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Encíclica «Caritas in veritate» - parte 2
2009-07-18 10:26:18

CAPÍTULO III

FRATERNIDADE, DESENVOLVIMENTO E SOCIEDADE CIVIL

34. A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilitarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes, o homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, que provém - se queremos exprimi-lo em termos de fé - do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais e na construção da sociedade. «Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e dos costumes»[85]. No elenco dos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, há muito tempo que se acrescentou também o da economia. Temos uma prova evidente disto mesmo nos dias que correm. Primeiro, a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção social.


Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar «influências» de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas económicos, sociais e políticos que espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram capazes de assegurar a justiça que prometiam. Deste modo, como afirmei na encíclica Spe salvi[86], elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constitui um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humano integral, procurado na liberdade e na justiça. A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade[87]. Já está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus absolutamente gratuito, irrompe na nossa vida como algo não devido, que transcende qualquer norma de justiça. Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência. Aquele precede-nos, na nossa própria alma, como sinal da presença de Deus em nós e das suas expectativas a nosso respeito. A verdade, que é dom tal como a caridade, é maior do que nós, conforme ensina Santo Agostinho[88]. Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente «dada»; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela «não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano»[89].

Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.

35. O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave.

Na Populorum progressio, Paulo VI sublinhava oportunamente o facto de que seria o próprio sistema económico a tirar vantagem da prática generalizada da justiça, uma vez que os primeiros a beneficiar do desenvolvimento dos países pobres teriam sido os países ricos[90]. Não se tratava apenas de corrigir disfunções, através da assistência. Os pobres não devem ser considerados um «fardo»[91] mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente económico. Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenha estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo. O mercado tem interesse em promover emancipação, mas, para o fazer verdadeiramente, não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas possibilidades; tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as gerar.

36. A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico - ao qual competiria apenas produzir riqueza - do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.

Desde sempre a Igreja defende que não se há-de considerar o agir económico como anti-social. Por si mesmo, o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente humanas. É verdade que o mercado pode ser orientado de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referências egoístas. Deste modo, é possível conseguir transformar instrumentos em si mesmos bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser questionado, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.

A doutrina social da Igreja considera possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da actividade económica e não apenas fora dela ou «depois» dela. A área económica não é nem eticamente neutra nem de natureza desumana e anti-social. Pertence à actividade do homem; e, precisamente porque humana, deve ser eticamente estruturada e institucionalizada.

O grande desafio que temos diante de nós - resultante das problemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira - é mostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade.

37. A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os financiamentos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo económico têm inevitavelmente implicações morais. Deste modo, cada decisão económica tem consequências de carácter moral. Tudo isto encontra confirmação também nas ciências sociais e nas tendências da economia actual. Outrora, talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir; hoje, tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais, a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local. Por isso, os cânones da justiça devem ser respeitados desde o início, enquanto se desenrola o processo económico, e não depois ou marginalmente. Além disso, é preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciarem a produzir valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente possível.

Na época da globalização, a economia denota a influência de modelos competitivos ligados a culturas muito diversas entre si. Os comportamentos económico-empresariais daí resultantes possuem, na sua maioria, um ponto de encontro no respeito da justiça comutativa. A vida económica tem, sem dúvida, necessidade do contrato, para regular as relações de transacção entre valores equivalentes; mas precisa igualmente de leis justas e de formas de redistribuição guiadas pela política, para além de obras que tragam impresso o espírito do dom. A economia globalizada parece privilegiar a primeira lógica, ou seja, a da transacção contratual, mas directa ou indirectamente dá provas de necessitar também das outras duas: a lógica política e a lógica do dom sem contrapartidas.

38. O meu antecessor João Paulo II sublinhara esta problemática, quando, na Centesimus annus, destacou a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil[92]. Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos outros dois âmbitos. Hoje, podemos dizer que a vida económica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum nos seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos[93] e, por conseguinte, não pode ser delegada só no Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos de empresa pública, devem poder radicar-se e exprimir-se as organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização dos comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à civilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa que é preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do lucro como fim em si mesmo.

39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que se configurasse um modelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo menos intencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamente habilitados. Solicitava que nos empenhássemos na promoção de um mundo mais humano para todos, um mundo no qual «todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros»[94]. Estendia assim ao plano universal as mesmas instâncias e aspirações contidas na Rerum novarum, escrita quando pela primeira vez, em consequência da revolução industrial, se afirmou a ideia - seguramente avançada para aquele tempo - de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da intervenção distributiva do Estado. Hoje, esta visão, além de ser posta em crise pelos processos de abertura dos mercados e das sociedades, revela-se incompleta para satisfazer as exigências duma economia plenamente humana. Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade, sempre defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da globalização.

Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que são realidades diversas do «dar para ter», próprio da lógica da transacção, e do «dar por dever», próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei do Estado. A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se actue não só na melhoria das transacções fundadas no intercâmbio, nem apenas nas transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo na progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil, sem contudo se reduzirem a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco.

40. As actuais dinâmicas económicas internacionais, caracterizadas por graves desvios e disfunções, requerem profundas mudanças inclusivamente no modo de conceber a empresa. Antigas modalidades da vida empresarial declinam, mas outras prometedoras se esboçam no horizonte. Um dos riscos maiores é, sem dúvida, que a empresa preste contas quase exclusivamente a quem nela investe, acabando assim por reduzir a sua valência social. Devido ao seu crescimento e à necessidade de capitais sempre maiores, são cada vez menos as empresas lideradas por um empresário estável que se sinta responsável, não apenas a curto mas a longo prazo, da vida e dos resultados da sua empresa, tal como diminui o número das que dependem de um único território. Além disso, a chamada deslocalização da actividade produtiva pode atenuar no empresário o sentido da responsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla, em benefício dos accionistas, que não estão ligados a um espaço específico, gozando por isso duma extraordinária mobilidade; de facto, o mercado internacional dos capitais oferece hoje uma grande liberdade de acção. Mas é verdade também que está a aumentar a consciência sobre a necessidade de uma mais ampla «responsabilidade social» da empresa. Apesar de os parâmetros éticos que guiam actualmente o debate sobre a responsabilidade social da empresa não serem, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, todos aceitáveis, é um facto que se vai difundindo cada vez mais a convicção de que a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência. Nos últimos anos, notou-se o crescimento duma classe cosmopolita de gestores, que muitas vezes respondem só às indicações dos accionistas da empresa, constituídos geralmente por fundos anónimos que estabelecem de facto as suas remunerações. Todavia, hoje, há também muitos gestores que, através de análises clarividentes, se dão conta cada vez mais dos profundos laços que a sua empresa tem com o território ou territórios onde opera. Paulo VI convidava a avaliar seriamente o dano que a transferência de capitais para o estrangeiro, com exclusivas vantagens pessoais, pode causar à própria nação[95]. E João Paulo II advertia que investir tem sempre um significado moral, para além de económico[96]. Tudo isto - há que reafirmá-lo - é válido também hoje, não obstante o mercado dos capitais ter sido muito liberalizado e as mentalidades tecnológicas modernas poderem induzir a pensar que investir é apenas um facto técnico, e não humano e ético. Não há motivo para negar que um certo capital possa ser benéfico, se investido no estrangeiro antes que na pátria; mas devem ressalvar-se os vínculos de justiça, tendo em conta também o modo como aquele capital se formou e os danos que causará às pessoas o seu não investimento nos lugares onde o mesmo foi gerado[97]. É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo, sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, do seu serviço concreto à economia real e duma adequada e oportuna promoção de iniciativas económicas também nos países necessitados de desenvolvimento. Também não há motivo para negar que a deslocalização, quando implica investimentos e formação, possa fazer bem às populações do país que a acolhe - o trabalho e o conhecimento técnico são uma necessidade universal; mas não é lícito deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda, para exploração, sem prestar um verdadeiro contributo à sociedade local para o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindível para um desenvolvimento estável.

41. Dentro do mesmo tema, é útil observar que o espírito empresarial tem, e deve assumir cada vez mais, um significado polivalente. A longa prevalência do binómio mercado-Estado habituou-nos a pensar exclusivamente, por um lado, no empresário privado de tipo capitalista e, por outro, no director estatal. Na realidade, o espírito empresarial há-de ser entendido de modo articulado, como se depreende duma série de motivações meta-económicas. O espírito empresarial, antes de ter significado profissional, possui um significado humano[98]; está inscrito em cada trabalho, visto como «actus personæ»[99], pelo que é bom oferecer a cada trabalhador a possibilidade de prestar a própria contribuição, de tal modo que ele mesmo «saiba trabalhar "por conta própria"»[100]. Ensinava Paulo VI, não sem motivo, que «todo o trabalhador é um criador»[101]. Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresa, muito para além da simples distinção entre «privado» e «público». Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se ao serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito empresarial. Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias de empresariado, com transferência de competências do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice-versa, do sector público para o âmbito próprio da sociedade civil, do mundo das economias avançadas para aquele dos países em vias de desenvolvimento.

Também a «autoridade política» tem um significado polivalente, que não se pode esquecer quando se procede à realização duma nova ordem económico-produtiva, responsável socialmente e à medida do homem. Assim como se pretende fomentar um espírito empresarial diferenciado no plano mundial, assim também se deve promover uma autoridade política repartida e activa a vários níveis. A economia integrada dos nossos dias não elimina a função dos Estados, antes obriga os governos a uma colaboração recíproca mais intensa. Razões de sabedoria e prudência sugerem que não se proclame depressa demais o fim do Estado; relativamente à solução da crise actual, a sua função parece destinada a crescer, readquirindo muitas das suas competências. Além disso, existem nações, cuja edificação ou reconstrução do Estado continua a ser um elemento-chave do seu desenvolvimento. A ajuda internacional, precisamente no âmbito de um projecto de solidariedade que tivesse em vista a solução dos problemas económicos actuais, deveria sobretudo apoiar a consolidação de sistemas constitucionais, jurídicos, administrativos nos países que ainda não gozam de tais bens. A par das ajudas económicas, devem existir outros apoios tendentes a reforçar as garantias próprias do Estado de direito, um sistema de ordem pública e carcerário eficiente no respeito dos direitos humanos, instituições verdadeiramente democráticas. Não é preciso que o Estado tenha, em todo o lado, as mesmas características: o apoio para reforço dos sistemas constitucionais débeis pode muito bem ser acompanhado pelo desenvolvimento de outros sujeitos políticos de natureza cultural, social, territorial ou religiosa, ao lado do Estado. A articulação da autoridade política a nível local, nacional e internacional é, para além do mais, uma das vias mestras para se chegar a poder orientar a globalização económica; e é também o modo de evitar que esta mine realmente os alicerces da democracia.

42. Notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito da globalização, como se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forças impessoais anónimas e por estruturas independentes da vontade humana[102]. A tal propósito, é bom recordar que a globalização há-de ser entendida, sem dúvida, como um processo sócio-económico, mas esta sua dimensão não é a única. Sob o processo mais visível, há a realidade duma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade é constituída por pessoas e povos, para quem o referido processo deve ser de utilidade e desenvolvimento[103], graças à assunção das respectivas responsabilidades por parte tanto dos indivíduos como da colectividade. A superação das fronteiras é um dado não apenas material mas também cultural nas suas causas e efeitos. Se a globalização for lida de maneira determinista, perdem-se os critérios para a avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade humana que pode ter, na sua fonte, várias orientações culturais, sobre as quais é preciso fazer discernimento. A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial.

Não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão-de negar nem absolutizar, «a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela»[104]. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos, com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por ele oferecidas. Adequadamente concebidos e geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande redistribuição da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido; se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro. É preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem novas divisões entre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que a redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação actual poderia fazer-nos temer. Durante muito tempo, pensou-se que os povos pobres deveriam permanecer ancorados a um estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com a filantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou posição Paulo VI na Populorum progressio. Hoje, as forças materiais de que se pode dispor para fazer aqueles povos sair da miséria são potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram por se aproveitar delas prevalentemente os povos dos países desenvolvidos, que conseguiram desfrutar melhor o processo de liberalização dos movimentos de capitais e do trabalho. Por isso a difusão dos ambientes de bem-estar a nível mundial não deve ser refreada por projectos egoístas, proteccionistas ou ditados por interesses particulares. De facto, hoje, o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desenvolvimento permite gerir melhor a crise. A transição inerente ao processo de globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão ser superados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humanização solidária. Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e condicionada por perspectivas ético-culturais de natureza individualista e utilitarista. A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da humanidade em termos de relacionamento, comunhão e partilha.



CAPÍTULO IV

DESENVOLVIMENTO DOS POVOS,
DIREITOS E DEVERES, AMBIENTE

43. «A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever»[105]. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão de que não devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio. Por isso, é importante invocar uma nova reflexão que faça ver como os direitos pressupõem deveres, sem os quais o seu exercício se transforma em arbítrio[106]. Assiste-se hoje a uma grave contradição: enquanto, por um lado, se reivindicam presumíveis direitos, de carácter arbitrário e libertino, querendo vê-los reconhecidos e promovidos pelas estruturas públicas, por outro, existem direitos elementares e fundamentais violados e negados a boa parte da humanidade[107]. Aparece com frequência assinalada uma relação entre a reivindicação do direito ao supérfluo, senão mesmo à transgressão e ao vício, nas sociedades opulentas, e a falta de alimento, água potável, instrução básica, cuidados sanitários elementares em certas regiões do mundo do subdesenvolvimento e também nas periferias de grandes metrópoles. A relação está no facto de que os direitos individuais, desvinculados de um quadro de deveres que lhes confira um sentido completo, enlouquecem e alimentam uma espiral de exigências praticamente ilimitada e sem critérios. A exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres. Estes delimitam os direitos porque remetem para o quadro antropológico e ético cuja verdade é o âmbito onde os mesmos se inserem e, deste modo, não descambam no arbítrio. Por este motivo, os deveres reforçam os direitos e propõem a sua defesa e promoção como um compromisso a assumir ao serviço do bem. Se, pelo contrário, os direitos do homem encontram o seu fundamento apenas nas deliberações duma assembleia de cidadãos, podem ser alterados em qualquer momento e, assim, o dever de os respeitar e promover atenua-se na consciência comum. Então os governos e os organismos internacionais podem esquecer a objectividade e «indisponibilidade» dos direitos. Quando isto acontece, põe-se em perigo o verdadeiro desenvolvimento dos povos[108]. Semelhantes posições comprometem a autoridade dos organismos internacionais, sobretudo aos olhos dos países mais carecidos de desenvolvimento. De facto, estes pedem que a comunidade internacional assuma como um dever ajudá-los a serem «artífices do seu destino»[109], ou seja, a assumirem, por sua vez, deveres. A partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos.

44. A concepção dos direitos e dos deveres no desenvolvimento deve ter em conta também as problemáticas ligadas com o crescimento demográfico. Trata-se de um aspecto muito importante do verdadeiro desenvolvimento, porque diz respeito aos valores irrenunciáveis da vida e da família[110]. Considerar o aumento da população como a primeira causa do subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico: basta pensar, por um lado, na considerável diminuição da mortalidade infantil e no aumento da esperança média de vida que se regista nos países economicamente desenvolvidos, e, por outro, nos sinais de crise que se observam nas sociedades onde se regista uma preocupante queda da natalidade. Obviamente, é forçoso prestar a devida atenção a uma procriação responsável, que constitui, para além do mais, uma real contribuição para o desenvolvimento integral. A Igreja, que tem a peito o verdadeiro desenvolvimento do homem, recomenda-lhe o respeito dos valores humanos também no uso da sexualidade: o mesmo não pode ser reduzido a um mero facto hedonista e lúdico, do mesmo modo que a educação sexual não se pode limitar à instrução técnica, tendo como única preocupação defender os interessados de eventuais contágios ou do «risco» procriador. Isto equivaleria a empobrecer e negligenciar o significado profundo da sexualidade, que deve, pelo contrário, ser reconhecido e assumido responsavelmente tanto pela pessoa como pela comunidade. Com efeito, a responsabilidade impede que se considere a sexualidade como uma simples fonte de prazer ou que seja regulada com políticas de planificação forçada dos nascimentos. Em ambos os casos, estamos perante concepções e políticas materialistas, no âmbito das quais as pessoas acabam por sofrer várias formas de violência. A tudo isto há que contrapor a competência primária das famílias neste campo[111], relativamente ao Estado e às suas políticas restritivas, e também uma apropriada educação dos pais.

A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica. Grandes nações puderam sair da miséria, justamente graças ao grande número e às capacidades dos seus habitantes. Pelo contrário, nações outrora prósperas atravessam agora uma fase de incerteza e, em alguns casos, de declínio precisamente por causa da diminuição da natalidade, problema crucial para as sociedades de proeminente bem-estar. A diminuição dos nascimentos, situando-se por vezes abaixo do chamado «índice de substituição», põe em crise também os sistemas de assistência social, aumenta os seus custos, contrai a acumulação de poupanças e, consequentemente, os recursos financeiros necessários para os investimentos, reduz a disponibilização de trabalhadores qualificados, restringe a reserva aonde ir buscar os «cérebros» para as necessidades da nação. Além disso, as famílias de pequena e, às vezes, pequeníssima dimensão correm o risco de empobrecer as relações sociais e de não garantir formas eficazes de solidariedade. São situações que apresentam sintomas de escassa confiança no futuro e de cansaço moral. Deste modo, torna-se uma necessidade social, e mesmo económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa. Nesta perspectiva, os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade[112], preocupando-se também com os seus problemas económicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional.

45. Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa tem também importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, a economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa. Hoje fala-se muito de ética no âmbito económico, financeiro, empresarial. Nascem centros de estudo e percursos formativos de negócios éticos; difunde-se no mundo desenvolvido o sistema das certificações éticas, na esteira do movimento de ideias nascido à volta da responsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e fundos de investimento chamados «éticos». Desenvolvem-se as «finanças éticas», sobretudo através do micro-crédito e, mais em geral, de micro-financiamentos. Tais processos suscitam apreço e merecem amplo apoio. Os seus efeitos positivos fazem-se sentir também nas áreas menos desenvolvidas da terra. Todavia, é bom formar também um válido critério de discernimento, porque se nota um certo abuso do adjectivo «ético», o qual, se usado vagamente, presta-se a designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem.

Com efeito, muito depende do sistema moral em que se baseia. Sobre este tema, a doutrina social da Igreja tem um contributo próprio e específico para dar, que se funda na criação do homem «à imagem de Deus» (Gn 1, 27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor transcendente das normas morais naturais. Uma ética económica que prescinda destes dois pilares arrisca-se inevitavelmente a perder o seu cunho específico e a prestar-se a instrumentalizações; mais concretamente, arrisca-se a aparecer em função dos sistemas económico-financeiros existentes, em vez de servir de correcção às disfunções dos mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o financiamento de projectos que não são éticos. Por outro lado, não se deve recorrer ao termo «ético» de modo ideologicamente discriminatório, dando a perceber que não seriam éticas as iniciativas não dotadas formalmente de tal qualificação. Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que nasçam sectores ou segmentos «éticos» da economia ou das finanças, mas também para que toda a economia e as finanças sejam éticas: e não por uma rotulagem exterior, mas pelo respeito de exigências intrínsecas à sua própria natureza. A tal respeito, se pronuncia com clareza a doutrina social da Igreja, que recorda que a economia, em todas as suas extensões, é um sector da actividade humana[113].

46. Considerando as temáticas referentes à relação entre empresa e ética e também a evolução que o sistema produtivo está a fazer, parece que a distinção usada até agora entre empresas que têm por finalidade o lucro (profit) e organizações que não buscam o lucro (non profit) já não é capaz de dar cabalmente conta da realidade, nem de orientar eficazmente o futuro. Nestas últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla área intermédia. Esta é constituída por empresas tradicionais mas que subscrevem pactos de ajuda aos países atrasados, por fundações que são expressão de empresas individuais, por grupos de empresas que se propõem objectivos de utilidade social, pelo mundo diversificado dos sujeitos da chamada economia civil e de comunhão. Não se trata apenas de um «terceiro sector», mas de uma nova e ampla realidade complexa, que envolve o privado e o público e que não exclui o lucro mas considera-o como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais. O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encontrem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada tirar à importância e utilidade económica e social das formas tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita dos deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simultaneamente mais competitivo.

47. O fortalecimento das diversas tipologias de empresa, mormente das que são capazes de conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e das sociedades, deve ser procurado também nos países que sofrem exclusão ou marginalização dos circuitos da economia global, onde é muito importante avançar com projectos de subsidiariedade, devidamente concebida e gerida, que tendam a potenciar os direitos, mas prevendo sempre também a assunção das correlativas responsabilidades. Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento. A preocupação principal é a melhoria das situações de vida das pessoas concretas duma certa região, para que possam desempenhar aqueles deveres que actualmente a indigência não lhes permite respeitar. A solicitude nunca pode ser uma atitude abstracta. Para poderem adaptar-se às diversas situações, os programas de desenvolvimento devem ser flexíveis; e as pessoas beneficiárias deveriam estar envolvidas directamente na sua delineação e tornar-se protagonistas da sua efectivação. É necessário também aplicar os critérios da progressão e do acompanhamento - incluindo a monitorização dos resultados - porque não há receitas válidas universalmente; depende muito da gestão concreta das intervenções. «São os povos os autores e primeiros responsáveis do próprio desenvolvimento. Mas não o poderão realizar isolados»[114]. Esta advertência de Paulo VI é ainda mais válida hoje, com o processo de progressiva integração que se vai consolidando no planeta. As dinâmicas de inclusão não têm nada de mecânico. As soluções hão-de ser calibradas olhando a vida dos povos e das pessoas concretas com base numa ponderada avaliação de cada situação. Ao lado dos macro-projectos servem os micro-projectos, e sobretudo serve a mobilização real de todos os sujeitos da sociedade civil, das pessoas, tanto jurídicas como físicas.

A cooperação internacional precisa de pessoas que partilhem o processo de desenvolvimento económico e humano, através da solidariedade feita de presença, acompanhamento, formação e respeito. Sob este ponto de vista, os próprios organismos internacionais deveriam interrogar-se sobre a real eficácia dos seus aparatos burocráticos e administrativos, frequentemente muito dispendiosos. Às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento. Nesta perspectiva, seria desejável que todos os organismos internacionais e as organizações não governamentais se comprometessem a uma plena transparência, informando os doadores e a opinião pública acerca da percentagem de fundos recebidos destinada aos programas de cooperação, acerca do verdadeiro conteúdo de tais programas e, por último, acerca da configuração das despesas da própria instituição.

48. O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências - materiais e imateriais - no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação. Se falta esta perspectiva, o homem acaba ou por considerar a natureza um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus.

A natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf. Rm 1, 20) e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no fim dos tempos, a ser «instaurada» em Cristo (cf. Ef 1, 9-10; Col 1, 19-20). Por conseguinte, também ela é uma «vocação»[115]. A natureza está à nossa disposição, não como «um monte de lixo espalhado ao acaso»[116], mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos, dos quais o homem há-de tirar as devidas orientações para a «guardar e cultivar» (Gn 2, 15). Mas é preciso sublinhar também que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a natureza mais importante do que a própria pessoa humana. Esta posição induz a comportamentos neo-pagãos ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, não pode derivar a salvação para o homem. Por outro lado, há que rejeitar também a posição oposta, que visa a sua completa tecnicização, porque o ambiente natural não é apenas matéria de que dispor a nosso bel-prazer, mas obra admirável do Criador, contendo nela uma «gramática» que indica finalidades e critérios para uma utilização sapiente, não instrumental nem arbitrária. Advêm, hoje, muitos danos ao desenvolvimento precisamente destas concepções deformadas. Reduzir completamente a natureza a um conjunto de simples dados reais acaba por ser fonte de violência contra o ambiente e até por motivar acções desrespeitadoras da própria natureza do homem. Esta, constituída não só de matéria mas também de espírito e, como tal, rica de significados e de fins transcendentes a alcançar, tem um carácter normativo também para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral. Por isso, os projectos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural[117].

49. Hoje, as questões relacionadas com o cuidado e a preservação do ambiente devem ter na devida consideração as problemáticas energéticas. De facto, o açambarcamento dos recursos energéticos não renováveis por parte de alguns Estados, grupos de poder e empresas constitui um grave impedimento para o desenvolvimento dos países pobres. Estes não têm os meios económicos para chegar às fontes energéticas não renováveis que existem, nem para financiar a pesquisa de fontes novas e alternativas. A monopolização dos recursos naturais, que em muitos casos se encontram precisamente nos países pobres, gera exploração e frequentes conflitos entre as nações e dentro das mesmas. E muitas vezes estes conflitos são travados precisamente no território de tais países, com um pesado balanço em termos de mortes, destruições e maior degradação. A comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o futuro.

Também sobre este aspecto, há urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados[118]. As sociedades tecnicamente avançadas podem e devem diminuir o consumo energético, seja porque as actividades manufactureiras evoluem, seja porque entre os seus cidadãos reina maior sensibilidade ecológica. Além disso, há que acrescentar que, actualmente, é possível melhorar a eficiência energética e fazer avançar a pesquisa de energias alternativas; mas é necessária também uma redistribuição mundial dos recursos energéticos, de modo que os próprios países desprovidos possam ter acesso aos mesmos. O seu destino não pode ser deixado nas mãos do primeiro a chegar nem estar sujeito à lógica do mais forte. Trata-se de problemas relevantes que, para serem enfrentados de modo adequado, requerem da parte de todos uma responsável tomada de consciência das consequências que recairão sobre as novas gerações, principalmente sobre a imensidade de jovens das nações mais pobres, que «reclamam a sua parte activa na construção de um mundo melhor»[119].

50. Esta responsabilidade é global, porque não diz respeito somente à energia, mas a toda a criação, que não devemos deixar às novas gerações depauperada dos seus recursos. É lícito ao homem exercer um governo responsável sobre a natureza para a guardar, fazer frutificar e cultivar inclusive com formas novas e tecnologias avançadas, para que possa acolher e alimentar condignamente a população que a habita. Há espaço para todos nesta nossa terra: aqui a família humana inteira deve encontrar os recursos necessários para viver dignamente, com a ajuda da própria natureza, dom de Deus aos seus filhos, e com o empenho do seu trabalho e engenho. Devemos, porém, sentir como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la. Isto implica «o empenho de decidir juntos, depois de ter ponderado responsavelmente qual a estrada a percorrer, com o objectivo de reforçar aquela aliança entre ser humano e ambiente que deve ser espelho do amor criador de Deus, de Quem provimos e para Quem estamos a caminho»[120]. É desejável que a comunidade internacional e os diversos governos saibam contrastar, de maneira eficaz, as modalidades de utilização do ambiente que sejam danosas para o mesmo. É igualmente forçoso que se empreendam, por parte das autoridades competentes, todos os esforços necessários para que os custos económicos e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem pelas gerações futuras: a protecção do ambiente, dos recursos e do clima requer que todos os responsáveis internacionais actuem conjuntamente e se demonstrem prontos a agir de boa fé, no respeito da lei e da solidariedade para com as regiões mais débeis da terra[121]. Uma das maiores tarefas da economia é precisamente um uso mais eficiente dos recursos, não o abuso, tendo sempre presente que a noção de eficiência não é axiologicamente neutra.

51. O modo como o homem trata o ambiente influi sobre o modo como se trata a si mesmo, e vice-versa. Isto chama a sociedade actual a uma séria revisão do seu estilo de vida que, em muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que daí derivam[122]. É necessária uma real mudança de mentalidade que nos induza a adoptar novos estilos de vida, «nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das poupanças e dos investimentos»[123]. Toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais, assim como a degradação ambiental, por sua vez, gera insatisfação nas relações sociais. A natureza, especialmente no nosso tempo, está tão integrada nas dinâmicas sociais e culturais que quase já não constitui uma variável independente. A desertificação e a penúria produtiva de algumas áreas agrícolas são fruto também do empobrecimento das populações que as habitam e do seu atraso. Incentivando o desenvolvimento económico e cultural daquelas populações, tutela-se também a natureza. Além disso, quantos recursos naturais são devastados pela guerra! A paz dos povos e entre os povos permitiria também uma maior preservação da natureza. O açambarcamento dos recursos, especialmente da água, pode provocar graves conflitos entre as populações envolvidas. Um acordo pacífico sobre o uso dos recursos pode salvaguardar a natureza e, simultaneamente, o bem-estar das sociedades interessadas.

A Igreja sente o seu peso de responsabilidade pela criação e deve fazer valer esta responsabilidade também em público. Ao fazê-lo, não tem apenas de defender a terra, a água e o ar como dons da criação que pertencem a todos, mas deve sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a «ecologia humana»[124] é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. Tal como as virtudes humanas são inter-comunicantes, de modo que o enfraquecimento de uma põe em risco também as outras, assim também o sistema ecológico se baseia no respeito de um projecto que se refere tanto à sã convivência em sociedade como ao bom relacionamento com a natureza.

Para preservar a natureza não basta intervir com incentivos ou penalizações económicas, nem é suficiente uma instrução adequada. Trata-se de instrumentos importantes, mas o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se torna artificial a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral. Os deveres que temos para com o ambiente estão ligados com os deveres que temos para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros; não se podem exigir uns e espezinhar os outros. Esta é uma grave antinomia da mentalidade e do agir actuais, que avilta a pessoa, transtorna o ambiente e prejudica a sociedade.

52. A verdade e o amor que a mesma desvenda não se podem produzir, mas apenas acolher. A sua fonte última não é - nem pode ser - o homem, mas Deus, ou seja, Aquele que é Verdade e Amor. Este princípio é muito importante para a sociedade e para o desenvolvimento, enquanto nem uma nem outro podem ser somente produtos humanos; a própria vocação ao desenvolvimento das pessoas e dos povos não se funda sobre a simples deliberação humana, mas está inscrita num plano que nos precede e constitui para todos nós um dever que há-de ser livremente assumido. Aquilo que nos precede e constitui - o Amor e a Verdade subsistentes - indica-nos o que é o bem e em que consiste a nossa felicidade. E, por conseguinte, aponta-nos o caminho para o verdadeiro desenvolvimento.



CAPÍTULO V

A COLABORAÇÃO
DA FAMÍLIA HUMANA

53. Uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é a solidão. Vistas bem as coisas, as outras pobrezas, incluindo a material, também nascem do isolamento, de não ser amado ou da dificuldade de amar. As pobrezas frequentemente nasceram da recusa do amor de Deus, de uma originária e trágica reclusão do homem em si próprio, que pensa que se basta a si mesmo ou então que é só um facto insignificante e passageiro, um «estrangeiro» num universo formado por acaso. O homem aliena-se quando fica sozinho ou se afasta da realidade, quando renuncia a pensar e a crer num Fundamento[125]. A humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente humanos, a ideologias e a falsas utopias[126]. A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado: esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento de que são uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros[127].

Observava Paulo VI que «o mundo sofre por falta de convicções»[128]. A afirmação quer exprimir não apenas uma constatação, mas sobretudo um voto: serve um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as implicações do facto de sermos uma família; a interacção entre os povos da terra chama-nos a este ímpeto, para que a integração se verifique sob o signo da solidariedade[129] e não da marginalização. Tal pensamento obriga a um aprofundamento crítico e axiológico da categoria relação. Trata-se de uma tarefa que não pode ser desempenhada só pelas ciências sociais, mas requer a contribuição de ciências como a metafísica e a teologia para ver lucidamente a dignidade transcendente do homem.

De natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações interpessoais: quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem se valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com Deus, pelo que estas relações são de importância fundamental. Isto vale também para os povos; por isso é muito útil para o seu desenvolvimento uma visão metafísica da relação entre as pessoas. A tal respeito, a razão encontra inspiração e orientação na revelação cristã, segundo a qual a comunidade dos homens não absorve em si a pessoa, aniquilando a sua autonomia, como acontece nas várias formas de totalitarismo, mas valoriza-a ainda mais porque a relação entre pessoa e comunidade é feita de um todo para outro todo[130]. Do mesmo modo que a comunidade familiar não anula em si as pessoas que a compõem e a própria Igreja valoriza plenamente a «nova criatura» (Gal 6, 15; 2 Cor 5, 17) que pelo baptismo se insere no seu Corpo vivo, assim também a unidade da família humana não anula em si as pessoas, os povos e as culturas, mas torna-os mais transparentes reciprocamente, mais unidos nas suas legítimas diversidades.

54. O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana, que se constrói na solidariedade, tendo por base os valores fundamentais da justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na relação entre as Pessoas da Trindade na única Substância divina. A Trindade é absoluta unidade, enquanto as três Pessoas divinas são pura relação. A transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a ligação de uma com a outra total, porque constituem uma unidade e unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta realidade de comunhão: «para que sejam um como Nós somos um» (Jo 17, 22). A Igreja é sinal e instrumento desta unidade[131]. As próprias relações entre os homens, ao longo da história, só podem ganhar com a referência a este Modelo divino. De modo particular compreende-se, à luz do mistério revelado da Trindade, que a verdadeira abertura não significa dispersão centrífuga, mas profunda compenetração. O mesmo resulta das experiências humanas comuns do amor e da verdade. Como o amor sacramental entre os esposos os une espiritualmente a ponto de formarem «uma só carne» (Gn 2, 24; Mt 19, 5; Ef 5, 31) e, de dois que eram, faz uma unidade relacional e real, de forma análoga a verdade une os espíritos entre si e fá-los pensar em uníssono, atraindo-os e unindo-os nela.

55. A revelação cristã sobre a unidade do género humano pressupõe uma interpretação metafísica do humanum na qual a relação seja elemento essencial. Também outras culturas e outras religiões ensinam a fraternidade e a paz, revestindo-se, por isso, de grande importância para o desenvolvimento humano integral; mas não faltam comportamentos religiosos e culturais em que não se assume plenamente o princípio do amor e da verdade, e acaba-se assim por refrear o verdadeiro desenvolvimento humano ou mesmo impedi-lo. O mundo actual regista a presença de algumas culturas de matiz religioso que não empenham o homem na comunhão, mas isolam-no na busca do bem-estar individual, limitando-se a satisfazer os seus anseios psicológicos. Também uma certa proliferação de percursos religiosos de pequenos grupos ou mesmo de pessoas individuais e o sincretismo religioso podem ser factores de dispersão e de apatia. Um possível efeito negativo do processo de globalização é a tendência a favorecer tal sincretismo[132], alimentando formas de «religião» que, em vez de fazer as pessoas encontrarem-se, alheiam-nas umas das outras e afastam-nas da realidade. Simultaneamente, às vezes perduram legados culturais e religiosos que bloqueiam a sociedade em castas sociais estáticas, em crenças mágicas não respeitadoras da dignidade da pessoa, em comportamentos de sujeição a forças ocultas. Nestes contextos, o amor e a verdade encontram dificuldade em afirmar-se, com prejuízo para o autêntico desenvolvimento.

Por este motivo, se é verdade, por um lado, que o desenvolvimento tem necessidade das religiões e das culturas dos diversos povos, por outro, não o é menos a necessidade de um adequado discernimento. A liberdade religiosa não significa indiferentismo religioso, nem implica que todas as religiões sejam iguais[133]. Para a construção da comunidade social no respeito do bem comum, torna-se necessário, sobretudo para quem exerce o poder político, o discernimento sobre o contributo das culturas e das religiões. Tal discernimento deverá basear-se sobre o critério da caridade e da verdade. Dado que está em jogo o desenvolvimento das pessoas e dos povos, aquele há-de ter em conta a possibilidade de emancipação e de inclusão na perspectiva de uma comunidade humana verdadeiramente universal. O critério «o homem todo e todos os homens» serve para avaliar também as culturas e as religiões. O cristianismo, religião do «Deus de rosto humano»[134], traz em si mesmo tal critério.

56. A religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este «estatuto de cidadania»[135] da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade.

57. O diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de tornar mais eficaz a acção da caridade na sociedade, e constitui o quadro mais apropriado para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não crentes na perspectiva comum de trabalhar pela justiça e a paz da humanidade. Na constituição pastoral Gaudium et spes, os Padres conciliares afirmavam: «Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes»[136]. Segundo os crentes, o mundo não é fruto do acaso nem da necessidade, mas de um projecto de Deus. Daqui nasce o dever que os crentes têm de unir os seus esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade, de outras religiões ou não crentes, para que este nosso mundo corresponda efectivamente ao projecto divino: viver como uma família, sob o olhar do seu Criador. Particular manifestação da caridade e critério orientador para a colaboração fraterna de crentes e não crentes é, sem dúvida, o princípio de subsidiariedade[137], expressão da inalienável liberdade humana. A subsidiariedade é, antes de mais nada, uma ajuda à pessoa, na autonomia dos corpos intermédios. Tal ajuda é oferecida quando a pessoa e os sujeitos sociais não conseguem operar por si sós, e implica sempre finalidades emancipadoras, porque favorece a liberdade e a participação enquanto assunção de responsabilidades. A subsidiariedade respeita a dignidade da pessoa, na qual vê um sujeito sempre capaz de dar algo aos outros. Ao reconhecer na reciprocidade a constituição íntima do ser humano, a subsidiariedade é o antídoto mais eficaz contra toda a forma de assistencialismo paternalista. Pode motivar tanto a múltipla articulação dos vários níveis e consequentemente a pluralidade dos sujeitos, como a sua coordenação. Trata-se, pois, de um princípio particularmente idóneo para governar a globalização e orientá-la para um verdadeiro desenvolvimento humano. Para não se gerar um perigoso poder universal de tipo monocrático, o governo da globalização deve ser de tipo subsidiário, articulado segundo vários e diferenciados níveis que colaborem reciprocamente. A globalização tem necessidade, sem dúvida, de autoridade, enquanto põe o problema de um bem comum global a alcançar; mas tal autoridade deverá ser organizada de modo subsidiário e poliárquico[138], seja para não lesar a liberdade, seja para resultar concretamente eficaz.

58. O princípio de subsidiariedade há-de ser mantido estritamente ligado com o princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado. Esta regra de carácter geral deve ser tida em grande consideração também quando se enfrentam as temáticas referentes às ajudas internacionais destinadas ao desenvolvimento. Estas, independentemente das intenções dos doadores, podem por vezes manter um povo num estado de dependência e até favorecer situações de sujeição local e de exploração dentro do país ajudado. Para serem verdadeiramente tais, as ajudas económicas não devem visar segundos fins. Hão-de ser concedidas envolvendo não só os governos dos países interessados, mas também os agentes económicos locais e os sujeitos da sociedade civil portadores de cultura, incluindo as Igrejas locais. Os programas de ajuda devem assumir sempre mais as características de programas integrados e participados a partir de baixo. A verdade é que o maior recurso a valorizar nos países que são assistidos no desenvolvimento é o recurso humano: este é o autêntico capital que se há-de fazer crescer para assegurar aos países mais pobres um verdadeiro futuro autónomo. Há que recordar também que, no campo económico, a principal ajuda de que têm necessidade os países em vias de desenvolvimento é a de permitir e favorecer a progressiva inserção dos seus produtos nos mercados internacionais, tornando possível assim a sua plena participação na vida económica internacional. Muitas vezes, no passado, as ajudas serviram apenas para criar mercados marginais para os produtos destes países. Isto, frequentemente, fica a dever-se à falta de uma verdadeira procura destes produtos; por isso, é necessário ajudar tais países a melhorar os seus produtos e a adaptá-los melhor à procura. Além disso, alguns temem a concorrência das importações de produtos, normalmente agrícolas, provenientes dos países economicamente pobres; contudo devem-se recordar que, para estes países, a possibilidade de comercializar tais produtos significa muitas vezes garantir a sua sobrevivência a breve e longo prazo. Um comércio internacional justo e equilibrado no campo agrícola pode trazer benefícios a todos, quer do lado da oferta quer do lado da procura. Por este motivo, é preciso não só orientar comercialmente estas produções, mas também estabelecer regras comerciais internacionais que as apoiem e reforçar o financiamento ao desenvolvimento para tornar mais produtivas estas economias.

59. A cooperação no desenvolvimento não deve limitar-se apenas à dimensão económica, mas há-de tornar-se uma grande ocasião de encontro cultural e humano. Se os sujeitos da cooperaç

Fonte Ecclesia

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