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Catequese do cardeal-patriarca de Lisboa no 2.º Domingo da Quaresma
2011-03-21 10:13:17

“Escutar a Palavra do Senhor”

Introdução

1. Na primeira Catequese vimos que Deus, ao escolher para Si um Povo, quis ser um Deus amigo, íntimo, a viver com esse Povo. Uma expressão desse desejo de proximidade e de relação, é a Revelação. Revelar-se é dar a outro acesso a uma intimidade pessoal que de outro modo não seria conhecida. Ao revelar-se, Deus deseja ser conhecido, tanto quanto o pode ser, por criaturas pecadoras. Abre os segredos do seu Ser íntimo, do seu desígnio acerca do homem que criou. Deus revela-se e o próprio facto de o fazer é uma manifestação de amor.

A principal expressão desta revelação é a sua Palavra: Deus fala ao seu Povo. A Exortação Apostólica Post-Sinodal “Verbum Domini”, afirma logo no início: “A novidade da revelação bíblica consiste no facto de Deus se dar a conhecer no diálogo que deseja ter connosco”(1).


Um Deus que se exprime no diálogo é um Deus comunhão. Deus está com os homens na verdade do seu próprio mistério íntimo: Ele é comunhão de Pessoas. E a Palavra que dirige ao seu Povo, em linguagem humana, é a Encarnação da Palavra eterna de Deus, o Logos. Sempre que nos fala, convida-nos a entrar na sua intimidade, na comunhão das pessoas divinas. A nossa caminhada neste mistério é tornarmo-nos capazes de, ao escutar as palavras dos Profetas, dos Evangelistas ou da Igreja, escutarmos o próprio Logos eterno de Deus, que se nos tornou acessível em Jesus Cristo. São João resume assim toda a aventura da Palavra, na Igreja: “E o Verbo faz-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua Glória, glória que recebe de seu Pai, como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). Depois da Encarnação da Palavra eterna, em Jesus Cristo, ouvir Deus é sempre ouvir o seu Filho, escutar Deus é sempre escutar Jesus Cristo. É por isso que a primeira resposta que Deus espera do seu Povo, é que O escute, que acolha a sua Palavra. Antes de anunciar é preciso escutar.

Uma Palavra actual

2. A Exortação Apostólica diz-nos, logo no início, que a Bíblia não é uma Palavra do passado, mas uma Palavra viva e actual (2). Esta preocupação vem ao encontro de uma dificuldade real dos cristãos de hoje frente à Palavra de Deus. Qual é a perspectiva: Deus falou no passado e nós tentamos compreender o que disse e tirar daí ensinamentos? Ou Deus fala hoje, continua a interpelar-nos e a surpreender-nos com a Palavra que nos dirige? “A fé cristã não é uma religião do Livro; o cristianismo é a religião da Palavra de Deus, não de uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo” (3). Se o cristianismo fosse só “uma religião do Livro”, o esforço da Igreja limitar-se-ia a analisar o texto para ver o que Deus disse ao seu Povo, nas diversas etapas da sua história. Mas nós acreditamos que a Palavra de Deus é actual, Ele continua a ser um Deus em diálogo com o seu Povo, a conduzi-lo pela sua Palavra em cada momento e circunstância da história. Se acreditamos que Deus continua a falar-nos, a atitude da Igreja tem de ser outra: a da escuta, coração aberto para escutar agora o que Deus diz à Igreja, que é o seu Povo.

Como é que Deus nos fala hoje

3. Para bem escutarmos a Palavra do Senhor, temos de ter uma consciência clara dos modos como Deus fala hoje ao seu Povo e a cada um de nós.

Ele fala-nos pelo seu Filho Jesus Cristo. Palavra eterna de Deus fez-se Homem e ficou connosco. N’Ele, Deus diz-nos tudo e sempre o que tem para nos dizer. Na encarnação do Verbo “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria Pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a Palavra definitiva que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que motivo, no início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte” (4). Na escuta amorosa da Palavra que Deus dirige hoje ao seu Povo, é essencial a relação com a Pessoa de Jesus nas suas diversas expressões: a adoração, a celebração da Eucaristia, as suas palavras que nos foram transmitidas pelos Evangelhos. Só na relação com Jesus Cristo se escuta a Palavra do Pai. Cristo é, para todos os tempos, a Palavra do Pai.

Desde que esteja garantida esta relação de fé e de amor com a Pessoa de Jesus, a Igreja pode escutar a Palavra de Deus através de outros meios e caminhos. No Sínodo “falou-se justamente de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra única que se exprime de diversos modos, um canto a várias vozes” (5). A unidade desta sinfonia é a Pessoa de Jesus, Palavra eterna de Deus, a Quem devo escutar numa relação de fé e de amor”. A própria expressão Palavra de Deus indica a Pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai que se fez Homem” (6).

Nesta sintonia de vozes, através das quais Deus nos fala por Jesus Cristo, avulta a Sagrada Escritura que se tornou linguagem de Jesus Cristo. Só n’Ele e por Ele a Escritura se torna Palavra de Deus hoje. Santo Ambrósio afirmava que “o Corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida”. “Deus através de todas as palavras da Escritura diz só uma Palavra, o seu único Verbo em que se diz inteiramente a Si Mesmo”. E Santo Agostinho afirmava: “lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e um só é o Verbo, que se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados” (7).

Outras vozes que nos podem ajudar, hoje, a ouvir o que Deus nos diz em Jesus Cristo, são a maneira como em todos os tempos a Igreja escutou o Senhor, lendo as Escrituras. É a fé da Igreja, conduzida pelo Espírito, em todos os tempos, na escuta da Palavra de Deus. A Exortação Apostólica afirma-o claramente: “Em última análise é a Tradição viva da Igreja que nos faz compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus” (8).

E, finalmente, podemos escutar o que Deus nos diz hoje em Jesus Cristo, contemplando a Criação, se acreditarmos que, por Ele, foram feitas todas as coisas (cf. Jo. 1,3), que Ele é o primogénito de toda a criação (cf. Col. 1,15) e que todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e em vista d’Ele (cf. Col. 1,16). É possível escutar o Criador, observando as criaturas. Aí a sinfonia alarga-se à imensa beleza da variedade das criaturas. Como afirmava São Boaventura “toda a criatura é Palavra de Deus porque proclama Deus” (9).

Dialogar com Deus com as próprias Palavras de Deus

4. Escutar, hoje, a Palavra de Deus é aceitar entrar no diálogo para que Ele nos convida e atrai e, portanto, mergulhar na experiência da comunhão que se exprime, em Igreja, na relação com Jesus Cristo. Entrar neste diálogo está acima das nossas forças humanas. Só o Senhor pode pôr nos nossos lábios e no nosso coração as palavras que havemos de responder à Palavra do Senhor. A nossa palavra com que respondemos à Palavra de Deus é um dom do próprio Deus, suscitada em nós pelo Espírito Santo. Se tentarmos responder a Deus só com as nossas palavras humanas, nunca entraremos verdadeiramente nesse diálogo, talvez nem cheguemos a escutar a voz do Senhor.

Voltamos à importância da Sagrada Escritura. Através dela, Deus não só nos fala hoje pelo seu Filho Jesus Cristo, mas põe na nossa boca as palavras com que devemos responder à Palavra viva de Deus, porque a Sagrada Escritura tantas vezes sugere a resposta que Deus deseja. Cristo não é apenas a Palavra definitiva mas é a resposta perfeita à Palavra eterna do Pai. No seguimento de Jesus Cristo aprendemos a responder a Deus. Se aprendermos a encontrar na Sagrada Escritura as nossas respostas à Palavra que Deus nos dirige, interiorizamos a nossa aceitação dos textos sagrados como Palavra de Deus, espontaneamente repetimo-los e memorizamo-los, de modo a transformarem-se espontaneamente na nossa resposta a Deus que nos fala. A Sagrada Escritura é como uma língua que se aprende e se torna parte de nós, da nossa compreensão e da nossa expressão.

Escutamos e respondemos à Palavra de Deus, movidos pelo Espírito Santo. Participamos mais uma vez, no dinamismo trinitário de comunhão das Pessoas Divinas. O facto de Deus Pai nos falar, através do seu Filho, o seu Verbo, acontece no Espírito de amor que brota da relação do Pai e do Filho. Sempre que nos fala, pelo seu Filho, Deus comunica-nos o seu Espírito e só Ele nos permite escutar e responder. “A Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas, graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação” (10). O Evangelista São João sublinha esta acção do Espírito Santo na escuta da Palavra. É Ele que ensinará os discípulos, recordando-lhes tudo o que o Senhor disse; é Ele que conduzirá os discípulos à plenitude da verdade (cf. Jo. 14,26; 16,13).

Escutar a Palavra em Igreja

5. A Igreja, Povo do Senhor, é o verdadeiro interlocutor de Deus. É ao seu Povo que o Senhor fala e se revela; é dele que espera uma resposta, é a Igreja que é enviada a anunciar a Palavra, participando da própria missão do seu Senhor. O equilíbrio entre a escuta pessoal da Palavra, e o acolhimento que da mesma Palavra faz a Igreja, é um equilíbrio difícil de conseguir. Depende, fundamentalmente, da inserção de cada cristão na comunhão da Igreja, o que o leva a rejeitar qualquer interpretação da Palavra que não coincida com a da Igreja. De facto, ao longo dos séculos, sempre que cristãos, individualmente ou em grupo, pretenderam escutar a Palavra sem estarem em comunhão com toda a Igreja, correram o risco de escutarem o que gostariam de ouvir e não o que Deus tem para lhes dizer.

A Exortação Apostólica recorda-nos que “a relação entre Cristo, Palavra do Pai e a Igreja (…) é uma relação vital, na qual cada fiel é, pessoalmente, convidado a entrar” (11). A escuta da Palavra tem de ser cultivada simultaneamente com a vivência da Igreja como comunhão, com Jesus Cristo e por Ele, com a Santíssima Trindade. “A contemporaneidade de Cristo com o ser humano de cada época realiza-se no seu Corpo, que é a Igreja” (12).

Ao longo dos séculos, apesar das dificuldades do tempo e da história, foi a Igreja, esse “nós” que é o Povo do Senhor, que escutou bem a Palavra do Senhor. “Mestra da escuta, a Esposa de Cristo repete, com fé, também hoje: falai, Senhor, que a vossa Igreja vos escuta” (13). A escuta da Palavra, por cada cristão, faz-se aderindo à maneira como a Igreja escuta a mesma Palavra, aprofunda-se rezando com a Igreja, transforma-se em missão, anunciando-a com a Igreja e em nome da Igreja. É preciso que em cada cristão que escuta a Palavra, seja a Igreja que a escuta.

Escuta da Palavra e Nova Evangelização

6. A renovação da evangelização tem o seu destino ligado ao modo como toda a Igreja e cada cristão escutam, hoje, a Palavra do Senhor. “A Igreja é uma comunidade que escuta e anuncia a Palavra do Senhor (…) só quem se coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode depois tornar-se anunciador” (14). É que a mensagem central da Palavra é a manifestação do infinito amor de Deus pelos homens, expresso em Cristo, de modo especial na sua oferta pascal. A evangelização é sempre o anúncio sincero e experimentado deste infinito amor de Deus. A Nova Evangelização precisa do ardor e da comoção de quem se sentiu tocado por essa Palavra que Deus nos diz hoje, sempre, em cada dia da nossa vida.

Sé Patriarcal, 20 de Março de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca



NOTAS:

1 Verbum Domini (VD), nº 6

2 VD, nº 5

3 VD, nº 7

4 VD, nº 11

5 VD, nº 7

6 Ibidem

7 VD., nº 18

8 VD., nº 17

9 cf. VD., nº 8

10 VD., nº 15

11 VD., nº 51

12 Ibidem

13 Ibidem

14 Ibidem

Fonte Ecclesia

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