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"Já não me lembro em quem votei no conclave"
2008-08-13 21:44:11

Entrevista com José Saraiva Martins. É o único cardeal português que serviu directamente dois papas. Foi responsável por centenas de processos que levaram a novas beatificações e canonizações enquanto prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, cargo a que resignou recentemente. Durante muitos anos cruzou-se nos seus passeios pelos jardins do Vaticano com Joseph Ratzinger. Sorri mais do que a maioria dos religiosos porque "acha que há muitas razões para o fazer".

Acredita mesmo nos milhares de milagres que existem nos processos de beatificação que conduziu nos últimos anos no Vaticano?

Eu sou por natureza um bocado racionalista mas acredito nos milagres. E a minha fé nos milagres tornou-se muito mais forte durante a minha prefeitura porque há factos que não têm nenhuma explicação natural. Pode-se ser racionalista, ou o que quiser, mas não se encontra nenhuma explicação para factos em que nós tocamos com a mão.

E como é que se prova que é milagre?

São convidados médicos especialistas, todos são catedráticos ou de grande estatuto, e quando dizem que não têm nenhuma explicação natural tem de se acreditar. Suponha-se uma pessoa doente de cancro que está condenada à morte, entretanto o doente ou quem por ele pede ao Santo Condestável - por exemplo - que o cure e a doença desaparece como que por encanto. Como é que se explica? Nesses casos, diz-se que "a cura deve-se à intercessão do Santo Condestável elevado aos altares", ou seja, que Deus fez aquele milagre por intercessão.

Podem existir outras razões!

Temos de nos render à evidência e vou-lhe dizer uma coisa, é que o problema da fé não tem nada que ver com o milagre. A santidade não consiste num milagre. O problema da fé não consiste, não tem nada a ver com o milagre, tanto que não há nenhuma dificuldade em chamar um médico ateu, agnóstico, para vir discutir com os nossos médicos católicos. Uma vez chamámos um médico da África do Sul porque era famosíssimo no sector em que se tinha verificado a cura e completamente agnóstico. Ele veio à congregação discutir com os nossos médicos e chegou à conclusão de que não era milagre, obviamente não acreditava em milagres, mas disse: "Isto para mim não tem nenhuma explicação." Se o médico é católico, dentro de si pensará: "Para mim isto é um milagre." Mas não o deve dizer porque não nos interessa, é um problema de ciência e não de fé. O que se quer ouvir é se cientificamente existia alguma explicação, quer-se simplesmente uma prestação científica e profissional, não um acto de fé.

Mas o escrutínio da vida do candidato a santo também pode ser manipulado?

Não. A congregação, os teólogos e todos os envolvidos atêm-se exactamente à documentação que vem no processo, recolhida na fase diocesana, e não há lugar para falcatruas. É tudo à luz do sol.

Quanto é que custa fazer um santo?

Isso não se pode responder assim de maneira unívoca. Algumas das causas são muito simples enquanto outras são muito complexas e estas podem ter mais dificuldades e levam mais tempo. Se foi apresentada a Roma uma cura considerada milagrosa e os médicos chegam à conclusão de que não é um verdadeiro milagre e pedem outros elementos para tirar todas as dúvidas, então é preciso outra convocação dos médicos e há que pagar a segunda convocação...

As congregações mais ricas têm mais facilidade em obter a beatificação do seu santo?

Esse é um mito que é preciso desfazer. Aqui o dinheiro conta pouco ou nada. Nós dizemos que uma causa pobre é uma pobre causa porque quando uma causa não é pobre, quando é de alguma figura extraordinária, então são os próprios fiéis que se oferecem voluntariamente a pagar as despesas.

O Vaticano preocupa-se em fazer uma distribuição de santos tendo em conta a geografia?

Era um critério de João Paulo II e, portanto, da minha congregação. De facto, a geografia da santidade alargou-se muitíssimo, estendeu-se a todos os continentes porque havia a impressão de que os santos eram todos europeus ou dos países latinos da antiga tradição cristã. Então, procurou-se alargar e foram feitos bastantes santos na Ásia e em todas as categorias sociais, que foi outro critério.

É dos poucos portugueses que vive no Estado mais secreto do mundo. Porque é que há tão poucos portugueses no Vaticano?

De facto sou o primeiro cardeal português a ser prefeito numa congregação da Cúria Romana como também o fui noutros cargos e é de lamentar que assim seja porque a língua portuguesa é a segunda da Igreja e é uma das línguas oficiais em que se publicam os seus documentos. Seria muito importante que houvesse mais portugueses, não necessariamente como prefeito ou como secretário, mas a trabalhar lá como oficiais nas congregações da Cúria Romana. Mas se não vão para Roma, se não estão em Roma...

Então, será difícil termos mais um Papa português?

Isso pergunte a Deus porque ele é que sabe.

Também só há dois candidatos!

Só.

Acredita que poderá haver mais algum?

Nada é impossível? O futuro só Deus o sabe. Como eu não sou profeta...

Foi um dos eleitores do actual Papa...

Sim.

Votou nele?

Já não me lembro em quem votei no conclave.

A sua resignação deve-se à idade ou porque não concorda com os caminhos por onde Ratzinger está a levar a Igreja?

Eu devia ter ido para a reforma já há mais de um ano e meio, aos 75 anos, e não fui porque o Papa me pediu expressamente para continuar.

Não tem problemas em servir este Papa?

Não, absolutamente. Conheço muitíssimo bem este Papa e as nossas relações são óptimas.

Mas era um cardeal com perfil autoritário!

Depende daquilo que se entenda por autoritário, depende. Mas eu, com o cardeal Ratzinger, tenho muitas recordações, muito boas e muito bonitas. Tenho o costume de dar o meu passeiozinho à tarde depois da sesta pelo Vaticano e o cardeal Ratzinger tinha o mesmo costume, encontrávamo-nos quase todos os dias ao dá-lo pelo mesmo lugar, cumprimentávamo-nos e cada um seguia no seu caminho. No mês passado celebrei os cinquenta anos de sacerdócio e ele mandou-me uma carta muito bonita - até bonita demais - recordando a nossa colaboração desde sempre.

Wojtyla e Ratzinger são Papas muito diferentes. Qual é o melhor para a Igreja Católica?

Os dois. É claro que são diferentes, como é muito claro que João XXIII era muito diferente de Pio XII. Ou Paulo VI muito diferente de João Paulo I. Os Papas são todos diferentes porque cada um é como é. Onde é que está escrito que um Papa deve ser a fotocópia do seu imediato predecessor? Não pode, nem deve, porque somos todos diferentes. Se eu tivesse sido eleito Papa agiria de acordo com o meu modo de ser. A diversidade dos Papas é um grande enriquecimento para o pontificado, cada um aporta a riqueza do seu carisma próprio e se todos fossem iguais nem para a Igreja seria bom. O Papa tem de se preocupar em ser ele próprio e enriquecer a Igreja com a aportação que só ele pode dar ao pontificado.

Diz-se que João Paulo II praticamente escolheu o seu sucessor ao nomear a maior parte dos cardeais durante o seu pontificado.

Ele nomeou os cardeais porque tem de nomear mesmo, morrendo ou não morrendo é preciso fazer novos cardeais e sem pensar "serão os futuros eleitores". Isso é um acto normal e a cada dois ou três anos há um consistório para fazer novos cardeais, o resto não existe nem tem que ver com a votação no conclave.

Vive no Vaticano. É preciso ter uma personalidade muito especial para viver nessa corte?

Não! Em primeiro lugar não se pode dizer que o Vaticano é uma corte. É uma ideia que se tem da Cúria e que às vezes não corresponde à realidade. A Cúria é composta por cardeais, arcebispos e bispos, sacerdotes, etc., que são pessoas muito normais e onde há um ambiente muito bom e familiar.

O Vaticano sempre deu azo a muita criação literária. Dan Brown fez livros com intrigas e caves repletas de segredos. É verdade?

O Vaticano tem a sua história, riquíssima em muitos aspectos, que interessa muitas vezes a pessoas assim. Mas o Vaticano é transparente, não tem nenhum mistério lá dentro.

Leu o Evangelho, de José Saramago?

Eu li. O que ele diz não corresponde à realidade. Jesus Cristo é uma pessoa muito mais simples.

A sua recente resignação de prefeito da Congregação para as Causas dos Santos afasta-o de Deus?

Não. A minha vida continuará igual, consagrada a Deus e à Igreja.

Mas como será a sua nova vida?

No Vaticano não vai mudar nadinha porque eu também sou membro de muitos outros dicastérios ou congregações da Cúria Romana: da Congregação dos Bispos, de quem depende a escolha dos novos bispos, e que dá muito trabalho; membro da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos; do Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde e da Pontifícia Comissão para o Governo do Estado da Cidade do Vaticano... A minha vida vai continuar no mesmo lugar, muito cheia de trabalho, sempre na Cúria Romana.

Só não se preocupará com a santidade dos homens?

Temos sempre de nos preocuparmos com a santidade dos homens porque um padre, um bispo, um cardeal é sempre tal onde quer que se encontre. É um pastor e tem de se preocupar com a santidade.

Fonte DN

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