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Os anéis de Saturno
2006-09-14 23:00:10

Alguém exclamou “é um sombrero”! O homem de branco não vacilou. Como não vacilara no Natal, quando gritaram “parece o Pai Natal”. Bento XVI, definitivamente, gosta de mexer no guarda-roupa e recuperar velhas modas pontifícias. Um pouco à imagem dos circuitos de moda internacional que, ano para ano, parecem trazer-nos “novidades” criativas que já vimos em qualquer parte, em qualquer tempo. Parece novo, mas não é. O “saturno”, chapéu encarnado com frisos dourados e abas largas, é uma antiga protecção pontifícia dos raios de sol. Como o “camauro” protege do frio do Inverno.

João XXIII usava o “saturno” com alguma frequência. João Paulo II mal lhe tocou. Bento XVI não resistiu e a imagem varreu as televisões e os jornais porque logrou quebrar a frieza da personagem. Os “milagres” do marketing adaptam-se às circunstâncias, também do clima, mas não é a na imagem que o papa alemão surpreende. O papa da imagem foi outro e ainda está na memória recente.

“Qual é a pressa de Bento XVI?” A pergunta ecoou numa conferência organizada em Abril pelo Patriarcado de Lisboa para assinalar o primeiro aniversário da eleição de Joseph Ratzinger. No dia em que apresentou o programa de pontificado, Bento XVI elegeu o “relativismo” como alvo. É o que tem feito ao longo de ano e meio, com um estilo próprio mas carente de emoções visíveis.

Na visita às memórias da infância, o papa bávaro não hesitou em tocar outra vez na ferida. Há uma surdez perante Deus. Já não conseguimos escutá-lo porque temos muitas frequências nos ouvidos. O papa pragmático está preocupado com a Europa que o viu nascer. E o caminho do pontificado está determinado… Há que recuperar Deus nas linguagens e gestos que vão fazendo o quotidiano ocidental.

Também no diálogo ecuménico, entre religiões e entre culturas, Bento XVI tende a clarificar as diferenças e a valorizar menos as semelhanças, na expectativa de que, “balizando” as diferenças, haja menos equívocos no diálogo e as semelhanças sejam apenas isso… aproximações.

A visita à Alemanha revelou, por outro lado, um papa vocacionado para o proselitismo. As críticas à Igreja alemã, por negligenciar a “evangelização” quando se aplica no “apoio social”, terão surpreendido os menos atentos. Este é, repito, o papa que não gosta de equívocos. Já o dissera na primeira encíclica. Há muitas formas de fazer “acção social”, mas a “acção social” da Igreja deve, no entender de Bento XVI, ser reflexo da sua motivação evangélica e, ao mesmo tempo, fazer dela eco.

As críticas à Igreja alemã têm um impacto profundo. Até onde podem ir as “parcerias” para “acção social” entre a Igreja e um Estado laico, quando a Igreja – reforça agora o papa – deve visar a “evangelização” em todas as suas acções. Admito que esta seja uma leitura demasiado “extremada” das palavras de Bento XVI, mas nesta lógica vem à memória uma campanha de solidariedade que acompanhei de perto. Um padre missionário pediu o apoio de amigos em Portugal para angariar fundos que ajudassem a construir, num país africano, um centro social destinado à educação, lazer, apoio médico, prevenção de doenças infecto-contagiosas e até catequese. Esse missionário teve de enfrentar a oposição da sua própria congregação porque esta entendia haver outras prioridades no terreno. Quais? Recuperar uma igreja destruída na guerra... Fez-se uma campanha de solidariedade e os fundos recolhidos foram mesmo para o centro social. Valeu a saudável teimosia do missionário e dos amigos que o apoiaram.

É no terreno, nos casos concretos, quando a Igreja tem rosto, que a humanidade não é um conceito abstracto e a “acção social” ganha a sua verdadeira dimensão.

Os anéis de Saturno – o planeta, não o chapéu pontifício - são muito bonitos vistos ao telescópio. Mas lá perto, na órbita, são gigantescos pedregulhos ao sabor da gravidade. É na proximidade que as palavras têm a leitura adequada e os princípios têm o devido enquadramento.

Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt


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