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O Verbo eterno encarna na palavra humana: o carisma profético - Catequese do Cardeal-Patriarca no 2º Domingo da Quaresma
2008-02-20 23:21:03

1. O silêncio que se abateu entre o homem e Deus, devido ao pecado, só pode ser quebrado pelo próprio Deus, revelando-Se, comunicando a homens escolhidos, por meios extraordinários, a Sua Palavra de amor.

A revelação da Sua Palavra não se sobrepõe ao homem, é feita por meios humanos, valorizando aqueles dinamismos que, no homem, ainda guardam abertura à Palavra do Senhor. A revelação não é só para o homem, é feita com o homem, empenhando a sua inteligência, o seu coração, a sua acção na história, a sua capacidade relacional na recepção da Palavra de Deus. Como diz Santo Agostinho, “Deus fala-nos por meio de homens e à maneira humana porque, falando-nos assim, Ele procura-nos”[1]. É o dinamismo da Encarnação que se inaugura e foi o caminho escolhido por Deus para restabelecer o diálogo e a intimidade com os homens. Este dinamismo vai ter a sua plenitude em Jesus Cristo, o Verbo encarnado, a Palavra eterna de Deus feita homem. N’Ele Deus adquire a possibilidade de falar abertamente aos homens em linguagem humana.

A todos aqueles que Deus escolheu para comunicar, de modo extraordinário, a Sua Palavra, e revelar os segredos do Seu coração, chamamos profetas, sendo Cristo o Profeta por excelência. Nesta Catequese apresentaremos as características principais do carisma profético, caminho escolhido por Deus para que, ainda hoje, possamos escutar a Sua Palavra, reconhecer o Seu amor, e entrar na Sua intimidade.

Prioridade da revelação pessoal de Deus

2. Tudo tem início na disposição de Deus de Se revelar, isto é, de abrir o Seu coração e manifestar aos homens a Sua intimidade, o Seu amor por eles e o Seu desígnio de salvação, como diz o Concílio, de “se dirigir aos homens no seu imenso amor, como a amigos”[2]. Esta revelação de Deus é prévia a qualquer palavra humana, escrita ou falada, a que chamamos a Palavra de Deus, e é a experiência a alcançar através dessa palavra humana. A Palavra de Deus, escrita ou falada, só produz todo o seu efeito quando põe aqueles que a acolhem em contacto com a intimidade de Deus.

Deus faz esta revelação a pessoas escolhidas, algumas desde o seio materno: “antes de te ter formado no seio materno, Eu te conheci, consagrei-te antes de teres saído do seio materno” (Jer. 1,5). São vários os modos como Deus se lhes revela, mas todos eles têm a certeza clara de que Deus lhes falou e os enviou, que a Sua Palavra os invadiu e tomou posse das suas vidas, violentando mesmo a sua existência natural. Amos confessa: “Eu era pastor e cultivava sicómoros; foi Deus que me arrancou ao meu rebanho e me disse: vai profetizar ao meu Povo Israel” (Am. 7,15). E Jeremias, na dureza da missão que Deus lhe entregou, exclama: “Tu seduziste-me, Yahwé, e eu deixei-me seduzir; Tu dominaste-me, foste o mais forte” (Jer. 20,7). Para todos eles esta revelação de Deus marca o destino das suas vidas; eles passam a viver segundo as exigências da vontade e do plano de Deus para Israel seu Povo. Os profetas sentem, por vezes, a sua missão como uma violência de Deus.

Mas Deus recompensa-os, estabelecendo com eles uma grande intimidade, experiência que é explicitamente referida em relação a Moisés, o grande profeta: “Yahwé conversava com Moisés face a face, como um homem conversa com um amigo” (Ex. 33,11). E o Livro dos Números acentua o modo diferente como Deus trata com Moisés e os outros profetas: “Se há entre vós um profeta, é em visões que Eu Me revelo a ele, é em sonhos que lhe falo. Não é assim com o meu servo Moisés, ele habita na minha casa, falo-lhe boca a boca, na clareza e não por enigmas e ele vê a glória de Yahwé” (Num. 12,6-8).

Mas a total intimidade do homem com Deus não era ainda possível a Moisés, pois, no desígnio de Deus, ela estava reservada a Jesus Cristo e será a manifestação da Sua glória. Quando Moisés pede a Deus que o deixe ver a Sua glória, Deus diz-lhe que isso ainda não é possível. Ele só a poderá contemplar parcialmente, na sombra de Deus e protegido pela Sua própria mão (cf. Ex. 33,18-23).

Deus anuncia a Moisés um profeta futuro que viverá completamente esta intimidade com Deus: “Suscitarei para eles, do meio dos seus irmãos, um profeta semelhante a ti, porei as minhas palavras na sua boca e ele dir-lhes-á tudo o que Eu lhes ordenar. Se um homem não escutar as minhas palavras que este profeta pronunciar em Meu nome, Eu próprio pedirei contas a esse homem” (Deut. 18,18-19).

E para o Evangelista São João, Jesus é este profeta anunciado e prometido: Ele é o novo Moisés. A seguir ao milagre da multiplicação dos pães, a multidão exclama: “Ele é verdadeiramente o Profeta que deve vir ao mundo” (Jo. 6,14). Jesus, não só tem uma intimidade maior com Deus do que o próprio Moisés, mas anuncia o verdadeiro pão da vida, pão do Céu que alimenta mais definitivamente que o maná do deserto[3]. A intimidade de Jesus, Verbo encarnado, com Deus é total. São João não se cansa de afirmar que a Palavra humana de Jesus brota de Deus, escutou-a na intimidade com o Pai. “Ele diz as palavras de Deus” (Jo. 3,34); diz “o que o Pai Lhe ensinou” (Jo. 8,28); Jesus fala-nos a nós o que o Pai Lhe falou a Ele (cf. Jo. 12,50). O mistério profético de Moisés e de Jesus é da mesma natureza. A diferença entre eles é que, em Jesus, a intimidade com Deus é total, Ele pode verdadeiramente contemplar a glória de Deus; por isso as Suas palavras são espírito e vida (cf. Jo. 6,63).

A palavra dos profetas é inspirada pelo Espírito Santo

3. Deus revela a Sua Palavra aos profetas, porque quer falar ao Seu Povo. Envia-os a anunciar ao Povo essa mensagem com as suas palavras humanas. Para que o Povo O possa escutar, Deus tem de lhe dirigir a Sua Palavra através da palavra humana dos profetas. Para que esta seja a expressão fiel da Palavra eterna de Deus, Deus revela-Se-lhes misteriosamente e assiste-os com o Seu Espírito para que digam com palavras humanas aquilo que Deus é e quer, o que lhes revelou. Só a partir dessa intimidade misteriosa o profeta pode falar em nome de Deus[4]. A fidelidade e perfeita correspondência da palavra profética à Palavra revelada, ou seja, ao que Deus verdadeiramente quer dizer ao Seu Povo, é inspirada e garantida pelo Espírito Santo. Assim a palavra dos profetas e dos apóstolos é verdadeiramente Palavra de Deus; aqueles que a pronunciaram e proclamaram acabam por acreditar nela e por alimentar, a partir dela, a própria intimidade com Deus. É por isso que ela é irrevogável e definitiva: o profeta não a pode mudar como um homem muda de opinião; também não o podem fazer aqueles que, ao ouvi-la ou lê-la, a queiram interpretar à sua maneira. Ela tem, para toda a eternidade, o selo de Deus. A única coisa que é legítimo fazer, através da interpretação humana, é perceber melhor o que Deus verdadeiramente disse, através dos profetas, dos apóstolos e dos evangelistas.
4. A palavra inspirada, que reconhecemos justamente como Palavra de Deus, tem o dinamismo do mistério da Encarnação: Deus a exprimir-Se, torna-Se presente aos homens através da realidade humana. Tem a estrutura de um sacramento, realidade humana através da qual Deus revela e realiza no coração do homem o Seu desígnio de amor. O efeito próprio em quem a acolhe na fé, é levar a pessoa ao contacto com a intimidade de Deus, porque o que Deus quer, através desta pedagogia de salvação, é falar ao coração do homem, como um amigo fala a um amigo. É certo que a Palavra de Deus, lida ou escutada, nem sempre realiza esse efeito sacramental de mergulhar o homem na intimidade de Deus. E isso acontece devido às resistências humanas à manifestação de Deus, devido fundamentalmente aos nossos pecados e à influência do pecado em nós. A escuta da Palavra de Deus supõe uma atitude confiante de abandono e um processo de purificação do coração.

A Palavra de Deus escutada na Igreja

5. O distinatário da palavra de Deus é o Seu Povo. Mesmo naquela relação pessoal aos seus profetas de que falámos atrás, a intenção de Deus é falar ao Seu Povo, a quem os envia a proclamar o que lhes disse e lhes revelou. O Povo de Deus, que hoje é a Igreja, é o verdadeiro sujeito da Palavra revelada: o seu destinatário, a garantia da sua justa interpretação, o critério da identificação daquelas palavras humanas que podem ser acolhidas como Palavra de Deus.

A aventura da Palavra de Deus acompanha, a par e passo, a aventura do Povo de Deus, desde a revelação a Abraão até à parusia. O autor da Carta aos Hebreus exprime bem esta aventura da Palavra, expressa na história através da encarnação das realidades divinas: “Depois de ter, muitas vezes e de muitas formas, falado outrora aos Pais, pelos profetas, Deus, nestes dias que são os últimos, falou-nos pelo Filho que estabeleceu herdeiro de todas as coisas, por Quem também fez os séculos” (Heb. 1,1-2).

Consideremos rapidamente os capítulos aqui indicados desta epopeia da Palavra.

Muitas vezes: é a persistência de Deus que não desiste da realização do Seu desígnio, apesar da resistência dos homens. Esta persistência de Deus fundamenta uma justa esperança na salvação da humanidade a que pertencemos.

E de muitos modos. Para Se fazer ouvir, Deus multiplicou as suas expressões. Para além de continuar a falar pessoalmente ao coração de cada homem, realizou maravilhas no meio do Seu Povo, revelou-Se aos Profetas e estes tanto falaram como escreveram. Todas estas expressões constituem o património adquirido pelo Povo de Deus e todo ele tem a qualidade de Palavra de Deus, que não se limita à palavra escrita. Lemos no Concílio: “A economia da revelação compreende acontecimentos e palavras intimamente unidos entre si, de modo que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, atestam e corroboram a doutrina e o sentido indicados pelas palavras, enquanto as palavras publicam as obras e esclarecem o mistério que elas encerram”[5].

Somos chamados a não reduzir as maneiras como Deus nos fala só à Palavra escrita da Escritura. A atenção às outras expressões da Palavra de Deus, as acções de Deus, nas pessoas, na Igreja e na história, a palavras comunicada oralmente, sobretudo no ensinamento da Igreja, ajudam-nos a acolher a palavra escrita como Palavra de Deus.

Nestes dias que são os últimos: temos a sorte de viver no tempo de Jesus Cristo, Palavra completa e definitiva de Deus. Temos ao nosso alcance todos os meios para escutar plenamente o Senhor. Também, como Palavra eterna encarnada, Ele manifesta-Se como o caminho para o Pai, para o coração de Deus.

6. Destinatária primeira da Palavra de Deus, a Igreja é a garante da sua autenticidade. Só nela a tríplice dimensão da Palavra, o agir de Deus, a palavra escrita e a palavra viva testemunhada e transmitida na Tradição, fazem a unidade da única Palavra de Deus. A palavra escrita, acolhida e interpretada por cada um, corre o risco de toldar a força da Palavra de Deus com os sentidos humanos que cada um lhe dá. Só em Igreja, através do Magistério Apostólico, a autenticidade da mensagem divina é garantida. A Igreja, povo crente, tem a garantia do Espírito de não se desviar dessa mensagem divina, transmitida através da Palavra revelada. O Concílio afirma: “O Povo Santo de Deus participa também da função profética de Cristo: difunde o seu testemunho vivo, antes de mais, pela vida de fé e de caridade, e oferece a Deus um sacrifício de louvor, fruto de lábios que celebram o Seu Nome. O conjunto dos fiéis, tendo a unção que vem do Santo, não pode enganar-se na fé”[6]. A fidelidade a Jesus Cristo, Palavra de Deus encarnada, exprime-se também nesta humilde fidelidade à Igreja, aceitando a sua interpretação autêntica e decisiva de toda a palavra revelada. Esta humildade na fidelidade, garante o efeito sacramental da palavra revelada e inspirada: pôr-nos em sintonia com o coração de Deus.

Esta dimensão eclesial e comunitária da Palavra revelada é tão importante, que lhe dá um dinamismo fundamental: toda a palavra está orientada para ser proclamada e lida em assembleia. O povo crente é o contexto apropriado para a escuta da Palavra. Mesmo quando a lemos pessoalmente, devemos sentir-nos, nesse momento, membros do povo crente e recebê-la como a Igreja a recebe, para bem e enriquecimento da própria Igreja. É o labirinto da nossa individualidade, com os nossos pensamentos e sentimentos, que nos afasta, por vezes, da fecundidade sacramental da Palavra.

Aliás, como diz Bento XVI, a Sagrada Escritura é mais do que literatura. A sua unidade salvífica caldeou-se na Igreja. Ouçamo-lo: “Os diversos livros da Sagrada Escritura – tal como esta no seu conjunto – não são simples literatura. A Escritura cresce no e a partir do sujeito vivo que é o Povo de Deus em caminho, e vive nele. Poder-se-ia dizer que os livros da Escritura remetem para três sujeitos que interagem uns com os outros. Primeiro, há o autor individual ou o grupo de autores, a quem devemos um livro da Escritura. No entanto estes autores não são escritores autónomos no sentido moderno do termo, mas pertencem ao sujeito comum «povo de Deus»: a partir dele falam e a ele se dirigem, de tal modo que o povo é o verdadeiro e mais profundo «autor» das Escrituras. Mais: este povo não se vê auto-suficiente, mas sabe que é conduzido e interpelado pelo próprio Deus, que no fundo fala através dos homens e da sua humanidade.

A relação com o sujeito «povo de Deus» é vital para a Escritura. Por um lado, este livro – a Escritura – é o critério que vem de Deus e a força que indica a estrada ao povo, mas, por outro, a Escritura vive só neste povo, que na Escritura se transcende a si mesmo e assim – na profundeza definitiva em virtude da Palavra feita carne – se torna precisamente povo de Deus. O povo de Deus – a Igreja – é o sujeito vivo da Escritura; nele as palavras da Bíblia são uma presença permanente[7].

7. Voltaremos, noutro Domingo, a esta relação da Palavra da Escritura com a Igreja viva e a vida da Igreja, sobretudo quando reza e celebra. Fixemos hoje, como conclusão a reter no coração, que a Palavra revelada é a Palavra humana com que Deus nos transmite, para O ouvirmos, a intimidade do Seu mistério. Ela é para nós um meio para escutarmos o Senhor; consegui-lo-emos plenamente, se nos unirmos vitalmente a Cristo, a autêntica Palavra de Deus encarnada.

Sé Patriarcal, 16 de Fevereiro de 2008

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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[1] Cf. Alonso SCHOKEL e J. Sicre Diaz, in I Profeti, pg. 16
[2] Dei Verbum, nº 2
[3] Cf. Bento XVI, Jesus de Nazaré, pg. 332 e ss
[4] Cf. Ibidem, pg. 333
[5] Dei Verbum, nº 2
[6] Lumen Gentium, nº 12; cf. Dei Verbum, nº 7
[7] Bento XVI, Jesus de Nazaré, pp. 21-22

Fonte Ecclesia

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