Alessandro:
1. «Eu sou aquele que sou» é uma tradução que pretende «transpor» para a nossa língua aquilo que se diz numa língua semita, que é muito diferente da nossa, não apenas em vocabulário, mas também em estrutura. Por exemplo, um hebreu não tinha uma forma literalmente correspondente ao nosso «Eu sou o Pedro». Hebraico não é o meu campo (já me esqueci de quase todo o pouco que estudei), mas sei que
não existe um verbo específico que corresponda exactamente ao nosso verbo «ser», sobretudo com as características que ele tem nas nossas línguas modernas, como a copulativa e abstracta. A frase do Êxodo poderia ser traduzida como «Aquele que sempre esteve [ou tem estado] ao lado de vós», entre outras traduções possíveis. Estas traduções são sempre de alguma forma interpretações. Muitas das frases que nós traduzimos com um verbo «ser», de facto, eram frases nominais, isto é, sem verbo. Possivelmente o Miguel poderá explicar isto com detalhe.
2. Em relação ao «ser» e «desempenhar o papel», não estou de acordo com a afirmação de que «desempenhar o papel» é «ser com alguma limitação». Ou se é ou não se é. Voltando ao exemplo de S. José, ele «desempenhava o papel» de pai, mas não era realmente pai. Nem era «pai com alguma limitação. Simplesmente não era. Desempenhava o papel. A Constituição de um país pode estabelecer que quando um Presidente da República fique impedido por uma doença outra pessoa possa desempenhar o papel. Mas, enquanto não for investido oficialmente de Presidente da República, não é o Presidente, mesmo que desempenhe as funções. Entre ser «anti-Syllabus» e «desempenhar o papel» (num aspecto!) há uma diferença ontológica significativa.
3. Curiosamente, voltas atrás, dizendo:
Citação:«Em nenhum momento ainda, afirmei haver nos textos do Cardeal Ratzinger uma hermenêutica de descontinuidade, argumento o qual você repete com insistência. Justifico e afirmo que o Cardeal Ratzinger afirmou que a Gaudium et Spes é um anti-sillabus quando trata do assunto principal das duas encíclicas. SE VOCÊ vê uma hermeneutica de descontinuidade aqui, JUSTIFIQUE-A, mas, mesmo que ela exista, o que ele disse está dito e não irá mudar de sentido.»
Vamos por partes. Claro que tu não dizes literalmente que nos textos do Cardeal Ratzinger há uma hermenêutica da descontinuidade, nem eu te acusei de tu teres afirmado que há tal descontinuidade. O que eu disse é que ao dizeres que o Cardeal diz que a
GS é um «anti-Syllabus», isso
significa que há nos textos de Ratzinger uma hermenêutica da descontinuidade. Compreendes a diferença?
Curiosamente, dizes: «
Justifico e afirmo que o Cardeal Ratzinger afirmou que a Gaudium et Spes é um anti-sillabus quando trata do assunto principal das duas encíclicas.»
Então voltamos atrás! Se é um «anti-Syllabus», «vai contra» e «ir contra» não é simplesmente «reformar», mas é «romper com o anterior», é «descontinuar». Ou seja, afirmar que é, de facto, um «anti-Syllabus»
significa afirmar a descontinuidade. Essa é a tese dos lefebvrianos e também a de Fedeli. Todos estes dizem que há uma ruptura. Por isso, Fedeli critica Ratziner/Bento XVI, dizendo que os seus textos são descontinuístas.
Portanto, tens que escolher: se dizes que é um «anti-Syllabus», isso implica dizer, como já expliquei, que há uma descontinuidade. É, repito, a tese de Fedeli. Ele acusa Ratzinger da hermenêutica descontinuísta. Portanto, se tens o mesmo entendimento de que a GS é o «anti-Syllabus» (como Fedeli) deves concluir (como Fedeli) que há hermenêutica da descontinuidade. Neste momento estás em contradição, porque vês nas palavras do Cardeal Ratzinger uma identificação com um «anti-Syllabus», mas não extrais daí a consequência lógica, como o faz Fedeli.
Curiosamente, ao quereres «salvar» o Papa, estás correcto; só te falta corrigir o anterior. E o anterior consiste em corrigir a visão do Fedeli (e tua), quando ele diz que Ratizinger identifica a «GS» com o «anti-Syllabus». O problema do Fedeli é usar más traduções, as mesmas que tu usaste, pelos vistos (cfr. o erro da «comprovação»). Ora, uma tradução adequada já mostrou que o Cardeal não identifica; é cuidadoso, coloca no condicional e fale em «espécie de».
Uma analogia, a propósito da expressão «espécie de»: se eu disser que um professor é uma espécie de segundo pai dos alunos, não estou a dizer que os alunos têm dois pais, ou que o professor é realmente pai dos alunos, mas que de alguma desempenha uma função paternal junto dos alunos, porque os protege, incute valores, lhes dá «vida», etc.
Ser «uma espécie de "anti-Syllabus"» não é mesmo que ser o «anti-Syllabus».
Enfim, tu continuas numa dança que não se entende muito bem. Ora dizes que não há hermenêutica da descontinuidade (concordo), ora dizes que «Justifico e afirmo que o Cardeal Ratzinger afirmou que a Gaudium et Spes é um anti-sillabus quando trata do assunto principal das duas encíclicas» (discordo). Não podes ao mesmo tempo dizer que a «GS» é um «anti-Syllabus» e que isso não constitui uma descontinuidade entre os dois documentos. Se não há descontinuidade, a «GS» não pode ser um «anti-Syllabus».
Creio já ter mostrado por que razão a tua tese da identificação da «GS» com o «anti-Syllabus» significa a hermenêutica da descontinuidade. Explico agora de outra forma. É simples. Ser «anti-Syllabus» implica um confronto directo ao núcleo doutrinal do «Syllabus», implica romper com ele. Ser «anti-Syllabus» é ser contra o «Syllabus». Aliás, aparece a expressão «counter-Syllabus». Um «counter-Syllabus» opõe-se ao «Syllabus» como uma «counter-Reformation» (católica) se opõe a uma «Reformation» (protestante). Não se pode dizer que um «anti-Syllabus» não pretende romper com o «Syllabus».
Alef