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Em missão por terras de África
2005-12-05 17:18:27

Um jovem padre trocou o conforto da arquidiocese de Braga por uma paróquia do tamanho do Alto Alentejo, no interior de Moçambique. Prega a palavra de Deus e salva vidas humanas. Com paixão.

A oração da manhã foi interrompida pelo chamamento de um grupo que tinha vindo de muito longe, da comunidade de Araca, com uma mulher doente às costas. A mulher, ainda jovem, tinha acabado de dar à luz, num parto difícil, e a família chamou para ver se o padre a podia levar ao hospital.

Afinal, coisa habitual nestas paragens do mundo, África profunda, onde as distâncias das picadas, vinte, trinta, quarenta quilómetros, se fazem a pé. O que vale é o padre “que leva a gente de carro ao hospital e não cobra dinheiro.”

A saída para a comunidade de Quemela, a 26 quilómetros da Missão de Ocua, estava prevista para as 07h45, mas a ida ao hospital de Chiúre acabou por causar um atraso de meia hora. Nada de relevante, num país, num continente, onde o tempo tem muito tempo. Tem todo o tempo do mundo.

O caso era complicado e foi preciso transferir a mulher para o hospital de Namapa, já na província de Nampula. Tudo bem, até porque ficava praticamente no caminho de Quemela.Já tinham batido as 09h30 quando o padre chegou à comunidade. Estava tudo à espera, porque o povo sabe que “o padre pode ter um problema e atrasar, mas quando promete nunca falta”.

As saudações são sempre demoradas, porque o padre passa às vezes mais de um ano sem ali fazer uma visita pastoral. Depois de cumprimentados os fiéis um a um, a Missa lá começou. Eram dez da manhã. A igreja é exactamente uma palhota, só que um pouco maior. A decoração é simples. Uma capulana cobre o altar, sobre o qual estão a água e o vinho para a Missa, o cálice e um taparuére com hóstias por consagrar.

De um lado e de outro, duas garrafas de cerveja, com uma flor cada uma. São as jarras mais bonitas que conseguiram encontrar. Às vezes são garrafas de Coca-Cola. Ao lado direito do padre senta-se o zonal (responsável por uma zona da paróquia) e ao lado esquerdo o tradutor, o senhor Cassiano, que acompanha o padre Torres para todo o lado. Os fiéis sentam-se todos no chão, eles do lado direito e elas do lado esquerdo. É da tradição. A atenção e o empenho na celebração da Missa são profundos.

O rato que procura comida no capim que cobre a capela caminha de um lado para o outro, mas passa completamente despercebido. Aqui, como o tempo dá para tudo, é na altura da reconciliação que as pessoas se confessam. Quem não precisar sai da igreja.“Eu só estou ali para ouvir e absolver. Eles até se confessam em macua (língua indígena) e eu não percebo a maioria das palavras. No entanto eles confessam-se com sentimento e arrependem-se de verdade.

Aqui levam-se as coisas da fé mais a sério do que na Europa”, diz o padre João Torres, um jovem sacerdote que resolveu trocar o conforto da arquidiocese de Braga por uma paróquia do tamanho do Alto Alentejo. Uma paróquia perdida no interior da província moçambicana de Cabo Delgado.

A cerimónia leva mais de três horas, por isso as crianças acabam por ficar um pouco irrequietas. Os bebés são amamentados mesmo dentro da igreja, porque a fome não perdoa. Não sabe esperar. “Aqui a missa acaba quando termina”, o senhor Cassiano, do alto dos seus 60 anos.

Os cânticos, em macua, têm melodias simples, mas de rara beleza. E são cantados com sentimento, com vontade de louvar “o Deus Criador, o Deus Amigo, o Deus que nos dá tudo para viver.” Cantam assim, louvam e agradecem, mas a pobreza destas gentes é impressionante. Trabalham de sol a sol, vivem do trabalho na terra, comem milho e mandioca e, de longe a longe, uma galinha ou um pedaço de cabrito. Moram em palhotas, feitas de bambu revestido com barro e coberta de capim. Alguns, só mesmo alguns, têm a sorte de dormir numa quipamba (espécie de cama baixinha), mas a maioria dorme no chão. A mesa que faz de altar na igreja é, quase sempre, a única mesa que existe na comunidade.

Mas o padre João Torres diz que “esta pobreza não é miséria”. “No mato as pessoas não passam fome, só que não têm mais nada do que o verdadeiramente fundamental”, explica o sacerdote, nascido há três décadas na vila de Arco de Baúlhe, Cabeceiras de Basto.

A assistência médica e a falta de água são as questões mais problemáticas. Às vezes têm de fazer dez quilómetros a pé para irem buscar um balde de vinte litros de água, à cabeça. É claro que, ao longo do dia, o precioso líquido é poupada ao centilitro. Quanto à saúde, se não for o padre, muita gente acaba por morrer por falta de transporte para o hospital. Para não falar das condições indescritíveis dos hospitais. Para se ter uma ideia, o hospital onde ficou internada a mulher que pediu socorro ao padre, em Namapa, serve uma população de 250 mil pessoas. Mais: só tem um médico, que é o director e não tem água canalizada.

A celebração já chegou ao abraço da paz e na homilia o padre, traduzido por um ancião, o senhor Cassiano, falou de paz, de amor e de alegria. Mas em linguagem prática: “roubar é mau”, “andar na bebedeira não é bom”, “dormir com a mulher do próximo é contra as leis de Deus”. Regras simples de convivência. No final, o padre convida os fiéis a falarem dos seus problemas. “Podem dizer o que quiserem, que eu estou aqui para ouvir”, anuncia antes de se sentar.

E eles vão falando, com notável disciplina, sem atropelos e com o maior respeito pela opinião de quem tem a palavra. Falam de coisas boas e más, mas sobretudo das dificuldades. E aqui, em Quemela, a maior preocupação é, sem dúvida, a falta de assistência médica. O hospital mais próximo, em Chiúre, fica a mais de 40 quilómetros e tem condições desumanas. Como também não há transportes, os casos graves têm o fatal destino da morte. A mordidela de cobra é uma das grandes causas de morte na zona, precisamente devido à falta de transporte para o hospital. É que os remédios dos curandeiros nem sempre são suficientes.

O padre anuncia que já falou com o Governador e que este lhe prometeu a construção de um posto de saúde na vila mais próxima, a cerca de dez quilómetros. E todos acreditam, porque o que o padre diz é verdade. “Ele tem uma luz que o ilumina. Um dia conseguiu sozinho adivinhar quem lhe tinha roubado as ovelhas, por isso, se ele diz que vão fazer um hospital é porque é verdade”, disse Anselmo Mamude, um dos animadores da paróquia. Haja esperança.

Finda a Eucaristia, a festa toma conta do terreiro central da aldeia, com a apresentação de três peças de teatro pelo grupo de jovens: ‘David Contra Golias’, ‘O Catequista Bêbado’ e ‘O Nascimento de Jesus’. Uma festa imensa, que terminou por volta das 15h00 com um almoço ‘melhorado’: farinha de mandioca com galinha e ovos escalfados.

O regresso a casa deu para uma longa conversa sobre o porquê de tanta paixão por estas gentes e por estas terras pedidas nos confins do mundo. “Aqui nós somos realmente úteis. Pregamos a palavra de Deus e salvamos vidas”, disse o padre João Torres, no momento em que é mandado parar por um grupo de pessoas. Era para ver se levava um homem para o hospital, que sofria de “perna inchada”. E lá segue a viagem, agora com mais de 15 pessoas na caixa aberta de uma carrinha, que também ela tem muitas histórias para contar. “Uma vez nasceu aqui dentro uma criança. Só com muito esforço é que impedi que lhe chamassem Toyota Hilux”. O padre João Torres termina no final deste ano a sua “primeira” missão em Moçambique.

MAPA DAS MISSÕES

MOÇAMBIQUE PRECISA DE MAIS MISSIONÁRIOS

A maior parte dos civis integra projectos de voluntariado com periodicidades na ordem dos dois a seis meses. Já as freiras, algumas estão nas missões há mais de 40 anos e para toda a vida. No que toca aos padres, é onde se nota a maior carência – cerca de metade são idosos e muitos deles dão aulas em seminários e faculdades, nomeadamente na cidade de Maputo. Restam uns 150, quase todos de ordens religiosas de vocação missionária, para o vastíssimo território de Moçambique.

O padre Albino dos Anjos, responsável pelos Missionários da Boa Nova, em Pemba, diz que "o problema radica sobretudo na falta de vocações sacerdotais, já que os sacerdotes, por norma, não recusam o chamamento missionário". D. Jaime Pedro Gonçalves, arcebispo da Beira e presidente da Conferência Episcopal de Moçambique, já fez vários pedidos aos bispos portugueses para que apoiem mais as missões em Moçambique, mas sabe que em Portugal o clero também não abunda.

"Nós precisamos muito dos padres missionários portugueses. Ajudam à formação de sacerdotes moçambicanos e, sobretudo, organizam o trabalho paroquial junto das comunidades, algumas muito isoladas que passam anos sem ter uma Missa sequer", disse D. Jaime Gonçalves, referindo, no entanto, que compreende as dificuldades dos seus congéneres portugueses.

- 350 missões = 2500 portugueses (400 padres, 1200 religiosas e 900 civis).

ESCOLAS ONDE FALTA TUDO

Para além da Saúde, também a Educação é uma das apostas fortes das missões em Moçambique. As escolas são construídas à imagem das existentes, só que em vez de cana, barro e capim, são de tijolo e cimento.Têm mesas e cadeiras, lápis, livros e cadernos. Mas são uma gota no oceano.

A maior parte confunde-se com as restantes palhotas da povoação e muitas até funcionam debaixo de uma árvore, sem qualquer estrutura física, para além de um quadro, uma mesa e um rádio/gravador. A escola de Mahípa, por exemplo, a caminho de Nampula, tem 460 alunos distribuídos por seis salas. Escrevem em cima do joelho e só têm livros há três anos.

E os compêndios pertencem à escola e passam de uns alunos para os outros. Mas no meio de todas as dificuldades, salta à vista a disciplina das crianças. O silêncio é total e quando o professor entra dizem todos em coro 'bom dia senhor professor'. E as aulas começam sempre com o Hino Nacional respeitosamente cantado.

A TERRA DA NOSSA FELICIDADE

A independência atirou-os para a Metrópole. Não se resignaram e regressaram a Moçambique. Para a terra da felicidade. Este é um daqueles amores que não dá para descrever. E foi por causa deste amor que Manuel Correia e Maria Esmeralda decidiram, já na idade da reforma, recomeçar a vida. Construir tudo outra vez. Despiram a pele de reformados, que involuntariamente envergaram durante quase duas décadas, em Tondela, e em Janeiro de 1994 voltaram para Moçambique, para uma pequena vila no interior da província de Cabo Delgado.

É o único lugar do mundo onde estes portugueses conseguem realizar os seus sonhos. “Nós estamos ligados a esta terra de todas as maneiras”, diz Maria Esmeralda. Nem precisa explicar porque os seus olhos não a deixam mentir. Eles são missionários à sua maneira.

Secundino Cunha, em Moçambique

Fonte CM

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