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“Deus Caritas Est”... um apelo à criatividade
2006-04-02 21:37:17

A Igreja Católica enfrenta neste tempo um desafio eminentemente antropológico.
A sociedade, particularmente a Europa, está impregnada de valores culturais que emanam do judaico-cristianismo, mas também do Islão. São tão óbvios – nas artes, nas ciências, nos costumes e tradições, na política, na cultura em geral – que se tornaram... banais.


Os alicerces da civilização contemporânea mantêm-se sólidos na experiência adquirida, mas resvalam num presente carente de novos significados e cheio de inquietação.
Os mais pessimistas queixam-se, dando a entender que as verdades inquestionáveis de
ontem assumem hoje a dimensão de incógnitas desviantes, que os valores de uma
certeza cómoda são hoje incómodas incertezas que atormentam, que se tornou desajustado suportar as implicações de um certo ajustamento ancestral.
É neste contexto que palavras que encerravam “verdades” se dispersam pela complexa teia de estímulos que fazem o quotidiano. “Amor” é uma delas.
Joseph Ratzinger é um dos mais importantes teólogos do catolicismo contemporâneo. Recém formado e ordenado chegou a ser acusado de “perigoso modernista”, mas confrontado no Concílio Vaticano II com a agitação e instabilidade da “estrutura” eclesiástica, começou a revelar-se um adepto da centralidade romana. Durante 24 anos fez a “fiscalização” teológica na Igreja, a pedido de João Paulo II, como prefeito na Congregação para a Doutrina da Fé. Ratzinger ganhou fama de “novo inquisidor”, afastou teólogos ousados e até os colaboradores mais próximos o consideravam, com ironia, “guardião da Fé” católica.

Já como Bento XVI, optou por dedicar a primeira encíclica ao “amor” (?!)
Quando o nome de Joseph Ratzinger foi anunciado na praça de S. Pedro para suceder a
João Paulo II, provocando reacções extremadas de cepticismo e euforia, quem suspeitava que a sua primeira encíclica seria dedicada ao “amor”?
Quem imaginava um homem “frio e racional” a escrever sobre um tema tão delicadamente sensível e emocional?
Explica Bento XVI que o “amor” é um termo “usado e abusado”, ao qual “se associam significados completamente diferentes”.
Não contendo qualquer novo contributo para novos arranjos doutrinários, a encíclica “Deus Caritas Est” (Deus é Amor) representa uma nova forma de estabelecer
diálogo com a contemporaneidade adversa à “mensagem” da Igreja.
O estilo da encíclica é o do próprio.
Curto e conciso, mas complexo, enfrenta um dos desafios centrais da actualidade, numa dupla dimensão teológica e antropológica, sem cair na tentação de um pessimismo cultural exagerado. Sem ser restritivo, mesmo quando aborda, embora indirectamente, a temática da moral sexual.
Com o recurso à dimensão do eros e do ágape, Bento XVI retoma o enquadramento essencial do pensamento da Igreja sobre o “amor”. Assumindo a existência e relevância cultural de outras dimensões de “amar”, remete para uma proposta de “Amor” em jeito de desafio.
É certo que, ao reforçar o eros – o amor inseparável do erotismo – como relação natural entre homem e mulher – e, só desta forma, com sementes do divino – Bento XVI está a inferiorizar outras dimensões de relação amorosa que vão assumindo cada vez maior dinamismo social. Mas que seria de esperar de um teólogo que tem reafirmado a posição da Igreja neste tema sensível e, há pouco tempo, subscreveu um documento proibindo o acesso de homossexuais ao sacerdócio?

Nesta encíclica, Bento XVI não aborda directamente a homossexualidade, o sublinhar o pensamento doutrinário. Para a Igreja, o amor entre o homem e a mulher – eros – deve ser parte integrante de uma experiência mais profunda – ágape. Não a relação pelo prazer de uns segundos, mas a entrega de corpo e alma na fidelidade de um encontro “natural” a dois, com parâmetros de espiritualidade e sacrifício (outra palavra usada e abusada neste tempo) inerentes à indissolubilidade e à “Graça”.
Esta é a proposta, que tem o peso da adesão, ou rejeição, dos homens e mulheres
que fazem a Igreja.
Ágape assume ainda a dimensão de uma entrega incondicional, em prol de uma
felicidade que só se atinge no outro, seja na relação amorosa, na consciência social ou na responsabilidade comunitária.
E é nesta última dimensão que as comunidades de base na Igreja têm revelado maior debilidade. O modelo “piramidal” que assegurou a “estrutura” durante séculos, é uma fórmula que há muito se diluiu na cultura urbana das liberdades adquiridas, dos direitos inalienáveis e dos deveres transversais.

Quando as hierarquias insistem na “estrutura” da “pirâmide” para organizar as comunidades urbanas de base, correm o risco de promover o distanciamento do homem contemporâneo. Incentivam a preguiça, centralizam responsabilidades que devem ser partilhadas e, na cegueira de um objectivo não devidamente participado, precipitam-se em dinâmicas de relacionamento comunitário que pouco contribuem para, verdadeiramente, congregar.

O homem urbano é formado e formatado por uma multiplicidade de estímulos culturais, assimilados no contexto do individualismo e da pouca disponibilidade. Construir hoje comunidade na procura do ágape, implica valorizar cada célula no seu âmago. As comunidades cristãs do século XXI são chamadas a um novo desafio de exigência espiritual e relacional, onde o íntimo e o individual ganham novo e maior relevo no “encontro” com o transcendente.

Embora com respeitáveis excepções, os modelos tradicionais de organização comunitária tendem a perder eficácia nas grandes urbes. Vive-se um tempo propício ao regresso às origens, às dinâmicas de pequenos grupos de cristãos, cansados de ritos supérfluos mas sedentos do ritual da proximidade e da cumplicidade.
Não se trata de promover a “horizontalidade” apenas para cumprir pressupostos democráticos, mas de valorizar nessa “horizontalidade” o lugar que o Sagrado ocupa em cada indivíduo e descobrir as “vias de acesso” de cada indivíduo à grande comunidade que é a de Jesus Cristo, com todas as suas implicações. Na consciencialização desta nova atitude poderá redesenhar-se a “comunhão” e o “serviço” – a “koinonia” e a “diaconia”.

Na segunda parte da encíclica, Bento XVI entra no domínio da doutrina social da Igreja. Apela a um maior envolvimento dos católicos nas causas humanitárias e sociais. Preconiza uma Igreja mais empenhada na caridade e na justiça. Com entrega gratuita e sem proselitismo. “O amor é o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana”, diz o papa. Um critério suficientemente universal para ser incontroverso, construtivo e apelativo.

Sobre a relação entre a Igreja e o Estado, Bento XVI sublinha a ideia de subsidiariedade: “Não um Estado que regule e domine tudo, mas um Estado que generosamente reconheça e apoie (...) diversas forças sociais”, conjugando espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.

É na opção pelo tema e na ousadia da forma, não no conteúdo, que “Deus é Amor”
tem novidade.
Um apelo à criatividade... à espera de reacção.

Joaquim Franco,
jornalista


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