paroquias.org
 

Notícias






Os sabores da fé
2001-10-20 23:37:09

Quem sobe o Chiado e vira à esquerda na Rua Ivens, em Lisboa, dá de caras com uma discreta loja de artigos religiosos pertencente ao Centro Apostolado Litúrgico das Irmãs Discípulas do Divino Mestre. Tal como outros estabelecimentos do mesmo género espalhados pelo país, vende estatuetas de santos, terços, velas, gravuras, postais e tudo o que possa interessar aos mais fervorosos crentes.

No entanto, é também ali que várias paróquias de Lisboa vão buscar vinho e hóstias para a celebração das missas, assim como as vestimentas para os padres. Que tipo de vinho se bebe na missa? Quem faz as hóstias? De onde vêm as alvas e os paramentos que cobrem os padres durante as cerimónias religiosas?

Devidamente apetrechada de hábito azul escuro e crucifixo ao pescoço, a irmã Manuela sorri enquanto vai ajeitando nas sólidas prateleiras de madeira as alvas cuidadosamente dobradas e embrulhadas em sacos de plástico transparentes. Nesta loja, as alvas e os paramentos são os primeiros a chamar a atenção: «Procuramos que a maior parte seja feita pela nossa irmandade mas também nos enviam muita coisa de Itália, sede da nossa congregação. Em Portugal já não há irmãs suficientes», explica num suave tom de voz.

Mas, faltando ou não mão-de-obra, as discípulas dedicam-se ao trabalho do corte e costura com mãos de fada, criando verdadeiras obras de arte: «Temos alvas trabalhadas que mais ninguém tem, assim como paramentos para os quatro tempos comuns em seda, lã, poliéster, terilene ou noutros materiais. Os preços variam conforme o tecido.» E não são baratos. Uma alva pode custar entre 10 e 15 contos, enquanto os paramentos podem chegar aos 30: «A nós, não conta que seja barato mas sim que seja um trabalho bonito e de qualidade. Mas, com 18 contos já se consegue um paramento razoável», sossega a irmã Manuela.



As Irmãs Discípulas do Divino Mestre ainda hoje se dedicam a produzir alvas e paramentos. Mas, como há falta de mão-de-obra, a maior parte vem da sede da Irmandade, em Itália

No passado, o fabrico de hóstias, um processo moroso e complicado, também fazia parte das actividades destas discípulas. Hoje, encomendam-nas ao Convento das Irmãs Carmelitas, no Porto, sendo vendidas nesta loja em pacotes de 20 e 1000 unidades a 235$00 e 1600$00, respectivamente. O vinho, «Tabor» de seu nome, tem origem nas Caves Aliança e custa 1000$00 a garrafa.

Na Rua dos Sapateiros, igualmente situada em plena Baixa lisboeta, a loja Renovação - outrora pertencente ao Patriarcado e hoje propriedade particular - só tem em comum com o estabelecimento das Discípulas do Divino Mestre a venda da mesma marca de vinho. Ao entrar neste rés-do-chão, integrado num edifício de arquitectura pombalina, nota-se mais espaço e uma maior variedade de produtos: «Antigamente, a casa tinha pessoal para fazer hóstias e paramentos no primeiro andar da loja, que hoje serve de armazém. Agora, encomendamos as hóstias, na Estrela, às Irmãs Clarissas do Desagravo, e temos uma costureira particular ao serviço. Outras vezes também os encomendamos de Itália pela Internet», diz um dos donos do estabelecimento.

As irmãs Clarissas, tal como as Carmelitas, dedicam-se unicamente ao fabrico de hóstias, deixando de lado a agulha e o dedal: «Fazemos hóstias no nosso convento em Lisboa e no outro, em Sintra, mas só por encomenda e em pouca quantidade», elucida uma das Clarissas. Já as Carmelitas, de tantas encomendas, não têm mãos a medir. No Convento do Estoril, até já tiveram de recusar trabalho encomendado por várias paróquias porque o problema é sempre o mesmo: falta de tempo e poucas irmãs para fazer tanto pão de Cristo.


O processo de fabrico das hóstias envolve tanto paciência como perícia. Numa sala onde reina simplicidade e paz, a madre superiora Maria de Jesus inicia a prosa fazendo a sua voz trespassar por uma grade de barras negras entrelaçadas. Diz ela que «as hóstias são feitas simplesmente com farinha e água sem qualquer tipo de fermento, sal ou açúcar». A farinha é a mesma que se utiliza para fazer o pão. Misturada com água em dose certa, numa pequena batedeira industrial, a massa fica pronta mal atinja a consistência de uma gemada. Seguidamente, é colocada num alguidar de onde se retira, com uma concha, a quantidade necessária para cobrir o ferro, uma máquina eléctrica de formato rectangular com uma chapa em cima e outra em baixo: «Ao juntarem-se, as chapas distribuem a massa uniformemente, cozendo-a durante mais ou menos 45 segundos. A tampa do ferro salta automaticamente quando o pão está cozido.»

Parece simples mas a coisa não acaba por aqui. Mal saem da cozedura, os finos pães rectangulares seguem directamente para um armário humificador, «onde ganham maleabilidade, já que quando o pão sai do ferro vem estaladiço e assim não se podem recortar as hóstias». De um dia para o outro, por norma, a questão fica resolvida. A fase final é dada pela máquina de corte, constituída por tubos com lâminas exteriores afiadas que retiram da base do pão, cerca de 50 hóstias (pequenas) ou 12 (grandes): «Depois de cortadas seleccionam-se as melhores hóstias entre as que têm pequenos defeitos. A seguir, as que estão perfeitas voltam à secagem para assim se conservarem durante mais semanas. Nem todos os locais onde se fazem hóstias têm estes cuidados, mas as Carmelitas sim. Por isso é que as nossas hóstias ficam tão bonitas e são tão apreciadas», explica a madre superiora. Lisas ou com desenhos em relevo a embelezar, as hóstias são depois vendidas às paróquias em sacos de 100, 500, 1000 ou 2000, custando, cada unidade, entre 90 centavos (pequenas) e 4$50 (grandes).

Apesar da arte de fazer hóstias dar algumas dores de cabeça, a madre Maria de Jesus é optimista: «Hoje em dia temos máquinas mais sofisticadas que nos ajudam a fazer as hóstias em menos tempo e com menos trabalho.» Que o diga o padre Pedro, pároco da Basílica dos Mártires e da Igreja do Santíssimo Sacramento, em Lisboa: «Eu próprio já fiz muitas hóstias quando andava no Seminário, há 45 anos atrás. As hóstias pequenas eram cortadas numa máquina muito rudimentar e as maiores tinham de ser à tesoura.»

Passando do pão para o vinho, o padre Pedro aproveita para esclarecer que o néctar bebido na missa é diferente do que se bebe à mesa. Ele é mais doce do que o normal e, curiosamente, a maioria das paróquias prefere utilizar mais o branco, deixando de lado o tinto. Mas porquê, se o vinho pretende personificar o sangue de Cristo? «Simplesmente porque o branco suja menos os panos do altar e as nódoas do tinto são muito mais difíceis de tirar», remata o pároco.

Em Portugal, contam-se pelos dedos os produtores que fazem vinho de missa: «Trata-se de uma pequena produção de vinho pensada apenas para este nicho de mercado. No nosso caso distribui-se muito pouco a nível nacional. A maior quantidade vai directamente para a comunidade religiosa irlandesa, que encomenda mais o tinto», explica António Ventura, enólogo das Caves D. Teodósio. E adianta: «Os vinhos de missa começaram a ser produzidos na Idade Média pelos monges beneditinos e cisterciences, grandes impulsionadores da vinha na Europa. A fermentação do vinho é parada com a adição de uma aguardente vínica de forma a que fique com um teor de açúcar e de álcool mais elevado do que o normal, conservando-se, assim, durante mais tempo. Naquela época, só assim se poderia garantir a chegada do vinho a outros destinos sem grandes alterações.»

Se, por qualquer razão, alguém se esqueceu de comprar vinho, os padres têm ainda outra hipótese para resolver o problema: «Também se podem utilizar vinhos licorosos, semelhantes aos vinhos de missa. No dia do meu casamento, o frei dominicano que celebrou a cerimónia utilizou um velhíssimo Moscatel de Setúbal», confessa Paulo Laureano, enólogo e consultor de vinhos em várias adegas nacionais. Se, por outro lado, o sabor açucarado do vinho de missa não agradar a determinados paladares eclesiásticos, a solução também já existe: «Normalmente o vinho é diluído em água e assim consegue-se beber mais facilmente.»


Fonte Expresso

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia