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Uma encíclica para o nosso tempo
2006-01-26 09:50:52

"Deus Caritas est" ("Deus é Amor") constitui uma agradável surpresa. Estamos perante uma encíclica que trata de um tema central no mundo contemporâneo - o lugar do outro e a relação entre as pessoas. E é muito interessante que Bento XVI tenha escolhido um tema transversal e susceptível de mobilizar vontades e energias.

Assim, com um aparato teológico e filosófico bastante rico, fazendo jus a um percurso intelectual fecundo, o Papa põe no centro da reflexão da Igreja Católica o tema crucial da mensagem cristã - susceptível de lançar pontes de encontro e de diálogo, designadamente entre as várias religiões e todas as pessoas de boa vontade.
"O amor é possível, e nós somos capazes de o praticar porque criados à imagem de Deus. Viver o amor é (...) fazer entrar a luz de Deus no mundo..." E que método preconiza Bento XVI nesta encíclica? O método simples e ancestral do exemplo, dos sinais concretos sobre "o amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós".

Num tempo em que tanto se fala de comunicação, torna-se indispensável ir aos fundamentos da relação entre as pessoas e tirar consequências em termos de responsabilidade para com os outros. Trata-se de assumir e de preparar o "face a face", de que fala S. Paulo, e que transforma a terceira virtude teologal, a caridade, em primeira, de que a fé e a esperança são subsidiárias.
Eros, philia e agape são formas diferentes da relação humana. E eros tem de ser compreendido como equilíbrio na relação com o corpo, em lugar de esquecido o suprimido ("o eros quer-nos elevar "em êxtase" para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos"). E aqui há pistas muito importantes e inovadoras que lançam sinais de esperança. Bento XVI analisa cada uma das formas da relação humana e fá-lo citando não apenas (como era tradicional nas encíclicas) os livros sagrados e os padres da Igreja, mas também grandes autores, como Virgílio, Descartes, Kant, Nietzsche, a propósito do amor como "cuidado do outro e pelo outro".

Não se trata de cultivar uma abstracção, mas de partir e chegar às situações concretas. "Se na minha vida negligencio completamente a atenção do outro, importando-me apenas com ser "piedoso" e cumprir os meus "deveres religiosos", então definha também a relação com Deus." No fundo, mais do que a felicidade, o que está em causa é o bem do outro - a partir da concepção de Deus como "fonte originária de todo o ser". Mas, como construir uma "comunidade de amor"? Como assumir a "caridade como dever da Igreja"? Como ligar caridade e justiça? Eis o que está em causa.

Guilherme d"Oliveira Martins
Presidente do Centro de Reflexão Cristã
Recentrar no amor a fé e o modo de ser cristão

Nesta sua primeira encíclica, o Papa Bento XVI apela aos cristãos e suas comunidades a que recentrem, no amor, a sua fé e a exprimam na sua opção fundamental de vida de amor ao próximo. Retoma, assim, a tradição joânica e a síntese maravilhosa de S. João, com que principia a encíclica: "Deus é amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele."

É desejo do Papa que os cristãos suscitem "um renovado dinamismo de empenhamento na resposta humana ao amor divino". Como sucedeu com os primeiros cristãos, será pelo amor tornado operativo em gestos de partilha fraterna que serão reconhecidos os discípulos e discípulas de Cristo.

Pese embora a transcendência da palavra amor, o que significa para o poeta ou evoca na tradição bíblica, sucede que, na cultura corrente, o vocábulo apresenta conotações muito diferentes. Quem experimentou falar de amor a uma turma de adolescentes cedo percebe que deve fazer um longo percurso até poder comunicar com seriedade mínima, tal a visão deturpada do termo.
Não só na linguagem a palavra carece reabilitação. Em nome do amor se cometeram, e cometem, as maiores barbaridades. Em nome do amor se humilharam pessoas, se alimentaram dicotomias entre corpo e alma, carne e espírito, que bloquearam e bloqueiam uma verdadeira humanização.
A encíclica abre o debate nesta matéria e não deixará de suscitar posturas filosóficas distintas. Não há que temê-las; também já passaram os tempos dos anátemas. Serão bem-vindas todas as reflexões. Que se anime, pois, o debate filosófico e teológico, que se afirmem os fundamentos da "civilização do amor".

Na parte mais pastoral da encíclica, Bento XVI quer encorajar as comunidades cristãs a que revitalizem o seu empenhamento na acção social e caritativa, tornando adequadas as respostas aos novos desafios e tendo como horizonte não menos do que erradicar a pobreza nas respectivas áreas de influência. "No seio das comunidades dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna."

O Papa não inova nesta matéria, actualiza apenas a tradição apostólica. Pessoalmente, esperaria maior inovação neste domínio, pois hoje dispomos de conhecimento científico e experiência sociopolítica que nos permitem compreender que o amor cristão se deve estender também à intervenção sobre as estruturas e os modelos económicos e sociopolíticos, pugnando pela justiça, a solidariedade, a ecologia e a salvaguarda de direitos humanos universais. Esta é de resto uma doutrina consolidada em documentos similares, pelo menos desde o Concílio Vaticano II.

Manuela Silva
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica Programa de pontificado

Nesta sua primeira encíclica, Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, mantém-se igual a si mesmo, ao mesmo tempo que se mostra fiel à sua nova responsabilidade de pastor universal da Igreja. Continua a ser o professor que ensina com a preocupação de ser claro e acessível, sem deixar de fundamentar com rigor as suas afirmações. Prefere, como sempre, recorrer às fontes da fé cristã, analisando e interpretando o texto bíblico no Antigo e Novo Testamentos, citando a doutrina já presente na tradição cristã mais antiga, e fazendo um uso dos escritos dos Papas anteriores mais sóbrio do que era usual nas encíclicas.

As citações são apenas as necessárias para fundar as afirmações, e não se nota uma grande preocupação em mostrar como o seu ensino está em concordância com o feito anteriormente. Também não se esconde uma predilecção pela cultura clássica e pelas lições da história mais antiga. Daqui brota uma sabedoria que é aplicada, com uma surpreendente actualidade, a questões da humanidade de hoje. A preocupação de procurar a verdade leva-o a não esconder falhas na actuação dos cristãos, a que contrapõe uma mais adequada maneira de agir.

O tema central da encíclica, o amor de caridade, foi sempre um "princípio" fundamental na reflexão teológica de J. Ratzinger. Sem dúvida, como também fica claro com as suas reflexões, é este o verdadeiro centro da fé cristã. Mas o facto de ser assim sublinhado deve muito à renovação teológica do sec. XX, em que foi posto em evidência de modo transversal a várias correntes, quer se inspirassem mais directamente nas fontes antigas (caso de Henri de Lubac, Yves Congar, Hans Urs von Balthasar e do próprio Ratzinger) quer fossem mais especulativas, como a de Karl Rahner que preconizou a "viragem antropológica" na teologia. Existe, aliás, uma consonância clara com o contexto cultural da altura, nomeadamente com o cultivo do personalismo de inspiração cristã de que, entre nós, o "círculo da Morais" foi expoente.

Mas, deste modo, o novo Papa traça também o programa do seu pontificado, recapitulando linhas de acção que se têm mantido vivas desde o concílio Vaticano II. Tudo se desenvolve a partir da concepção dos três múnus que constituem a missão da Igreja e se traduzem no ensino, na oração litúrgica e na acção sócio-caritativa, sem esquecer a importância da doutrina social da Igreja. Reconduzindo-os à sua fonte em que o eros é purificado e conduzido à perfeição pela ágape, Bento XVI dá forma a uma sabedoria da fé que abre os horizontes da esperança, na certeza de que "Deus é amor".

Henrique Noronha Galvão
Professor de Teologia na Universidade Católica Portuguesa; foi aluno de Joseph Ratzinger e membro da Comissão Teológica Internacional entre 1986 e 2002

Fonte Público

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