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Catequese do Cardeal-Patriarca no 5.º Domingo da Quaresma : «Uma Palavra de Amor»
2009-04-02 23:29:49

Introdução
1. Só sentimos verdadeiramente a importância da Palavra de Deus na nossa vida, quando nos acontece acolhê-la como Palavra de Amor. E o que é verdade para cada um de nós, é-o para a Igreja, para o seu ser e para a sua missão: ser continuamente surpreendida por essa Palavra amorosa que a desafia a ser comunhão, a anunciar, com amor, o amor de Deus, a responder-lhe com a vida que se torna louvor.

Só o amor transforma o coração do homem. João Paulo II, na sua primeira Encíclica, escreveu: “O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e se o não torna algo de seu, se nele não participa vivamente” (1).


Fomos criados assim: seres que podem amar e precisam de ser amados e que encontram aí o segredo da sua vida. Criados à imagem de Deus, homem e mulher para serem um só, em comunhão. A ausência do amor leva à alteração grave da identidade humana. A redenção só pode consistir nisso: restituir ao homem a capacidade de amar e de ser amado, de viver com os outros em comunhão. E daí a força transformadora de uma palavra de amor, que nos faz sentir que somos amados e é um convite a responder-lhe generosamente. Uma palavra de amor é mais transformadora que a palavra dirigida à inteligência. Esta alimenta o pensamento, conduz na busca da verdade e na interpretação da realidade, mas não tem o impacto de uma palavra de amor. Isto constitui a diferença, na comparação entre a sabedoria bíblica e a sabedoria grega, entre a Palavra (dabar), que sem deixar de iluminar a inteligência, transmite a força criadora do amor de Deus, e “vous”, a palavra que conduz a inteligência na busca da sabedoria. A “dabar”, o “Verbo”, dirige-se ao coração onde se encerra o sentido do homem como ser espiritual.

Que a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus e que Deus nos ama são lugares comuns na linguagem crente. Mas será possível quando escutamos essa Palavra, no momento presente e na circunstância concreta da nossa vida, escutá-la como Palavra amorosa, com a força surpreendente e perturbadora de uma Palavra de amor?

O Deus amor só pode pronunciar Palavras de amor

2. A revelação ensina-nos que Deus é mais do que alguém que ama: “Ele é amor” (1Jo. 4,8). A plenitude de Deus é-nos, assim, revelada como uma infinita voragem de amor. Se Deus fala, a Sua Palavra comunica essa intensidade. Desde toda a eternidade, Deus pronunciou uma única Palavra, o Seu Verbo, tão eterno como Deus, que nos será revelado como Seu Filho, no qual Deus se diz totalmente, como amor infinito, desde a eternidade e para a eternidade. Este amor infinito de Deus Pai pelo Seu Filho, ser-nos-á revelado como uma terceira pessoa divina, o Espírito Santo. Deus é, pois, um infinito de amor, a perfeição da comunhão entre Pessoas, iguais e distintas. O Seu Verbo eterno, a Sua Palavra é, antes de mais, uma Palavra de Deus Pai para o Seu Filho, que provoca como resposta uma Palavra do Filho, de ternura filial, para com Deus Pai. Esta Palavra do Pai e do Filho encontram a sua expressão no Espírito Santo.

O Verbo eterno é a única Palavra de Deus. Só nela Deus se exprime, na intimidade do seu mistério e no seu poder criador. Por essa Palavra, Ele criou todas as coisas, criou o homem para alargar a sua comunhão. Só por essa Palavra o podia redimir, salvando-o, no gesto máximo de amor desse Filho, em obediência à vontade do Pai, que renunciou à sua condição divina e se fez homem (cf. Fil. 2,6).

A primeira condição para escutar a Sagrada Escritura como uma Palavra de amor de Deus, é acreditar e perceber que Jesus Cristo é a única Palavra que Deus pronunciou, cuja mensagem de amor divino se foi explicitando progressivamente através dos Profetas nas próprias palavras humanas de Jesus e também nos acontecimentos que manifestaram a solicitude de Deus pelo Seu Povo. Depois de Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus, a Igreja percebeu que escutar o Antigo Testamento era escutar as palavras de amor que Deus foi dirigindo à humanidade desde o início, expressões da sua única Palavra eterna, Jesus Cristo. Como diz São João, desde o princípio é verdade que aquele que escuta essa Palavra eterna, entra na voragem do amor divino: “Naquele que guarda a Sua palavra, o amor de Deus atingiu verdadeiramente a sua perfeição” (1Jo. 2,5). É por isso que a Eucaristia é o momento em que se escuta mais profundamente esse Verbo eterno de Deus, porque aí nos sentimos verdadeiramente amados, por Deus e pelos irmãos, e respondemos ao amor, fazendo da nossa vida dom a Deus, aos irmãos, a todos os homens, a todas as causas do Reino de Deus.

A Palavra de Deus escutada como anúncio da salvação

3. A solicitude pela salvação do homem é a principal manifestação do amor de Deus pela humanidade, que atravessa toda a Sagrada Escritura. A Palavra que anuncia a salvação é, necessariamente, uma Palavra de amor. E salvar é reconduzir à intimidade da comunhão. O caminho escolhido é a aliança, contexto da solicitude e da proximidade de Deus com toda a humanidade, nos dias de Noé, com um Povo escolhido na revelação a Abraão, aliança tantas vezes quebrada e sempre renovada por Deus, até à sua ratificação definitiva, a nova e última aliança selada no sangue de Jesus Cristo, que volta a exprimir-se como aliança com toda a humanidade, de que a Igreja, Corpo de Cristo, será o sacramento. Salvar é libertar de um perigo. E o mais grave perigo que pesava sobre a humanidade, desde a infidelidade de Adão, era o de falhar o amor, falhando, assim, a própria vida. Ao Povo que quer salvar, Deus envolve-o de solicitude, liberta-o de outros perigos, o que exprime a sua vontade de salvar. As palavras com que anuncia a salvação são sempre expressão da Sua Palavra de amor.

Escutemos algumas dessas palavras de anúncio da salvação: “Os filhos de Israel gemiam na servidão e ergueram até Deus o seu grito de socorro na sua servidão. Deus ouviu os seus gemidos, e recordou-se da sua Aliança com Abraão, Isaac e Jacob. Deus viu os filhos de Israel e conheceu-os” (Ex. 2,23-25). O coração de Deus foi tocado pela aflição do Seu Povo, e diz-lhe através de Moisés: “Não tenhais medo. Permanecei firmes e vede a salvação que o Senhor fará para vós hoje (…) O Senhor combaterá por vós e vós ficareis tranquilos” (Ex. 14,13-14).

Esta promessa de salvação há-de repetir-se, através de toda a história de Israel, Palavra de amor sempre repetida, no realismo e na actualidade das circunstâncias, em todos os Profetas, até Jesus Cristo. Isaías fala em nome de Deus: “Sou eu, o que professa a justiça, e me revelo grande para salvar” (Is. 63,1). E Deus disse: “verdadeiramente este é o Meu Povo, filhos que não me renegarão. E foi para eles um salvador. Em todas as suas aflições, não foi um mensageiro, nem um enviado que os salvou, mas foi Ele em pessoa. Com a sua ternura, livrou-os do perigo” (Is. 63,8-9).

Mas é em Jesus Cristo, a encarnação da única Palavra de Deus, que esta urgência amorosa da salvação se manifesta. É assim que o Anjo anuncia o Seu nascimento: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será a alegria de todo o Povo: hoje, na cidade de David nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc. 2,11). Jesus sabe que essa é a razão de ser da Sua vida, Ele veio procurar e salvar os que estavam perdidos (cf. Lc. 19,10). Ele é a manifestação do desejo de Deus em salvar: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho único para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele não será condenado” (Jo. 3,15-18).

A Páscoa de Jesus é a Palavra de Deus decisiva para a salvação do mundo. Jesus sente a urgência, própria de um grande amor, de ver consumado o Seu dom: “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco antes de sofrer”. Ele sabe que a Sua entrega é a Palavra decisiva da aliança definitiva, “cálice da nova Aliança no Meu sangue” (Lc. 22,15.20). A salvação acontece em quem escutar essa Palavra decisiva. Escutá-la supõe a fé em Jesus Cristo; é pela fé que chegamos à salvação.

A uma Palavra de amor responde-se com amor

4. A Palavra de amor, quando é escutada, suscita a resposta adequada. Ao amor responde-se com amor. No plano pessoal a resposta de amor exprime-se na fé que é, em si mesma, a primeira experiência da caridade. Escutar Jesus Cristo é mergulhar n’Ele sem limites, aceitar a mudança que Ele introduz na nossa vida, porque a salvação começa por ser uma experiência de vida nova, conduzida pelo Espírito. A primeira resposta à escuta da Palavra é o desejo de conversão, predispondo-se o crente a colaborar com a sua vontade, com a graça de Deus de quem se espera a renovação interior. A conversão supõe o desejo e vontade pessoais, mas exprime-se na esperança da conversão.

Simultâneo a este desejo de conversão, a escuta da Palavra onde reconhecemos o amor de Deus por nós, é o louvor de Deus expresso em tudo o que fazemos, e assumido intensamente na oração como expressão de comunhão com Ele. Ela é o primeiro sinal da conversão a acontecer.

A palavra da Igreja deve ser uma palavra de amor

5. Já desde o Antigo Testamento se tornou claro que a Palavra de Deus é dirigida, antes de mais, ao Seu Povo. Para nós cristãos, ela é a Palavra dirigida à Igreja, o novo Povo de Deus, a quem Deus revela continuamente o Seu amor na Pessoa de Jesus Cristo, a única Palavra de Deus. Cristo ama a Igreja como um esposo ama a esposa. A Igreja é, na profundidade do seu mistério, fruto do amor de Deus, actual, activo, transformador e criador, expresso continuamente no dom do Espírito Santo.

Cristo deu à Sua Igreja o privilégio inaudito de falar em seu nome, quer quando proclama o Seu Evangelho, quer quando fala para orientação dos fiéis em cada tempo e em todas as circunstâncias. E isso exige que também a palavra da Igreja seja uma palavra de amor. É esta exigência que garante a autenticidade da palavra da Igreja e, em última análise, a julga. A palavra da Igreja deve levar aqueles que a escutam a sentirem-se amados por Deus.

Esta exigência exprime-se, antes de mais, na evangelização. Anunciar Jesus Cristo e o Seu Evangelho é manifestação de amor a Ele e aos homens, porque acreditamos que o anúncio do Evangelho é bom para eles, lhes abre um horizonte de vida novo. Evangelizar é uma urgência de amor.

É também por isso que o dinamismo que une os cristãos é a caridade, é o mandamento novo: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. A verdade da Igreja passa por aí; é assim que ela é fiel ao Espírito Santo. Esta caridade fraterna exprime-se na imensa variedade de situações da vida das pessoas e das comunidades: o acolhimento, o aconselhamento, a partilha de bens, a atenção ao sofrimento e à solidão. É o vasto mundo da caridade, em que a caridade da Igreja se exprime também em atitudes e que faz com que todos se sintam amados por Deus.

6. Uma concretização desta exigência da palavra da Igreja ser sempre palavra de amor é a proclamação e a defesa da verdade, porque em Deus a verdade e o amor coincidem. Se nós fossemos capazes de comunicar esta certeza de que a nossa defesa intransigente da verdade, que recebemos da Palavra de Deus é uma exigência de amor, não entraríamos na polémica do simples confronto de ideias ou das diversas compreensões possíveis da vida. A Igreja não comunica uma teoria, mas a verdade em que acredita e que recebeu de Jesus Cristo. Fiel à Palavra de Deus e à Tradição que recebeu dos Apóstolos, a Igreja não tem autoridade para adaptar a verdade ao sabor das mudanças do tempo e das circunstâncias. Pensar que é amor por pessoas concretas em circunstâncias precisas, alterar ou relativizar a Verdade, é ser infiel à sua missão. A Igreja sabe que é chamada a sofrer pela verdade.

Verdade e amor exprimiu-os Deus numa só Palavra de amor, o Verbo eterno de Deus que nós reconhecemos em Jesus Cristo. Só n’Ele podemos reconhecer o rosto da Palavra.

Sé Patriarcal, 29 de Março de 2009
†JOSÉ, Cardeal-Patriarca

NOTA:
1 - Redemptor Hominis, nº 10

Fonte Ecclesia

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