paroquias.org
 

Notícias






A ironia e a evidência
2006-06-01 22:35:48

Para lá da polémica, sobra a verdade - esta, inquestionável - das consequências: o livro "O código da Vinci" e o filme nele baseado não trouxeram qualquer novo contributo para a Teologia ou para a História. Nada.

Com a perspicácia de uma escrita apelativa e um enredo à volta de um tema que mexe com todo o ser pensante - o "inexplicável" religioso -, Dan Brown teve, no entanto, o mérito de reforçar na praça pública, para o comum dos mortais, o debate sobre os dramas de uma ancestral reflexão, até há poucos anos enclausurada nas academias.

O livro apresentou-se como "história alternativa" para fazer vacilar os alicerces do poder da Igreja, centralizado em Roma. O filme é apenas "entretenimento". E, passada a poeira do primeiro impacto, sobra uma reforçada curiosidade sobre o tema.

Num tempo em que tudo se discute e as verdades outrora adquiridas resvalam na incerteza, a polémica desencadeou a maior campanha de promoção do cristianismo.

Nunca se falou tanto - sem complexos e retomando as dúvidas que assolaram os primeiros evangelizados - sobre Jesus, Maria, Madalena...

Os meios de comunicação social de todo o mundo, impulsionados e ao mesmo tempo promotores da polémica, multiplicaram reportagens, documentários e debates sobre a historicidade de Jesus e os enquadramentos de fé. De um momento para o outro, os meios de referência despertaram para um debate sem tréguas ou respostas definitivas, aumentando o alcance da dúvida e suscitando um maior interesse.

Este é o mérito do autor e, ao mesmo tempo, esta é a ironia da obra. Até o Opus Dei - organização mais polémica na história recente da Igreja e "alérgica" à necessidade de se explicar ao mundo - encontrou a oportunidade de se "expor" com uma eficaz estratégia de "marketing" para subvalorizar e, eventualmente, rever alguns procedimentos mais controversos da estrutura.

Em vez da catequese induzida, a Igreja vê-se agora forçada a procurar caminhos de esclarecimento profundo. Em vez do proselitismo desarticulado e bolorento, a Igreja tem agora de assumir com necessária humildade a posição cultural que ocupa na sociedade contemporânea, mediaticamente globalizada.

Há muito que havia no catolicismo sinais a apontar neste sentido, e que podem até explicar a escolha de Joseph Ratzinger para suceder a Karol Woityla, mas, diga-se em abono da verdade, só este livro conseguiu desencadear mecanismos inéditos num diálogo que a própria Igreja limitava aos "pensadores" de cátedra e aos "segredos" de convento.

Com esta ironia, o mundo despertou para outra, e definitiva, evidência. A Igreja Católica respira a múltiplos pulmões. É uma instituição, no âmago, plural. A centralidade de Roma nunca esteve tão limitada aos rituais normativos. Para lá dos textos que enquadram directórios, vingam agora os contextos que acompanham a história pessoal de cada crente... dúvidas e incertezas, forças e fraquezas na interpretação da própria fé.

Esta pluralidade - cada vez mais assumida mediaticamente - tem reflexo nas reacções ao livro e ao filme, entre clérigos e outros fiéis. Uns apelaram ao boicote e à fogueira. Outros - os que sempre se disponibilizaram para dialogar séria e construtivamente, com natural sentido crítico - apressaram-se a ver o filme com curiosidade.

O cristianismo - como procura incessante e plural - sai vencedor desta contenda mediática. Porque ganhou notoriedade no debate cultural. Porque relativizou estruturas e reforçou o essencial.

Joaquim Franco

Nota: Ao contrário do que ouvi e li, não entendo que o filme "O código da Vinci" seja uma cópia "fiel" do livro. Tome-se em conta os aspectos específicos da controvérsia que Dan Brown gerou e veja-se, no filme de Ron Howard, a subtileza de algumas diferenças que atenuam a polémica. É ver, e reler, para confirmar.


Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt


voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia