na Basílica Vaticana no ano de nosso Senhor de mil oitocentos e setenta, no décimo oitavo dia de Julho, no vigésimo quinto ano de Nosso Pontificado.
Dada a importância desta definição, vale a pena analizar os seus fundamentos. Vamos por partes:
"Esta Santa Sé sempre tem crido que no próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do magistério. O mesmo é confirmado também pelo uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecuménicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade."
Segundo a declaração do Vaticano I, a posse por parte do bispo de Roma do supremo poder do magistério é algo que foi sempre confirmado pela sé romana, demonstrado pela uso constante da Igreja e pelos Concílios Ecuménicos. Se se tomar seriamente estas palavras, o "supremo poder do magistério" deve achar-se facilmente reflectido na literatura patrística e nos cânones conciliares. No entanto, não ocorre tal coisa.
Desde logo, a sé episcopal de Roma teve, pelo menos desde finais do século I, uma preeminência que se baseava tanto no facto de corresponder a uma Igreja grande e estabelecida na capital do Império, como ao martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo ali. E, especialmente a partir do século V, com Leão Magno, os bispos de Roma adquiriram maior autoridade e estenderam a sua influência. No entanto, uma coisa é o primado de honra que nunca lhe foi negado, e a autoridade correspondente, e outra é que a Igreja Católica Antiga reconhecesse um "supremo poder do magistério" (para não falar de infalibilidade) à sé romana em sentido amplo ou ao seu bispo em particular.
Evidência aduzida de Concílios Ecuménicos
Em continuação está uma lista dos sete primeiros concílios ecuménicos, que são reconhecidos tanto pela Igreja de Roma como pelas Igrejas do Oriente:
1. Primeiro Concílio de Niceia (325)
2. Primeiro Concílio de Constantinopla (381)
3. Concílio de Éfeso (431)
4. Concílio de Calcedónia (451)
5. Segundo Concílio de Constantinopla (553)
6. Terceiro Concílio de Constantinopla ou Trulano (680-681)
7. Segundo Concílio de Niceia (787)
Se se observar esta lista que se estende por mais de quatro séculos, chama de imediato à atenção que o primeiro concílio geral que se cita a favor da doutrina proposta seja do século IX. Que então se cresse na infalibilidade do bispo de Roma não provaria nem remotamente que tal noção fosse uma crença constante e universal da Igreja antiga. Porém, como mostrarei em continuação, nem sequer pode demonstrar-se tal coisa numa data relativamente tão tardia.
Por causa das disputas de jurisdição entre o bispo de Roma e o patriarca Fócio de Constantinopla, o imperador Basílio o Macedónio (867-886) convocou um concilio ecuménico. O imperador acordou com o papa, na ocasião Adriano II (867-872) que os legados deste presidiriam o concílio, e que a assembleia assinaria uma declaração reconhecendo o primado do bispo romano, chamada
Liber satisfaccionis. A parte pertinente deste documento diz:
Citação:Primordial salvação é guardar a regra da verdadeira fé e não desviar-se de modo algum das Constituições dos Padres. E, pois, não pode passar-se por alto a sentença de Nosso Senhor Jesus Cristo que disse: «Tu és Pedro...» (etc), tal como foi dito se comprova pela experiência, pois na Sé Apostólica se conservou sempre imaculada a religião católica ... [seguem anátemas] ... Mas aceitamos e aprovamos também as epístolas todas do bem-aventurado papa Leão, que escreveu sobre a religião cristã, como antes dissemos, seguindo em tudo a sé Apostólica e proclamando as suas constituições todas. E portanto, espero merecer achar-me numa única comunhão com vós, a que prega a Sé Apostólica, na qual está sólida, íntegra e verdadeira a religião cristã; prometendo que no futuro não hei-de receber entre os sagrados mistérios os nomes dos que estão separados da comunhão com a Igreja Católica, ou seja, que não concordam com a Sé...
(Denzinger # 171-172)
Duas coisas devem notar-se desta declaração. A primeira é que não fala de maneira explícita da autoridade própria do bispo de Roma, já que se refere à "Sé Apostólica". Em segundo lugar, mesmo se se admitisse que tal autoridade está implícita na declaração, é inegável que o documento não diz uma palavra acerca da infalibilidade do bispo romano. A razão é óbvia: no século IX ninguém cria que algum bispo pudesse ser infalível, como o indica o ainda recente exemplo de Honório, bispo de Roma condenado por heresia no século anterior pelo III Concílio de Constantinopla.
E como se isto fora pouco, o documento que o Vaticano I invocou como primeira testemunha da crença universal e constante em que o "supremo poder do magistério" residia nos bispos de Roma foi "aprovado" em circunstâncias extremamente duvidosas. Não foi submetido a consideração para seu debate e votação no concílio, mas imposto aos bispos como um requisito para poder participar. O bispo Joseph Hefele, máxima autoridade católica do século XIX na história conciliar, observou:
Citação:Todos os bispos gregos tiveram que subscrever esta fórmula para ser admitidos no concílio. Porém, depois se arrependeram de tê-lo feito e roubaram o documento com as assinaturas. Ignoro a força demonstrativa que possa ter tal aprovação a favor da infalibilidade papal.
Citado por August Hassler, Cómo llegó el papa a ser infalible. Fuerza y debilidad de un dogma. Barcelona: Planeta, 1980; p. 115.
A assistência a este concílio IV de Constantinopla foi escassa; chegou a reunir pouco mais de cem bispos. A assembleia reafirmou a autoridade das tradições eclesiásticas, o culto às imagens e a independência do concílio com respeito ao poder secular (declaração mais formal do que outra coisa). O cânon 21 – ou 13 no texto grego - insiste em que nenhum poder secular pode desonrar nem destituir nenhum patriarca, "e principalmente o santíssimo Papa da antiga Roma, depois o Patriarca de Constantinopla, depois os de Alexandria, Antioquia e Jerusalém..."
O concílio reconheceu expressamente o primado de honra de Roma, porém ao mesmo tempo estabeleceu de maneira não menos clara
a superioridade do concílio ecuménico sobre a sé romana:
Citação:Ora bem, se se reunir um Concílio Universal e surgir qualquer dúvida e controvérsia acerca da Santa Igreja de Roma, é mister que com toda a veneração e devida reverência se investigue e se receba solução da questão proposta, ou tirar proveito, ou aproveitar; porém não dar temerária sentença contra os sumos pontífices da antiga Roma.
Denziger 341
Em resumo,
não há evidência aqui nem alusão à infalibilidade da Sé romana nem muito menos à infalibilidade pessoal do seu bispo. Porém não acaba aqui o problema.
Na hora de buscar algum tipo de apoio, por mais fraco que fosse, para a sua doutrina, os bispos infalibilistas do Vaticano I esqueceram de bom grado que
o IV Concílio de Constantinopla entrou na lista ocidental de assembleias ecuménicas pela porta traseira. Em Constantinopla lançou-se um solene anátema contra Fócio, o patriarca de Constantinopla caído em desgraça. Porém, uma reviravolta da situação política restaurou Fócio no patriarcado em 877 e o novo bispo de Roma, João VIII (872-882)
declarou nulo o Concílio IV Constantinopla e o apagou da lista dos ecuménicos. Como consequência, durante dois séculos em Roma não se teve por ecuménico este Sínodo, apesar de ter sido presidido pelos legados papais.
A ocasião e o motivo da restauração do IV de Constantinopla na lista ocidental de Concílios Ecuménicos são explicados por Hassler (o.c., p. 115-116) como se segue:
Citação:Só em finais do século XI conseguiu o Quarto Concílio de Constantinopla, graças a um «erro» dos canonistas, reintroduzir-se gradualmente na lista dos Concílios Ecuménicos. A nova concepção do papado, sustentada por Gregório VII (1073-1085) despertou o interesse por este concílio. Além disso, o Papa encontrou no cânon 22 deste Concílio, referente à investidura dos leigos, a arma mais contundente contra o imperador do Ocidente. No entanto, até ao século XVI não se voltou a utilizar o título de «Concílio Ecuménico VIII" para o Quarto Concílio Constantinopolitano.
E além disso, no Oriente este concílio
nunca foi reconhecido como ecuménico, pelo que a afirmação do Vaticano I sobre o testemunho a favor da doutrina dos "Concílios Ecuménicos, principalmente aqueles em que os Orientais se reuniam com os Ocidentais na união da fé e da caridade" é descarada e puramente falsa. O professor Hamilcar S. Alivisatos, da Universidade de Atenas, assinala, pelo contrário:
Citação:A partir deste ponto, os caminhos das duas Igrejas [a do Ocidente e a do Oriente] separam-se e o Concílio VIII constitui para elas um objecto de controvérsia, uma reconhecendo-o como autêntico e outra rejeitando a sua ecumenicidade. Esta contestação expõe novamente a questão da autoridade suprema da Igreja. No Ocidente, depois dos sínodos de Constança, de Ferrara e de Florença, esta autoridade concentra-se definitivamente na pessoa do papa, considerado como infalível. No Oriente, a autoridade absoluta da Igreja continua concentrando-se no Concílio Ecuménico. Ora bem, a Igreja do Oriente não aceita como ecuménicos senão os sete primeiros concílios ...
Los concilios ecuménicos V, VI, VII y VIIII. En B. Botte et alii, El Concilio y los Concilios. Aportación a la historia de la vida conciliar de la Iglesia. Madrid: Ediciones Paulinas, 1962, p. 152; sublinhados meus.
Em conclusão, o primeiro testemunho aduzido a favor da crença universal e constante data do século IX, de um concílio que não fala de infalibilidade e cuja ecumenicidade foi negada por um papa e seus sucessores durante dois séculos, e nunca admitida no Oriente. Dificilmente pudera imaginar-se um apoio mais débil para uma definição dogmática.
O segundo testemunho da fé constante e universal da Igreja é o II Concílio de Lião (1274), tido por XIV Ecuménico em Roma. Neste sínodo, típico da Idade Média e portanto sob o completo controlo papal, se fez jurar aos orientais uma confissão ao gosto romano. Eis aqui o que escreve o sacerdote e historiador jesuíta Hubert Jedin:
Citação:Em 24 de Junho chegaram os legados gregos: o em outro tempo patriarca de Constantinopla, Germano, o arcebispo de Niceia e o logoteta (chanceler) do imperador. Na quarta sessão de 6 de Julho aceitaram a confissão de fé que se lhes havia imposto e que continha o reconhecimento do primado pontifício, a doutrina do purgatório e o número de sete dos sacramentos e juraram em nome do seu imperador a união com a Igreja de Roma. Durante a missa cantou-se o credo com o filioque, em latim e em grego. Uma vez que assim tinham confessado os gregos a sua fé no filioque, se lhes permitiu conservar o texto tradicional de seu símbolo. A união não teve consistência não só porque o imperador se tinha deixado levar por motivos políticos e teve de achar oposição no episcopado grego, mas também porque o papa Martinho IV (1281-1285) tinha apoiado os projectos de conquista no Oriente do rei de Nápoles...
Breve historia delos concilios. Barcelona: Herder, 1963, p. 72-73; sublinhados meus.
Evidentemente o papa Gregório X pôde impor estritas condições aos orientais porque o imperador Miguel VIII Paleólogo se achava numa posição vulnerável e necessitava desesperadamente o apoio do Ocidente, pelo que estava disposto a admitir qualquer confissão de fé. Outro historiador jesuíta, Joseph Gill, expõe claramente a situação:
Citação:Todo o mundo sabe que o concílio de Lião de 1274, se bem que pareceu prometer aos latinos a união das Igrejas, desde o seu começo estava condenado ao fracasso. Não teve mais que três delegados gregos, que aceitaram desde um princípio a doutrina do filioque (1): sinal evidente de que o imperador Miguel VIII queria comprar por este meio a protecção do papa contra as ambições orientais de Carlos de Anjou. Há, no entanto, que reconhecer que o imperador foi fiel à sua palavra até à sua morte. Quanto aos três delegados, não representavam a sua Igreja. Ainda antes do concílio, o imperador quis persuadir esta a aceitar a união, porém esta a rejeitou. Era pois normal que, depois, ela considerasse sem valor o acto de união assinado pelos delegados.
El acuerdo greco-latino en el Concilio de Florencia, en Botte et alii, o.c., p. 221; sublinhados meus.
Além disso, segundo o
Enchiridion symbolorum de Enrique Denzinger (p. 167, nota), o Credo foi proposto em 1267 por Clemente IV ao imperador, e apresentado por este último no II Concílio de Lião. Em outras palavras, não se tratava em sentido próprio de uma definição conciliar: não foi discutida nem legalmente proclamada. E certamente
nunca foi aceite pelos bispos orientais. Mesmo no suposto de que tivesse sido aceite, de pouco teria valido para a doutrina infalibilista do Vaticano I, já que o Credo não fala em absoluto de infalibilidade, mas de primazia; em concreto, dá direito de apelação de qualquer causa à Sé romana, e proscreve a apelação de um juízo emitido por Roma.
Em conclusão, um concílio sem participação oficial da Igreja oriental, com um credo que foi aceite pelo imperador por motivos políticos, porém nunca pelos bispos orientais, e que tampouco fala de infalibilidade, é a segunda maior evidência da universal e constante fé da Igreja no supremo poder magisterial do bispo de Roma.
O terceiro testemunho aduzido pelos bispos do Vaticano I foi o de Florença (1438-1445), tido em conjunto com os de Basileia e Ferrara como XVII Ecuménico pela Igreja de Roma. Este concílio assinalou o triunfo do papado absolutista gregoriano sobre a mais antiga concepção conciliar da autoridade eclesiástica suprema. De novo o imperador do Oriente, agora João VIII Paleólogo, e um grupo de bispos orientais haviam recorrido ao Ocidente em busca de ajuda contra os invasores (neste caso turcos) que ameaçavam a cidade de Bizâncio. Nesta ocasião o papa e o imperador aliaram-se para forçar os bispos orientais a aceitar a primazia de Roma sobre a base de documentos forjados (as falsas Decretais e outros) que os gregos rejeitavam totalmente. Finalmente os bispos orientais tiveram que ceder – embora alguns resistiram com firmeza - e a maioria deles aceitou um decreto conciliar que afirma o primado universal da Santa Sé Apostólica e estabelece o bispo de Roma como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo e chefe de toda a Igreja, ao qual lhe foi dado « o pleno poder de apascentar, reger e governar a Igreja universal, como se contém nas actas dos Concílios Ecuménicos e nos sagrados cânones" (Denzinger # 694).
Como anota Jedin, na realidade os bispos gregos que aceitaram assinar o decreto entendiam a última cláusula em sentido
restritivo, no sentido da sua conformidade com os decretos e cânones autênticos que eles, os gregos, conservavam, e não segundo os documentos espúrios de criação recente e produção local que Roma esgrimia em seu favor. Portanto, tal como o entendiam estes homens tampouco o seu assentimento apoiaria as pretenções papais feitas dogma no Vaticano I.
No entanto, nem sequer esta explicação impediu que a delegação grega ao Concílio de Florença fosse recebida como traidora e perjura. De facto, o decreto motivou um novo cisma porque as pretensões romanas eram escandalosas e inauditas; o Oriente jamais havia conhecido, nem muito menos reconhecido, semelhantes coisas. É claro que os gregos jamais reconheceram o Concílio de Florença como ecuménico.
A isto se lhe acrescenta o facto de que inclusive no Ocidente se questionou a validade do concílio florentino por causa da sua escassa representatividade – com uma esmagadora maioria de prelados italianos - e do seu desprezo para com as decisões de sínodos muito mais representativos da Igreja ocidental, como os de Constança e Pisa. Em França não se o aceitou como ecuménico durante séculos.
E, desde logo,
o desdito decreto conciliar não diz uma palavra acerca da infalibilidade pessoal ou de ofício do pontífice romano.
Portanto, é claro que este terceiro testemunho acerca da constante e universal crença no supremo poder de Magistério dos bispos romanos carece, como os dois anteriores, de valor probatório.
Evidência aduzida das Escrituras
A argumentação a favor da infalibilidade inclui somente duas citações bíblicas, a saber, Mateus 16:18 e Lucas 22:32. À falta de um melhor fundamento, há que repetir estes textos como uma litania a favor de qualquer prerrogativa que o bispo de Roma reclame para si.
Devido ao simples facto de que é tão seguro como pode sê-lo a evidência histórica que Pedro não foi o primeiro bispo de Roma, não há razão para aplicar aos papas os textos que se referem ao príncipe dos Apóstolos. E ainda que assim fosse, estes textos tampouco justificam afirmar a infalibilidade doutrinal do bispo de Roma, nem sequer nas condições restringidas que determinou arbitrariamente o Concílio Vaticano I.
A Igreja de Roma exige que os textos bíblicos se interpretem conforme o sentir unânime dos Padres. Ora bem, os textos em questão não são citados durante quase os quatro primeiros séculos com uma aplicação particular ao bispo de Roma; e quando começam a sê-lo, são consistentemente os bispos de Roma os que os invocam em seu próprio favor. Adicionalmente, durante o primeiro milénio de vida da Igreja nenhum Padre mostra evidência de ter considerado estes textos jamais como indicativos de um magistério infalível do bispo romano.
Outros testemunhos
Nos «
Argumentos tomados do consentimento da Igreja» os bispos do Vaticano I manipularam a história num lamentável intento de dar a impressão de que todas as disputas da Igreja antiga em assuntos de fé foram encaminhadas para Roma desde o início. Isto é obviamente falso. Apesar da importância da sé romana, a fé foi defendida frequentemente com mais firmeza e claridade desde outros sítios, por exemplo, por Ireneu de Lião, Cipriano de Cartago, Atanásio de Alexandria ou Agostinho de Hipona. Não é senão por volta do século V que o bispo de Roma, Leão I Magno, representa a posição ortodoxa no Concílio de Calcedónia (451). E mesmo aí, o escrito de Leão – que reiterava o dito por Tertuliano mais de dois séculos antes - não foi recebido e proclamado como expressão de ortodoxia até ter sido examinado pelos demais bispos.
Em segundo lugar, sugere-se que a salvaguarda da fé foi desde o início tarefa do papa mediante a convocação de Concílios Ecuménicos e outros sínodos, quando é arquisabido que os primeiros concílios ecuménicos não foram nem convocados nem presididos pelos bispos romanos, nem se requeria necessariamente o assentimento destes (embora por certo fosse valioso) para dar validade às decisões e formulações conciliares.
Em terceiro lugar, o decreto vaticano declara mendazmente que os Padres seguiram as doutrinas dos pontífices romanos, quando a verdade é exactamente a oposta: os papas que conservaram a ortodoxia seguiram as pisadas dos Padres. De facto, a famosa declaração de Leão basicamente reformula o dito por Tertuliano mais de dois séculos antes.
Finalmente, o decreto afirma sem demonstrar que o «Dom da verdade e da fé, que nunca falece, foi concedido a Pedro e aos seus sucessores» e define-se a infalibilidade presumidamente «seguindo a Tradição recebida desde o início da fé cristã ». No entanto, permanece o facto de que o decreto não proporciona
nenhuma evidência patrística nem conciliar de que tal coisa tenha sido crida desde o início, e pelo contrário tudo indica que a doutrina da infalibilidade não surge senão por volta da já bem avançada Idade Média, e ainda terão que se passar muitos anos antes de que o papado se aproprie dela.
Como conclusão geral, a presumida infalibilidade que a Igreja de Roma adjudica ao papa carece de apoio escritural, patrístico, conciliar e histórico. Se alguém há-de crer semelhante doutrina, terá que fazê-lo sobre a exclusiva autoridade do próprio Concílio Vaticano I, e com conhecimento que dito sínodo distorceu gravemente os factos da história para sustentá-la.
(1) A palavra latina
filioque significa "e o Filho" e refere-se à fórmula da dupla processão do Espírito Santo do Pai e do Filho. Foi acrescentada no Ocidente ao Credo Niceno-Constantinopolitano. Os orientais não admitiram tal adição, e a diferença foi causa de longas disputas.