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O presépio das clarissas
2006-12-26 23:31:09

É o mais bonito presépio do século XVIII, o século dos presépios. Esculturas feitas para estarmos ombro a ombro com elas. O presépio foi pensado para o universo feminino das freiras clarissas, que viviam em total clausura. Por isso, está pela primeira vez disponível para ser visto pelo grande público.

O momento mais emocionante da remontagem do Presépio da Madre de Deus foi quando os anjos voaram. Subiram, ultrapassando os três metros de altura, voltando para o lugar onde terão estado até ao início do século XIX. Uma odisseia, porque só o Arcanjo Gabriel com os seus quatro querubins, pesa várias dezenas de quilos, diz a conservadora restauradora Laura Romão.
Cá em baixo, sob o olhar vigilante do arcanjo, está o Menino Jesus, o centro deste presépio e de todos os presépios. Não é certo que o nosso primeiro olhar vá para a Sagrada Família, neste conjunto com 42 figuras feito por volta de 1700 para o Convento da Madre de Deus, em Lisboa, onde é hoje o Museu do Azulejo. Há figuras em primeiro plano, como os pastores, que se destacam pela dimensão e criatividade.
O presépio passa a ser uma das obras-primas em exposição, diz o director do museu, Paulo Henriques, onde o conjunto foi remontado na semana passada, quase dois séculos depois de ter sido encaixotado - "é uma das obras-primas da nossa escultura e a cabeça de série dos presépios portugueses". No primeiro sábado em que esteve exposto, houve "um acréscimo muito expressivo de visitantes", com 800 entradas.
Não se sabe bem quando é que o presépio foi desmontado no convento das irmãs clarissas, mas a data mais provável é por volta de 1834, quando foram extintas as ordens religiosas. Na altura em que morreu a última irmã, no final do século XIX, o presépio e outros bens do convento foram para o Museu Nacional de Arte Antiga. Regressou a casa em 1985, tendo sido estudado no final da década de 90, depois restaurado, com o objectivo de voltar a ser montado no sítio para onde foi feito - a casa do presépio do Convento da Madre de Deus.

O melhor presépio
Este é o mais antigo presépio monumental de Lisboa, porque os dois anteriores, do século XVII, desapareceram em incêndios. Os autores são Dionísio e António Ferreira, pai e filho, embora não haja provas directas desta autoria. É feito em terracota - barro cozido -, sendo depois pintado a têmpera e óleo. "Para mim, é talvez o melhor", diz Alexandre Pais, que estudou os presépios barrocos.
O presépio está organizado "numa narrativa tipo BD", diz o director do museu. A Anunciação do Anjo aos Pastores não é uma cena contemporânea da Natividade, tal como a Fuga para o Egipto ou o Massacre dos Inocentes. São três temas bíblicos, um anterior ao nascimento de Cristo, outros posteriores.
Se a cena principal é a Natividade, logo a seguir, na hierarquia, vem a Adoração dos Anjos e a Adoração dos Pastores, explica o historiador da arte Alexandre Pais. Mas muitos das personagens populares têm uma importância semelhante em escala, como a Velha ou o Tocador de Sanfona, que são das figuras mais altas do presépio. É o que acontece nos presépios franciscanos e as clarissas são uma ordem inspirada por São Francisco: "Significa que todos podemos adorar o Menino. Os primeiros a chegar foram os pobres."

Cores renascidas
Apesar de ter estado desmontado tanto tempo, faltam apenas quatro figuras: um anjo arauto, o burro, uma pequena camponesa e um querubim. Depois, faltam braços, mãos, pés, dedos, as coisas mais frágeis. O velho queijeiro não tem um braço. "Algumas peças estão sem mãos, sem pés, sem cabeça, mas não se repôs, apenas se conservou o que existia. Essas partes, tal como as asas, partem-se muito facilmente. Eram manufacturados à parte e colados com cera depois do barro cozido", explica a restauradora.
Alguns bocados foram encontrados guardados numa caixa no Museu de Arte Antiga, como o pé esquerdo do arcanjo ou patas de cavalo. Noutras peças, poucas, acabou-se por refazer algumas partes, como a aba do chapéu do homem do casal de jovens enamorados. Como é uma das peças que está à frente, "era uma lacuna muito grande".
Com o restauro, as cores renasceram completamente. "Não se tinha sequer a percepção que as peças tinham cor. Estavam muito, muito sujas." Os artistas devem ter usado, como era normal, têmpera e óleo, porque não foram feitas análises às tintas.
Se Maria e José têm alguma terracota à mostra, já as muitas lacunas na carnação do Menino foram preenchidas, porque eram demasiado evidentes. Foi feita "uma integração cromática", o nome técnico que Laura Romão prefere usar.

Remontar num
terço do espaço
A vaca, que existe, ficou de fora do presépio. Já que faltava o burro, optou-se por tirar a vaca, uma figura não muito interessante e que ocupa demasiado espaço. Uma das dificuldades da remontagem do presépio no museu foi a falta de espaço, porque a Casa do Presépio tem cerca de um terço da área original, tendo sido reduzida em 1983 para fazer umas escadas e casas-de-banho.
Para as peças voltarem à Casa do Presépio foi preciso construir uma nova cenografia, uma vez que a barroca, com a cortiça a imitar os montes, tinha desaparecido. A opção foi não inventar, porque não há uma ideia de como a original terá sido, e fazer uma cenografia contemporânea. "A cenografia vive muito da luz. A ideia foi anular o espaço e tentar dramatizar as peças pela luz", diz Ricardo Viegas, o designer que fez a nova cenografia.
O fundo é azul, com várias gradações, tornando-se algumas vezes eléctrico através de luz florescente, como no último plano, onde estão as arquitecturas que sugerem a cidade de Jerusalém. "O que era importante era manter a relação das peças umas com as outras: os olhar, as escalas, até mesmo de contexto, porque algumas cenas bíblicas tem a sua localização própria", afirma Viegas.

Ombro a ombro
com as esculturas
No século XVIII, que Alexandre Pais descreve como o século dos presépios, o espectador era mais um dos adoradores, porque podia entrar para dentro da Casa do Presépio. Lá dentro, ajoelhavam-se em veneração, ao lado de esculturas que chegam a ter 70 centímetros de altura. "Havia uma relação muito mais directa entre as esculturas e o espectador, numa atitude barroca. Ao ajoelharam-se, as pessoas ficavam praticamente à altura das imagens, era uma interacção ombro a ombro." É o que hoje se deve fazer, através do vidro, para ter o melhor ângulo de observação da Sagrada Família. De joelhos, perante o Menino.

Isabel Salema

Fonte Público

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