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"O entusiasmo surpreende-me"
2008-11-17 22:27:21

interpretação dos textos bíblicos é uma ciência que acompanha as comunidades cristãs, com os primeiros padres da Igreja a serem, ainda hoje, referências. Mas o livre estudo dos textos bíblicos, sem amarras doutrinárias ou resquícios inquisitórios, é recente na história. Surgiu pela mão das igrejas protestantes, que se libertaram do latim e traduziram a Bíblia para as línguas autóctones - vernáculas - na dinâmica da contestação à infalibilidade papal.

A crítica histórica e literária, e mais recentemente a arqueologia, criaram novas plataformas de estudo sobre a Bíblia, nem sempre agarradas à perspectiva da fé. Nos últimos anos, outras narrativas, inflacionadas mediaticamente, ousaram novas leituras e estranhos olhares sobre a história por trás das estórias da Bíblia, gerando confusões.

Centenas de delegados reuniram-se durante um mês em volta do Papa para reflectir sobre A Palavra de Deus. O acontecimento, pela forma como foi apresentado, soa a déjà vú milenar.

Enquanto decorria o sínodo, o Cardeal-Patriarca de Lisboa fez um apelo aos protagonistas culturais para que não deixem morrer a Palavra. D. José Policarpo, exortou "todos os que falam ou escrevem (…), nos palcos da política, da cultura, da comunicação social", a que "salvem a Palavra", que "exprime a densidade do drama humano, do sofrimento, do desejo e anseio, da busca da verdade, da definição de um projecto". Por outras palavras, para que recuperem a sabedoria interpelada da Bíblia na contemporaneidade.

Um pequeno exercício de memória permite-nos lembrar recentes iniciativas de edição portuguesa e impacto popular, como as bíblias em fascículos coleccionáveis, em vários jornais, ou a inédita Bíblia, o Livro dos Livros, lançada pelo jornal Expresso, com comentários do biblista Joaquim Carreira das Neves e ilustração de Pedro Proença. Não faltam exemplos da inspiração bíblica em iniciativas culturais.

A Bíblia Manuscrita, uma iniciativa da editora protestante Sociedade Bíblica, trouxe à praça pública outra abordagem invulgar, com milhares de estudantes e centenas de figuras públicas, mais ou menos crentes, a contribuírem para uma Bíblia escrita à mão.

Na Austrália, a criatividade levou recentemente a Sociedade Bíblica a editar um volume, com alguns dos principais livros da Bíblia, para surfistas, impermeável para ser lida no descanso das ondas.

A Bíblia é reconhecida, transversalmente, na sua riqueza narrativa e histórica, como referência cultural e de reforço da dignidade humana.

Estatísticas recentes têm revelado, no entanto, que a Bíblia é apenas mais um livro de estante para os católicos, decorativo e pouco apelativo no panorama das leituras apressadas, próprias deste tempo. No caso do catolicismo no sul da Europa, a Bíblia sofre as consequências de uma tradição de devoções várias, alicerçadas numa crónica iliteracia religiosa.

Faltará criatividade?

O recente sínodo dos bispos católicos ganhou a dimensão de uma resposta, uma reacção. Os participantes aprovaram 55 proposições, nas quais o Papa deverá basear-se para redigir uma Exortação Apostólica. Os primeiros indícios apontam no sentido de uma maior presença feminina nas leituras, de homilias menos sociais e mais teológicas - mas de linguagem acessível -, da necessidade de traduzir a Bíblia em mais línguas e de melhorar a difusão, aproveitando os modernos canais de comunicação (!).

Há também referências ao diálogo inter-religioso, mas não se percebe ainda o seu eventual alcance no diálogo entre a Bíblia e os livros sagrados de outros credos.

Não será uma Exortação Apostólica, ou um sínodo de bispos a fazer a diferença entre a importância da Bíblia, para além do dinamismo da fé, e o impacto da Palavra junto dos cristãos.

A centralidade da Palavra na vida da Igreja, das igrejas e comunidades cristãs, não é um valor abstracto. Mas basta percorrer as igrejas aos domingos para, salvo raras excepções, ver, e ouvir, uma Palavra sem consequências práticas, sem alegria, sem mistério…

Para ser mais do que beleza narrativa e referência de princípios, ou seja, para ser Palavra, a Bíblia tem de escorrer na vida, com a naturalidade da partilha e força da fraternidade, com a exegese enquadrada nas contingências do quotidiano.

Soltar A Palavra de Deus nos "canais Internet de difusão virtual em linha, nos cd's, nos dvd's e nos iPod", sem esta experiência, será um erro semelhante às falhadas proclamações dominicais.

O mistério da(s) Palavra(s), começa por ser pessoal e interpelante. A(s) Palavra(s) prevalece(m) acima de regras poluentes, de doutrinas que afastam e obstaculizam aproximações ou promovem fundamentalismos.

Se a Igreja retomar a prioridade da Bíblia na formação dos fiéis, terá de repensar atitudes, disponibilidades e acolhimentos. Ao invés, a Palavra continuará a ser vedada a muita gente.

Entre as intervenções no sínodo - algumas muito lúcidas - prevaleceu uma certa lógica de supremacia estrutural, que pode ameaçar a fluidez da Bíblia e a vivência da Palavra.

"O entusiasmo (dos bispos e cardeais participantes) surpreende-me", dizia-me há dias, com ironia, um biblista que há muitos anos trabalha em traduções e promove reflexões.

Nota: Já depois de terminar em Roma o Sínodo dos Bispos, D. José Policarpo falou em Lisboa da Nova Evangelização, lamentando uma "estrutura canónica" demasiado "rígida para deixar a liberdade de resposta" às procuras de Deus. O Cardeal-Patriarca entende que, se a resposta às inquietações deste tempo for dada apenas "com regras, com disciplina e coisas canónicas", a Igreja "perde a sensibilidade e a sintonia com as pessoas que procuram verdadeiramente Deus".

Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt


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