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Catequese do Cardeal-Patriarca no 4.º Domingo da Quaresma : «A Palavra e a Vida»
2009-03-29 23:28:25

Introdução
1. Neste conjunto de catequeses sobre a Palavra de Deus, é inevitável aprofundar a relação da Palavra de Deus com a vida.

Este é um tema importante na nossa sociedade contemporânea. Passa por aí a orientação ética do nosso viver em conjunto e os valores que inspiram a nossa sociedade. A sua grandeza ou fragilidade giram à volta de uma cultura da vida, que é o pano de fundo e a compreensão envolvente de decisões sectoriais, ao nível político e legislativo, no campo do Direito, e das opções da liberdade individual, domínio da ética e da moral.


A compreensão da vida que domina o nosso ambiente cultural está cheia de contradições: se por um lado a ciência lhe desdobra continuamente o horizonte maravilhoso, tanto na descoberta e compreensão da biodiversidade, como no conhecimento da complexa maravilha do ser humano, por outro permite agressões destruidoras nessa biodiversidade, e legaliza destruições da vida humana, tanto no seu início no seio materno, como na fase terminal da existência terrena. Proclamam-se, solenemente, os direitos do homem e a sua dignidade, mas pactua-se, tolera-se ou promove-se mesmo a violação contínua desses direitos. Não se é capaz de integrar harmonicamente na compreensão da vida, a sua grandeza e a sua precariedade e o sofrimento aparece incompatível com uma certa compreensão da felicidade. Embora sabendo que o homem é matéria e espírito, não se introduz na compreensão da vida as suas insondáveis potencialidades, contidas como semente, como potência, no mais íntimo do mistério do homem, que nos abrem para os horizontes do espírito, para a beleza, para a generosidade do amor, para a fé em Deus vivo e fonte da vida, para a plenitude da vida.

Para nós cristãos esta visão cultural é indesligável da Palavra de Deus, que nos revela e nos comunica a vida, que nos convida a enquadrar a nossa existência presente no horizonte alargado da sua plenitude e da sua verdade definitiva. Só assim poderemos influenciar uma cultura da vida comum a toda a sociedade.


O Deus vivo é a fonte da vida

2. O primeiro dado que a experiência nos comunica é que a vida tem uma fonte. Só um ser vivo comunica a vida. Esta recebe-se sempre de alguém que a comunica, que a partilha. Ninguém vive a partir de si mesmo e só para si mesmo. E a natureza também nos ensina que o processo dessa comunicação é a mais bela e intensa expressão da própria vida.

A primeira verdade que a Palavra nos transmite é que Deus é a origem da vida: Ele é vivo e é a fonte da vida. Isto diz-nos que acreditar em Deus e viver relação confiante com Ele é elemento decisivo para a sua compreensão. Se só um ser vivo transmite a vida, só Deus resolve o enigma fundamental da origem primeira da vida. Se esta procede d’Ele, Deus é a fonte da sua grandeza e da sua dignidade.

Ser vivo é, na Sagrada Escritura, o principal atributo de Deus. Josué disse aos Israelitas: “Aproximais-vos e escutai a Palavra do Senhor vosso Deus. Assim reconhecereis que um Deus vivo está no meio de vós” (Jos. 3,9-10). O homem, ser vivo, sabe que recebeu a vida de Deus e viver é sentir-se atraído por essa fonte da vida: “A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus?” (Sl. 42,3). O crente é um servo do Deus vivo (cf. Dan. 6,21), só pode jurar pelo Deus vivo (cf. Juiz. 8,19). O israelita sabe que ser vivo é o atributo de que Deus gosta mais: “Eu sou vivo e a glória de Yahwé enche toda a terra” (Nm. 14,21).Os seres vivos são, pois, em toda a terra, a proclamação da glória de Deus.

No Novo Testamento a fé na divindade de Jesus exprime-se na convicção de que Ele, o Filho de Deus, é O vivo, é a fonte da vida, com a particularidade de que n’Ele, Filho de Deus feito Homem, essa plenitude é a plenitude da vida humana, porque Ele, homem, recebe tudo o que Deus, O vivo, lhe pode e quer comunicar. Cristo torna-Se, assim, a fonte e o caminho da vida: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo. 14,6).

Em Nosso Senhor Jesus Cristo está encerrado todo o mistério e todo o itinerário da vida. Como Verbo eterno de Deus, Ele era vivo desde toda a eternidade (cf. Jo. 1,14). Ele é o Verbo da vida (cf. 1Jo. 1,1). Ele é, verdadeiramente, a fonte da vida: “Com efeito, como o Pai dispõe da vida, assim concedeu ao Filho poder dispor da vida” (Jo. 5,26); “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a luz dos homens” (Jo. 1,4). Por isso, Ele a pode comunicar em abundância: “Eu vim para que as minhas ovelhas tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). Porque esta plenitude de vida se torna, em Cristo, plenitude de vida humana, para quem se une a Cristo pela fé e pelo baptismo, Cristo é a fonte da vida, a garantia do seu aprofundamento contínuo, até atingirmos, no Céu, a plenitude que está n’Ele. São Paulo exclamará: “Para mim viver é Cristo” (Fil. 1,21). Em Cristo, a vida manifesta-se na sua qualidade de dom recebido e dom partilhado. Ele põe a claro o seu dinamismo fundamental.


Viver é ser fiel

3. Tendo consciência de que recebeu de Deus a vida, o homem só a pode viver num contacto contínuo com a sua fonte, percorrendo os caminhos que Deus lhe comunica pela Sua Palavra, e propõe continuamente ao Seu Povo: “Eu coloco diante de vós os caminhos da vida e os caminhos da morte” (Jer. 20,8); “Tu me ensinarás os caminhos da vida, diante da tua face, plenitude de alegria; à tua direita delícias eternas” (Ps. 16,11). No caso de Cristo, já vimos que se afirma como caminho e vida. Isto mostra-nos que ser fiel é viver. “O justo viverá pela sua fidelidade” (Há. 2,4), diz o Profeta Habacuq. A mesma convicção proclamará São Paulo: “O justo viverá pela sua fé” (Rom. 1,17).

Viver a vida como fidelidade é o fundamento das exigências morais na nossa caminhada. Antes de mais reconhecermos que não somos senhores da vida, mas seus servidores. Reconhecer a sua fonte é procurar que a vida em nós tenha a mesma pureza e autenticidade que tem em Deus, embora não a partilhemos ainda em plenitude. Depois devemos seguir, com docilidade e obediência, os caminhos que Deus nos indica pela Sua Palavra; devemos partilhar a vida, porque na sua fonte divina ela é dom e partilha. Para nós cristãos, viver na fidelidade é sermos fiéis a Jesus Cristo.


O pecado e a morte

4. A morte aparece como a destruição da vida. Para quem gosta de viver ela aparece como uma desgraça. Os justos do Antigo Testamento, para quem a morada dos mortos não era vida verdadeira, sofrem com o fim da existência terrena e pedem a Deus que os faça viver, porque na morada dos mortos Ele não será louvado e, por isso, a vida não será participação na vida divina. A pouco e pouco vai fazendo caminho a convicção de que a morte pode ser vida, se for oferecida. Encontramos essa convicção no Livro dos Macabeus (cf. 2Mc. 7,23.36), mas sobretudo em Isaías, no poema do Servo sofredor, anúncio do Messias. Em Cristo essa convicção torna-se verdade definitiva, porque a morte de Cristo, vida oferecida por amor, não só é vida, mas revela-se como a sua fonte definitiva.

Mas na Sagrada Escritura a primeira negação da vida é o pecado. Este aparece como a pretensão de a autonomizar da sua fonte, vivê-la como se o homem dela fosse senhor, não apenas da sua, mas da dos outros e de todas as outras expressões da vida. Foi esse o pecado de Adão: querer viver a sua vida como se fosse senhor absoluto dela, desconhecendo Deus como sua fonte e os caminhos de vida que o Senhor lhe tinha revelado (cf. Gen. 3). É por isso que na Sagrada Escritura o pecado é chamado morte, conceito que não significa tanto o fim da vida, mas a sua adulteração, uma traição à vida.

É sobretudo o Apóstolo Paulo que estabelece a relação entre o pecado e a morte; o pecado é uma forma de morte, mais grave que a morte física, porque em Cristo esta afirma-se como expressão de vida. Pelo pecado de Adão, a morte estendeu-se a toda a humanidade; pela morte de Cristo, expressão máxima da vida como dom, a verdadeira vida é restituída a todos. É o mistério da redenção que consiste na restituição ao homem da possibilidade de viver verdadeiramente. Porque apesar do pecado e da morte que este significa, Deus não desiste da vida, quer que o pecador volte a viver. Deus chama agora os homens à vida, não a partir do nada, mas a partir da sua experiência de morte e de pecado que os tinha afastado da verdadeira vida. Encontramos essa mensagem já nos Profetas: o anúncio da redenção é a firme decisão de Deus de recuperar para a vida o pecador: “Por minha vida, oráculo do Senhor, não tenho prazer na morte do pecador, mas no seu regresso, que o faça mudar de caminho para ter a vida. Voltai do vosso mau caminho. Porque haveríeis de morrer, casa de Israel?” (Ez. 33,11).

Este regresso aos caminhos da vida tornou-se possível pela morte de Cristo. Ao viver a morte como plenitude da vida, totalmente oferecida, Cristo venceu a morte que o pecado tinha provocado. Segundo Paulo, Cristo venceu todos os inimigos, e o último inimigo a ser vencido foi a morte (cf. 1Cor. 15,26). A redenção consiste no retomar os caminhos da vida e isso só é possível em Cristo, que ao fazer-nos participar na Sua ressurreição, nos promete a plenitude da vida, corpo e espírito, tão esfacelada pelo pecado e pela morte. O drama da vida está intimamente ligado ao drama da Páscoa, que estamos a celebrar.


5. Podemos perguntar-nos em que medida esta morte provocada pelo pecado, que se apresenta como afastamento dos caminhos da vida, se confunde com a nossa morte, a morte física, que marca o fim da nossa existência terrena, como a conhecemos. Dada a universalidade do pecado, este atingiu a morte física de todos os homens, e torna difícil imaginar como seria a morte física sem o pecado. Mas o que é certo na fé cristã é que Cristo venceu a morte, morrendo por amor e restituiu à humanidade pecadora a possibilidade de retomar os verdadeiros caminhos da vida. Todo o cristão pode vencer, vivendo em Cristo, o pecado e a morte. Isso não significa que deixe de morrer, mas a sua morte pode tornar-se expressão e passagem decisiva para outros horizontes de vida. E esta é a nova situação do homem perante a vida e perante a morte. Quem não venceu o pecado, não vence a morte. E continua a haver muitos que morrem sob o signo do pecado. Para eles a morte é fim, é drama ou fatalidade. Viver a morte sob o signo da vida, torna possível viver a morte como oferta de amor, fazer dela um momento de entrega da vida a Deus; a morte é, então, momento alto da confiança e do abandono, expressões nobres da obediência da fé. É expressão decisiva da nossa união a Cristo e de morrer na morte de Cristo, esperando que ela seja, como a d’Ele, passagem para a plenitude da vida. São Paulo resume toda essa densidade na expressão “morrer para o Senhor”. Viver a nossa morte unidos à morte de Cristo, permite-nos dar-lhe sentido, o mesmo da Sua morte: redenção do homem, a nossa redenção, esperança da ressurreição. Morrer assim é experimentar a síntese entre o baptismo, a Eucaristia e a morte. A nossa redenção consiste nisso: abrir-se definitivamente à vida em Deus.


Em Deus está a vida eterna

6. Se Deus é a fonte da vida, nós aspiramos à plenitude e à eternidade. Participamos na vida divina, que se tornou próxima da nossa realidade em Jesus Cristo e vivemos ao ritmo da vida em Deus. A vida humana deixa de ser um fenómeno, analisado pela ciência, circunscrito no tempo, reduzido às nossas capacidades de viver. A nossa vida é a mesma de Deus, dom contínuo do Espírito de Cristo ressuscitado. É em Deus que a nossa vida adquire a dimensão da eternidade. Só vivendo com Deus e como Deus, abriremos o nosso horizonte de vida à plenitude da eternidade. Só Deus é a nossa terra prometida. O nosso percurso é participação naquele que Jesus Cristo percorreu. Na Sua morte e ressurreição, a vida humana atingiu a plenitude em Deus. “Deus será tudo em todos” (1Co. 15,28).

Só a Palavra de Deus nos liberta duma perspectiva de eternidade como prolongamento da existência que conhecemos neste mundo, quando muito sem dor nem sofrimento. A vida eterna que desejamos sempre existiu em Deus e existiu plenamente num homem, Jesus Cristo, no qual começamos a viver a vida de Deus, experimentando que Ele é a vida, a fonte da vida, a promessa da vida. E nessa descoberta, somos conduzidos pela Palavra de Deus.

Sé Patriarcal, 22 de Março de 2009

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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