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Uma entrevista inovadora
2013-09-23 22:46:17

A entrevista do Papa às revistas jesuítas tem sido muito comentada, desde a sua divulgação, quinta-feira passada. Nos media, destacaram-se sobretudo os temas de sempre – aborto, homossexualidade, contracepção... Mas a entrevista é verdadeiramente inovadora (e vale a pena ser lida na íntegra, o que é possível fazer já em linha aqui, no sítio da Brotéria e, dentro de poucos dias, na edição da revista em papel; a foto, do Papa com o jesuíta Antonio Spadaro, que o entrevistou, foi também reproduzida do sítio da Brotéria).

Este documento é inovador não tanto pelo tom utilizado pelo Papa, e que já começamos a reconhecer, mas pela leitura e pelas propostas concretas que ele faz para a acção da Igreja. Por exemplo, em relação ao papel das mulheres na Igreja (onde o Papa diz muito mais do que parece à primeira vista) ou sobre o processo ecuménico e o diálogo com protestantes e ortodoxos acerca do ministério do bispo de Roma.

Nesse sentido, é uma entrevista que procura retomar a plenitude do espírito conciliar, precisamente na forma e nas questões em que o Concílio Vaticano II (1962-65) ficara bloqueado: a colegialidade, a missão da Igreja no serviço ao mundo, a essência do cristianismo.


Uma grande novidade: o papel da mulher


Antes disso, importa reter aquilo que me parece uma profunda novidade, quando o Papa se refere ao lugar da mulher (das mulheres) na Igreja. Diz ele na entrevista (fica a citação completa, que vale a pena):


“É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a solução do ‘machismo de saias’, porque, na verdade, a mulher tem uma estrutura diferente do homem. E, pelo contrário, os argumentos que oiço sobre o papel da mulher são muitas vezes inspirados precisamente numa ideologia machista. As mulheres têm vindo a colocar perguntas profundas que devem ser tratadas. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e o seu papel. A mulher, para Igreja, é imprescindível. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto, porque não se deve confundir a função com a dignidade. É necessário, pois, aprofundar melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá reflectir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O desafio hoje é exactamente esse: reflectir sobre o lugar específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”

É nestas últimas frases que leio a grande novidade. Mas, antes, recuemos ao voo do Rio de Janeiro para Roma, em Julho, após a Jornada Mundial da Juventude. Na ocasião, o Papa dissera ser “necessário fazer uma profunda teologia da mulher”. Certo: logo a seguir, afirmou também, sobre a hipótese de ordenação de mulheres, que a Igreja (João Paulo II) já dissera que não e que essa era uma porta fechada.

Agora, às revistas jesuítas, o Papa volta a repetir a necessidade de uma “teologia profunda” e não fala da ordenação. Mas diz que “o génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes” e que o desafio actual é “reflectir sobre o lugar específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”

Ora, o exercício da autoridade, nos vários âmbitos da Igreja, está, por enquanto, confinado à hierarquia e ao ministério do presbiterado. O que o Papa está a dizer, portanto, é que é preciso reflectir sobre o papel da mulher também no âmbito em que se exerce a autoridade – ou seja, no âmbito hierárquico.

Isto não significa, claro, abrir já a porta à ordenação. Mas, sabendo que a exegese bíblica nos diz cada vez mais que as mulheres tiveram um lugar destacado no grupo que acompanhava Jesus e que havia mulheres na liderança de várias comunidades paulinas, o debate sobre esse tema será apenas uma questão de tempo, se quisermos ser fiéis à intuição de Jesus e do cristianismo primitivo. Mesmo sabendo que qualquer mudança levará tempo, como também reconhece o Papa quando fala da mudança em geral: “Será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz.”




Ler o Concílio Vaticano II à luz deste tempo




A resposta sobre as mulheres na Igreja reflecte uma outra atitude do Papa nesta entrevista notável. Ao falar do Concílio, diz ele: “O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produziu um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho. Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. (...) Sim, existem linhas de hermenêutica de continuidade e de descontinuidade. Todavia, uma coisa é clara: a dinâmica de leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é absolutamente irreversível.”

Duas notas sobre este parágrafo: a hermenêutica do Concílio implica que a atitude que levou à sua convocatória – “reler o evangelho à luz da cultura contemporânea” – deve orientar permanentemente a atitude fundamental da Igreja. Sabendo também que o que era válido há 50 anos pode já não ser hoje. E que só essa “dinâmica de leitura do Evangelho” deve ser “absolutamente irreversível”. Ou seja, a leitura do Concílio Vaticano II implica também perceber aquilo que são problemas novos, aos quais os textos do Concílio não respondem plenamente, mas sobre os quais podem servir de orientação.




Quem diz Concílio, diz Sínodo




Diz o Papa ainda, nas suas respostas: “Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a actual parece-me estática. Isto poderá também ter valor ecuménico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade.”

Desde a instituição do Sínodo dos Bispos, após o Concílio Vaticano II, muitas vozes se foram fazendo ouvir no sentido de tornar esta estrutura mais fiel ao espírito que tinha levado à sua criação: o de ser um órgão de consulta do Papa. Apesar disso, o Sínodo foi sendo reduzido cada vez mais a uma assembleia que se limitava a dar sugestões para futuros textos dos papas. O papel da Cúria Romana nesse controlo e nesse processo de fechamento foi sendo evidente.

No seu diagnóstico, o Papa Francisco diz que a actual metodologia do sínodo é “estática” e que a sua alteração pode ser positiva, também para o diálogo ecuménico. E mais: a Igreja Católica pode aprender mais, dos ortodoxos, “sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade.”

Noutra passagem, diz o Papa Francisco: “Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e activa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais.” E acrescenta, quando fala do sentir da Igreja: “Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica.”

O Papa não o diz taxativamente, mas está implícito nestas afirmações: é essencial alargar o processo sinodal a todos os âmbitos da Igreja. A participação do povo de Deus nos âmbitos da Igreja em que se move é uma condição requerida pelo Concílio Vaticano II. Só uma dinâmica sinodal, de auscultação de todos e em que todos tenham direito a fazer-se ouvir e a fazer ouvir o seu “sentir”, permitirá alargar essa mentalidade.




Escuta, escuta, escuta




Essa atitude de escuta e de atenção à realidade é a que deve nortear toda a acção da Igreja. É disso que se trata quando o Papa se refere ao discernimento, à oração, ao diálogo, ao modo como os cristãos devem estar na vida ou à forma de procurar Deus. Como nas citações que aqui ficam, a finalizar, como aperitivo à leitura integral da entrevista:

“Eu não me via padre sozinho: preciso de uma comunidade.”

“o discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar.”

(Sobre o que o impressiona em Pedro Fabro, um dos primeiros companheiros de Inácio de Loiola): “O diálogo com todos, mesmo os mais afastados e os adversários; a piedade simples, talvez uma certa ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento discernimento interior, o facto de ser um homem de grandes e fortes decisões e ao mesmo tempo capaz de ser assim doce, doce…”

“Na minha experiência de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim, ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa.”

“O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdova. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas.”

“Esta Igreja com a qual devemos ‘sentir’ é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode conter um grupinho de pessoas seleccionadas. Não devemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protector da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me vem à cabeça é: ‘Cá está um solteirão’ ou ‘Cá está uma solteirona’. Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida. Pelo contrário, quando leio, por exemplo, a vida dos missionários salesianos que foram para a Patagónia, leio uma história de vida, de fecundidade.”

“Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude.

“Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.”

“A homilia é a pedra de comparação para calibrar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve reconhecer o coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o coração do ensinamento de Jesus.

“Os queixumes nunca, nunca, nos ajudam a encontrar Deus. As queixas de hoje de como o mundo anda ‘bárbaro’ acabam por fazer nascer dentro da Igreja desejos de ordem entendidos como pura conservação, defesa. Não. Deus deve ser encontrado no hoje.”


“Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um. Mesmo se a vida de uma pessoa foi um desastre, se se encontra destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está na sua vida. Pode-se e deve-se procurar na vida humana. Mesmo se a vida de uma pessoa é um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode crescer. É preciso confiar em Deus.”

Fonte Religionline

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