paroquias.org
 

Notícias






Legitimidade e diferença
2007-01-19 23:38:34

A "secularização" - conceito visto de forma negativa, o que não é necessariamente verdade - levou a Igreja Católica a transformar-se num "bastião" ideológico de causas "fracturantes". O problema acentuou-se nos últimos 50 anos.

A Igreja vive um sério dilema antropológico. O que a faz ser diferente em muitas dimensões da sociedade que, aos poucos, foi encontrando outras respostas?

Veja-se o caso do voluntariado social. É óbvia - porque é intrínseca aos seus pressupostos - a ligação do "ser" cristão ao "ser" próximo dos que sofrem, dos desfavorecidos e rejeitados de todo e qualquer tempo. Mas estas são áreas onde outros grupos e pessoas - marcados pela cultura cristã, mas não necessariamente religiosos - já têm uma forte intervenção, muitas vezes mais eficaz que as organizações similares ligadas à Igreja. Exceptuando a dimensão espiritual, orgânica e ritualista, começam a escassear as dinâmicas da vida contemporânea, socialmente consensuais, onde a Igreja - enquanto estrutura hierárquica - marca a diferença.

Na organização dos Estados democráticos e laicos, a Igreja é vista - e bem - como uma "parceira", o que leva até - abusivamente - algum jacobinismo mais agressivo a querer transformar a Igreja numa instituição igual a todas as outras, como se fosse possível apagar séculos de história e cultura.

A pergunta inicial ganha relevância. Numa época marcada pelas contingências mediáticas, o que pode fazer a Igreja - até como condição de sobrevivência - para marcar a diferença?

A questão do aborto, precisamente, promove a mobilização, porque marca - sem espaço para ambiguidades - a diferença, num tempo onde as diferenças se esbatem e se procuram referências normativas - como se a "regulamentação" fosse condição imperativa na vivência religiosa. Enganou-se, por isso, quem esperava que a Igreja ficaria na sacristia, na campanha para o referendo sobre a IVG.

"Desde a concepção até à morte natural", diz a Igreja em defesa da "vida humana", independentemente dos contextos políticos, culturais, sociais ou científicos. Daí a Igreja colocar num mesmo patamar a eutanásia, o aborto, o terrorismo e a pena de morte… não houve nenhuma outra posição, globalmente relevante, tão "áspera" a condenar a execução de Saddam Hussein, como a do Vaticano.

Qualquer atentado à "vida humana" é, na visão da Igreja, criminoso.

O conceito de "vida humana", defendido pela Igreja, é das poucas "matérias" civilizacionais onde essa diferença é tão marcante e permite uma "liderança" ideológica.

Não admira então que - além da coerente, legítima e genuína acção da Igreja na defesa da "vida humana" - haja uma motivação suplementar quando o assunto é o aborto. Gera estímulos de profunda emotividade, congrega visões e pessoas.

Mas o problema, parece-me, estará no "enviesamento" político de tão sensível questão, não no conceito ou discussão sobre a "vida humana". O referendo só acentua o equívoco.

Mais importante que ser legislativamente coerente é ser socialmente consequente nas acções de defesa da "vida humana", de toda a "vida humana". Esta é, de facto, a grande diferença. E não é uma "quimera" ideológica, é uma obrigação transversal.

Nota:
O Cardeal Patriarca de Lisboa tomou a iniciativa de emitir artigos semanais sobre o assunto, até ao referendo. Haverá eco?
À memória vêm as recentes declarações de D. José Policarpo. "O aborto não é uma questão religiosa". Mas era interessante também assistir a uma séria discussão teológica, com as mesmas abordagens - exegética, antropológica, da crítica histórica, política e literária - que hoje questionam "verdades" adquiridas ao longo de séculos.

Joaquim Franco
Jornalista


voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia