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Férias com Deus
2001-07-31 19:48:13

Será que, para um cristão, pode haver “férias sem Deus”, a ponto de ter de se lembrar que as férias devem ser sempre “com Deus”? Ou será, simplesmente, que importa privilegiar as férias como ocasião propícia para um “mais” e “melhor” tempo com Deus do que o dia a dia apressado que todos, em maior ou menor escala, vamos vivendo?

Ou não teremos de ir, antes, um pouco mais fundo quando relacionamos Deus com os tempos e as situações que vivemos, colocando-nos o mais honestamente possível a questão de Deus nas nossas vidas?


Por mim, julgo que valeria a pena reflectir um pouco nesta última direcção. Para se evitar cair nas receitas demasiado rápidas ou nas perspectivas excessivamente curtas, que, tendo embora aspectos válidos, podem perder muito do seu sentido se não forem integradas numa atitude existencial mais ampla. E assim também para podermos ter uma percepção mais justa do nosso próprio caminhar na fé e dos processos que podem conduzir a uma maturidade cada vez maior do viver crente.

Está suficientemente diagnosticado que a religiosidade, nas suas multifacetadas expressões, não significa sempre nem garante por si só o acolhimento autêntico do verdadeiro Deus. Citando J. B. Metz, o Cardeal Ratzinger caracterizou mesmo, não há muito, os tempos que vivemos como sendo de uma “crise de Deus”, camuflada por uma “religiosidade vazia”. A tendência a construir um Deus à nossa imagem e semelhança bem como o uso do nome de Deus em vão são realidades bem mais presentes na vida diária do que estaremos dispostos a admitir.

Para já não falarmos das usurpações, flagrantes na sua contradição, de um Deus a nosso favor e ao nosso serviço, como se Deus tivesse de estar necessariamente de um dos lados da barricada (nas relações humanas, nos emprendimentos económicos, nos conflitos sociais, nos confrontos bélicos, etc.) e contra o outro lado (ou, pelo menos, ausente dele). E, com frequência, só em retrospectiva e pela força de acontecimentos inesperados da vida, é que nos damos verdadeiramente conta como muitas das nossas ideias de Deus, linguagens sobre Deus, orações a Deus, têm muito mais que ver com as nossas expectativas, problemas e concepções bem humanos (de certa forma com os nossos ídolos!) do que propriamente com o Deus que se nos revelou em Jesus Cristo e continua presente e actuante na força do seu Espírito.

A experiência de Deus no seu Mistério, como Transcendência que se quis tornar próxima de nós mas não está simplesmente ao nosso dispor (das nossas capacidades, das nossas ideias, dos nossos projectos), pertence ao nuclear da existência cristã. É a consciência de que a fé, no seguimento de Jesus, é simultaneamente encontro de Deus e contínuo caminho de busca do mesmo Deus.

A descoberta de Deus que a fé possibilita no acolhimento do Mistério que suporta a nossa existência não é uma posse, mas um percurso de vida, ou seja, nunca encontrámos Deus ao ponto de não O termos continuamente de procurar. E a consciência deste elemento estruturante do viver na fé coloca-nos não só num dinamismo existencial de acolhimento e de busca como nos desperta para uma mais aguda percepção do que é verdadeiramente importante e prioritário na existência cristã e no viver como Igreja.

Nesse dinamismo de acolhimento e de busca há, sem dúvida, situações, momentos, expressões, que podem ser sinal privilegiado ou ocasião marcante de descoberta de Deus e de encontro com Ele. O que acontecerá, na maior parte das vezes, não da forma linear que imaginávamos ou gostaríamos, mas através das múltiplas e inesperadas interpelações que podem emergir dos acontecimentos e experiências mais diversos da vida: na vulgaridade do quotidiano ou em situações de excepção, como surpresa ou interrogação, sob o modo da perplexidade ou da contradição, na dimensão do festivo e da alegria ou, também, sob a forma da dor e do sofrimento...

É nesta perspectiva de acolhimento e de busca que as férias podem ser, então, um momento significativo de encontro com Deus. Não porque Deus esteja ou tenha de estar mais presente nelas que noutras circunstâncias quotidianas, mas simplesmente porque os horizontes do nosso olhar poderão ser mais amplos e profundos, alguns dos sinais da presença de Deus neste mundo (por vezes tão opaco!) podem tornar-se mais perceptíveis, talvez os ouvidos do nosso coração possam estar mais sensíveis às suas interpelações.

O que, mais uma vez, pode acontecer de formas e por caminhos muito diversos: desde a maior disponibilidade interior para o silêncio e a oração à atitude contemplativa que se abre aos sinais do Mistério; desde o encontro com a riqueza humana e o amor dos outros à percepção mais exigente da realidade que nos envolve; desde a fecundidade que resulta da renovada consciência das nossas fragilidades ao acolhimento mais sensível do sofrimento e das necessidades alheios...

“Férias com Deus” serão, então, aquelas que nos ajudem a dar mais um passo neste percurso, sempre inacabado ao longo da vida, de irmos descobrindo quem é o Mistério que chamamos Deus e o que Ele significa verdadeiramente para nós, como Amor que suporta o nosso viver e como Esperança definitiva para o nosso morrer.

José Eduardo Borges de Pinho
Professor da UCP
Grupo Consultores CECS

Fonte Ecclesia

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