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"Deus Caritas Est". Quem diria?
2006-02-01 22:06:39

A Igreja Católica enfrenta neste tempo um desafio eminentemente antropológico. A sociedade, particularmente a europeia, está impregnada de valores que emanam do judaico-cristianismo, mas também do Islão. São tão óbvios - nas artes, nas ciências, nos costumes e tradições, na política, na cultura em geral - que se tornaram... banais.

Os alicerces da civilização contemporânea mantêm-se sólidos na experiência adquirida, mas resvalam num presente carente de novos significados e cheio de inquietação.

Os mais pessimistas queixam-se, dando a entender que as verdades inquestionáveis de ontem assumem hoje a dimensão de incógnitas "desviantes". Que os valores de uma certeza cómoda são hoje incómodas incertezas que atormentam. Que se tornou "desajustado" enfrentar as implicações de um certo ajustamento ancestral.

É neste contexto que palavras que encerravam verdades se dispersam pela complexa teia de estímulos que fazem o quotidiano. "Amor"... é uma delas.

Joseph Ratzinger é um dos mais importantes teólogos do catolicismo contemporâneo. Fazia o enquadramento teológico das encíclicas de João Paulo II. Como Bento XVI, optou por dedicar a primeira encíclica ao "Amor". Um termo "usado e abusado", ao qual "se associam significados completamente diferentes", escreve o papa para explicar a opção.

Não contendo qualquer novo contributo para arranjos doutrinários, "Deus Caritas Est" (Deus é Amor) representa uma nova forma de estabelecer diálogo sincero com a contemporaneidade adversa à "mensagem" da igreja.

O estilo é o do próprio. Curto e conciso, mas complexo. Enfrentando um dos desafios centrais da actualidade numa dupla dimensão teológica e antropológica, sem cair na tentação de um pessimismo cultural exagerado. Sem ser restritivo, mesmo quando aborda a temática da moral sexual.

Com o recurso à dimensão do eros e do ágape, Bento XVI retoma o enquadramento essencial do pensamento da Igreja sobre o "amor". Sem negar outras dimensões, remete para uma proposta em jeito de desafio.

É certo que, ao reforçar o eros - o amor inseparável do erotismo - como relação natural entre homem e mulher, e só desta forma, com sementes do divino, Bento XVI está a inferiorizar outras dimensões de relação amorosa que vão assumindo cada vez maior dinamismo social. Mas que seria de esperar de um teólogo que tem reafirmado a posição da Igreja neste tema sensível e, há pouco tempo, subscreveu um documento proibindo o acesso de homossexuais ao sacerdócio?

Nesta encíclica, Bento XVI não aborda directamente a homossexualidade, o celibato, as uniões de facto, o divórcio, mas, "passando ao lado", não deixa de sublinhar o pensamento doutrinário.

Para a Igreja, o amor entre o homem e a mulher - eros - deve ser parte integrante de uma experiência mais profunda - ágape. Não a relação pelo prazer de uns segundos, mas a entrega de corpo e alma na fidelidade de um encontro natural a dois, com parâmetros de espiritualidade e sacrifício (outra palavra usada e abusada neste tempo) inerentes à indissolubilidade.

Esta é a proposta, que tem o peso da adesão, ou rejeição, dos homens e mulheres que fazem a Igreja.

Na segunda parte da encíclica, Bento XVI entra no domínio da doutrina social da Igreja. Apela a um maior envolvimento dos católicos nas causas humanitárias e sociais. Preconiza uma Igreja mais empenhada na caridade e na justiça. Com entrega gratuita e sem proselitismo. "O amor é o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana", diz o papa. Um critério suficientemente universal para ser incontroverso, construtivo e apelativo.

Sobre a relação entre a Igreja e o Estado, Bento XVI sublinha a ideia de subsidiariedade: "Não um Estado que regule e domine tudo, mas um Estado que generosamente reconheça e apoie (...) diversas força sociais", conjugando espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. É na opção e na forma, não no conteúdo, que "Deus é Amor" tem novidade.

Quando o nome de Joseph Ratzinger foi anunciado na Praça de S. Pedro para suceder a João Paulo II, provocando reacções extremadas de cepticismo e euforia, quem suspeitava que a sua primeira encíclica seria dedicada ao "amor", nas suas variadas dimensões? Quem imaginava um homem apresentado como "frio e racional" a escrever sobre um tema tão delicadamente... sensível e emocional?

Daniel Santos, 38 anos, um amigo de longa data, vítima de paralisia cerebral na infância, deficiente que não se "rendeu" à adversidade, acabou de concretizar um sonho. Compilou dezenas de curtos pensamentos, verdades pessoais em frases curtas, num pequeno livro que acaba de ser editado com o nome "Um presente de Luz".
Homem de fé, Daniel acredita na vida e numa certa vida nova que faz a esperança dos cristãos. Na sua debilidade, não rejeita a condição humana. E é nessa descoberta que aprofunda a sua razão de ser. Um certo dia, confessou-me, acordou de madrugada. No meio da insónia, ligou o computador e desabafou no teclado: "'Vamos fazer amor' é uma expressão grosseira! Devemos dizer: 'Deixemo-nos fazer pelo amor'".


Joaquim Franco
Jornalista


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