paroquias.org
 

Notícias






Catequese do Cardeal-Patriarca no 4º Domingo da Quaresma - Honra Pai e Mãe. A Família, comunidade de amor. Do «eros» à Caridade
2006-03-27 23:46:27

1. O mandamento do amor, amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, interpela as pessoas a viverem amando, o que as projecta, necessariamente, para a expressão comunitária da vida. Quem ama não vive sozinho, não é uma ilha isolada, faz comunidade e aprofunda a comunhão.
Na tradição bíblica, ao longo dos séculos, este mandamento exprimiu-se em várias experiências comunitárias, nascidas do amor e que se afirmam como caminho para crescer no amor. Antes de mais, o próprio Povo escolhido, Israel no Antigo Testamento, a Igreja do Novo Testamento.


A Igreja é incompreensível sem a força do amor comunhão, com Jesus Cristo, que a ama com amor esponsal, e com os irmãos. A Igreja é a “casa da comunhão”, afirmou João Paulo II. Esta força da comunhão de amor exprime-se, na Igreja, através de vários dinamismos comunitários: Dioceses, Paróquias, Ordens Religiosas, Movimentos. Todos eles se justificam como lugar do amor e dinamismo de comunhão.
A mais antiga e primordial destas estruturas de comunhão, que acaba por inspirar simbolicamente todas as outras, é a Família. Instituição básica da família humana, segundo a antropologia bíblica, vai sendo confirmada e solidificada com o progresso da revelação, tornando-se expressão privilegiada do amor entre Cristo e a Igreja, e, no realismo da sua humanidade, sinal sacramental daquela comunhão misteriosa.
A Família concebida como comunidade de amor aparece no Código da Aliança, celebrada por Deus com o Seu Povo, no Sinai, síntese de tradições que remontam à origem da humanidade: “Honra teu pai e tua mãe, para teres uma longa vida na terra que Yahwé, Teu Deus, te vai dar” (Ex. 20,12). E São Paulo, o Apóstolo que mais profundamente percebeu a nova grandeza da família à luz do amor entre Cristo e a Igreja, escreve aos Efésios: “Filhos, obedecei a vossos pais, no Senhor, pois é isso que é justo. Honra teu pai e tua mãe, tal é o primeiro mandamento, com uma promessa: para que sejas feliz e gozes de longa vida sobre a terra. E vós, pais, não exaspereis os vossos filhos, mas criai-os com a educação e correcção que vem do Senhor” (Ef. 6,1-4).

2. Estes textos realçam dois aspectos da instituição familiar: os pais e os filhos. A heterossexualidade e a fecundidade são, assim, qualidades constitutivas da família. Para a sua realização está, aliás, orientada a constituição fisiológica e psicológica do homem e da mulher. No dicionário da natureza, assimilado por todas as culturas e civilizações, a palavra família significa isso: a união de um homem e de uma mulher, selada pelo contrato matrimonial, dispostos a completarem-se um ao outro, no amor, e a serem fecundos, pondo o seu amor ao serviço da vida. Na família, os seres humanos exprimem e experimentam uma qualidade essencial: o serem homem e mulher, iguais e diferentes, chamados a encontrarem-se na complementaridade do amor, para não comprometerem a harmonia da sua existência.
Na sua recente Encíclica, o Santo Padre afirma, referindo-se às diversas experiências humanas de amor: “Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma, e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam”[1]. E acrescenta que este amor entre o homem e a mulher, não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano[2], o que significa que ele é uma força prévia ao exercício da inteligência e da vontade, constitutivo da natureza essencial do ser humano.

3. Segundo a tradição bíblica, comum a outras tradições culturais, a célula básica da humanidade não é o indivíduo humano, mas o par humano. “Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou. Deus abençoou-os e disse-lhes: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gen. 1,27-28). Deus não criou indivíduos, criou a família, no seio da qual os indivíduos encontrarão a felicidade, na experiência do conhecimento mútuo, do dom generoso e da fecundidade.
Em toda a narração bíblica sobressai o mistério da mulher mãe, que resume na sua maternidade toda a fecundidade da Criação e que aparece como o último retoque do artista na beleza da Criação. A mulher é, aqui, a obra prima da criação, aquela que evita ao homem a solidão dos indivíduos isolados e o torna pessoa, aquele que está destinado a encontrar-se na descoberta e no dom ao outro, que é igual e diferente. Nesta plenitude da Criação adivinha-se, no pano de fundo que o futuro sempre desenha, Maria, a Nova Eva, a “bendita entre todas as mulheres”, aquela a quem todas as gerações proclamarão bem-aventurada. Eva, obra prima da Criação, é apenas o anúncio de uma plenitude humana, que só será atingida em Cristo, o novo Adão, e em Maria, a Nova Eva. Até eles e a partir deles, cada par humano percorre o caminho árduo do conhecimento mútuo, da integração das diferenças e do aperfeiçoamento pelo dom recíproco. Toda a família tem um ponto de partida sólido, em ordem a um fim incerto, porque depende da aventura da liberdade e da generosidade da fidelidade. Hoje fala-se muito na crise da família. Atrever-me-ia a afirmar que a família é uma instituição permanentemente em crise, a crise do crescimento e da fidelidade. Mas para além das dificuldades inerentes à própria verdade da comunidade familiar, a família encontrou, ao longo dos séculos, e hoje com uma acuidade particular, dificuldades que lhe vêm da envolvência cultural, do quadro institucional das sociedades e dos Estados, mesmo de agressões directas de forças que a querem relativizar ou destruir.

As dificuldades provenientes de uma visão individualista do ser humano
4. Esta é uma dificuldade que provém do contexto cultural, e que não atinge apenas a família, mas o todo da sociedade vista como família humana. Sobretudo no Ocidente, desenvolveu-se, nos últimos dois séculos, uma visão filosófica do ser humano considerado apenas como indivíduo, não necessariamente comprometido e co-responsável pelos outros. A cultura foi-se afastando, progressivamente, do belíssimo conceito de “pessoa”, que define o ser humano como alguém necessariamente em relação com outrem, encontrando nessa relação a sua verdade profunda e o caminho da sua felicidade. Tudo passou a ser definido a partir do indivíduo: a liberdade individual, absoluta, custe a quem custar; os interesses, o bem-estar, o prazer, a felicidade, passam a ser definidos no âmbito do indivíduo.
O que parece um pormenor de pensamento, altera tudo nas relações humanas. Os indivíduos reivindicam os seus direitos e defendem os seus interesses; as pessoas entregam-se generosamente, porque o seu bem está no bem do outro, a sua alegria só pode ser partilhada, não pode ser feliz se o outro com quem partilha a vida não o é. As sociedades tornaram-se um equilíbrio precário de direitos individuais conflituantes, quando muito definidos e limitados pela Lei. Foi-se perdendo o sentido de que todos são responsáveis por todos, e de que a felicidade não está na realização dos anseios individuais, mas no sentir que com a generosidade do dom da própria vida, se ajudam os outros a viver. Só quem aceita perder a vida por causa dos outros, a encontrará, foi o ensinamento de Jesus. o conceito de “classe”, introduzido na cultura moderna por via ideológica e política, não fez mais do que mobilizar um conjunto de indivíduos para a defesa colectiva de direitos. Se esses indivíduos se assumirem como “pessoas”, o espírito de “classe” transformar-se-á em dinamismo comunitário.

5. A família não subsiste como equilíbrio de interesses individuais dos seus membros. Se cada um pensa na sua felicidade, nos seus interesses, no seu bem-estar, porventura à custa dos outros, o conflito é quase inevitável. A família supõe o amor dos outros, a busca do bem dos outros e não apenas de si mesmo. É dom generoso, é oblação, é entrega generosa, pois só assim se lança a semente da comunhão de vida e de felicidade. Só assim ela é o contexto favorável ao desabrochar da vida, através da geração e da educação. A família comunica aos filhos aquilo que é. Só como comunidade de amor e de dom os ajuda a desabrochar para a comunidade e para a generosidade para com os outros.

Dificuldades acrescidas pela visão hedonista da sexualidade
6. A vivência equilibrada da sexualidade é um elemento decisivo na harmonia familiar. Tudo ou quase tudo é influenciado por ela. A família, no seu dinamismo original de relação estável e compromisso duradouro de um homem e de uma mulher, afirma já uma verdade que a revelação cristã virá aprofundar e confirmar: só numa relação de amor a sexualidade humana encontra pleno sentido.
A espécie humana é a única em que a natural atracção dos sexos é influenciada e conduzida pela cultura, incluindo nesta, como sua componente importante, a dimensão espiritual e religiosa. Em todas as culturas, mesmo na greco-romana, encontramos indícios desta abertura ao divino através da vivência da sexualidade[3]. A revelação judaico-cristã valoriza esta dimensão, purificando-a, quer quando faz do amor esponsal o símbolo do amor-ternura de Deus pelo Seu Povo, quer quando eleva a união conjugal ao nível de sacramento, sinal sagrado, que realiza no amor dos esposos a qualidade do amor-caridade.
A idolatria do indivíduo na cultura contemporânea, a que nos referimos atrás, aplicada à vivência da sexualidade, gerou o ambiente de facilidade que bem conhecemos. A sexualidade encontra sentido na busca do prazer individual e não como experiência generosa de amor e comunhão. Tudo é natural, tudo é permitido, tudo é tolerado. A inspiração ética da sexualidade passou para o campo da harmonização dos interesses e conflitos individuais, e assume mesmo formas de violência, silenciados na discrição da privacidade.
Esta cultura individualista compromete a realização da família como comunidade de amor entre pessoas, muito tempo antes do próprio casamento. A preparação para o matrimónio deveria incluir uma profunda mudança de mentalidade e de perspectiva.

7. Esta situação sublinha o valor da virtude cristã da castidade, enquanto vivência da sexualidade expressão de amor generoso e oblativo. Esta cultura, marcada pelo permissivismo individualista, acusa a Igreja de ter uma visão negativa da sexualidade e interpreta o desafio da castidade sobretudo como privação e negação. Como virtude, ela é uma expressão do amor-caridade, ou seja, de uma atitude generosa do amor oblativo, onde a pessoa humana exprime o dom de si mesma na totalidade do seu ser, corpo e espírito.
Como toda a virtude cristã, a castidade é exigente. Supõe uma sexualidade integrada que desabrocha enquadrada na experiência de ternura, de relação generosa com os outros. Não anula o instinto sexual (o “eros”), mas purifica-o elevando-o à dignidade do amor oblativo. Na Carta Encíclica o Papa Bento XVI, referindo-se à rejeição, por parte do judaísmo e do cristianismo, da “prostituição sagrada” em que alguns procuravam, na exaltação sexual, uma experiência do divino, afirma: “Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o”. E acrescenta: “O eros inebriante e descontrolado não é elevação, «êxtase» até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao ser humano, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para a qual tende todo o nosso ser”[4].
E o Santo Padre conclui: “Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu «envenenamento», mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza”[5].
Nada é tão gratificante em ordem à harmonia da felicidade, como a vivência generosa, que inclui a renúncia a expressões facilitantes, da própria sexualidade. Não é só a castidade que é exigente. Todas as concretizações da caridade passam pela coragem de seguir o Senhor, abraçando a sua própria cruz. Porque toda a caridade é um dom de Deus, fruto da acção do Espírito em nós, a castidade é indissociável da vida da graça e a castidade conjugal é fruto da graça própria do sacramento do matrimónio.
A própria fecundidade do casal tem de ser expressão da generosidade do amor. Embora a paternidade-maternidade sejam expressão importante da realização pessoal dos esposos, elas encontram a sua verdade plena na busca, sem limites, do bem dos filhos. Um coração de Mãe é um tesouro que pertence aos filhos e que constitui a sua primeira riqueza. O filho não pode ser apenas o objecto de uma auto-realização dos esposos. A propósito das hipóteses que a ciência abriu no campo da reprodução medicamente assistida, a Santa Sé já advertiu, para fazer reflectir sobre as exigências éticas das novas técnicas de reprodução, que o direito de ter um filho não é um direito absoluto.

As vicissitudes institucionais da família
8. Para além das dificuldades que advêm à família a partir do contexto cultural envolvente, as mutações institucionais da família, fruto da transformação da sociedade, trazem-lhe dificuldades acrescidas. A mulher no trabalho, a diminuição da natalidade, a concentração das populações nas grandes cidades a qual provocou uma alteração profunda no urbanismo, são dados que condicionam a família como comunidade de pessoas. A necessidade de apoio de outras instituições no crescimento e educação dos filhos, para muitos logo a partir da primeira infância, exige da família que seja uma comunidade em inter-acção com outras comunidades, para poder continuar a ser a comunidade de referência para o equilíbrio de todos os seus membros.
Também as alterações ao enquadramento legal e institucional da família têm sido causa de novas instabilidades e fragilidades. A falta de equidade das leis fiscais, a facilitação e vulgarização do divórcio civil, a consagração das uniões de facto, são dados que criam instabilidade à família, que precisa de clareza, estabilidade e solidez para vencer as inevitáveis dificuldades de um caminho a percorrer. E já começa a perfilar-se na opinião pública a tentativa de legalizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo-lhes os direitos jurídicos da família. A posição clara da Igreja a este respeito, não é contra ninguém; significa, isso sim, a defesa da base antropológica fundamental da comunidade familiar.

9. Salvar a família é hoje uma luta árdua, combate que não podemos deixar de travar em nome da sociedade que desejamos. É uma batalha a travar em múltiplas frentes, que vão do social e cultural, ao político. Mas ela supõe dos homens e mulheres, e de modo particular, dos cristãos e das cristãs, a certeza de que é possível vencer, certeza que lhes vem da força do amor, sempre apoiado e enriquecido com a força de Deus.

Sé Patriarcal, 26 de Março de 2006
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

---------------------------------------------------------------------------
[1] Bento XVI, Carta Encíclica “Deus é amor”, n.º 2
[2] Ibidem, n.º 3
[3] Cf. Ibidem, n.º 3
[4] Ibidem, n.º 4
[5] Ibidem, n.º 5

Fonte Ecclesia

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia