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Carta Pastoral do Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo - A Igreja na Cidade
2005-09-08 22:33:59

I – A IGREJA E A CIDADE
1. A “missão na cidade” situa-se no contexto das relações da Igreja com a Cidade. Sendo expressão da sua obediência a Jesus Cristo, Seu Senhor, o anúncio do Evangelho é uma expressão do amor da Igreja por todos os homens e mulheres que sofrem e lutam para edificar uma sociedade de rosto humano. A Igreja evangeliza porque está convencida de que o anúncio de Jesus Cristo é o anúncio da esperança, e que a fé introduz na realidade humana uma força que potencia quanto de bom existe no coração humano, para a edificação de uma cidade justa e fraterna.


É bom esclarecer, desde o início, o sentido em que usamos as palavras “Igreja” e “Cidade”. Por Igreja entendemos toda a comunidade dos crentes, que entraram nela pelo baptismo e se reúnem ao domingo para celebrar o memorial da Páscoa de Jesus. Se o baptismo consagra o crente, unindo a sua vida à de Cristo ressuscitado, a celebração dominical sublinha e afirma a visibilidade histórica e social da Igreja. Na linguagem corrente há tendência simplificadora de falar da Igreja referindo-se apenas à sua Hierarquia. Quando for esse o sentido das nossas afirmações, referi-lo-emos explicitamente. Em geral falaremos da Igreja como Povo de Deus, totalidade dos fiéis, verdadeiro sujeito social da missão e da presença da Igreja na cidade.
A Igreja é uma realidade complexa, que dificilmente se compreende a partir da simples observação exterior. Aproximamo-nos mais da percepção da sua realidade através da vivência dos cristãos, que são chamados a fazer das suas acções o reflexo do mistério em que acreditam. A dimensão mais decisiva e fundamental da realidade da Igreja é invisível, silenciosa, guardada e sentida no mais íntimo do coração humano. A união vital a Jesus Cristo, que está vivo na Sua Igreja e a participação na comunhão de vida e de amor das próprias pessoas divinas, o Pai, o Filho Jesus Cristo e o Espírito Santo, são dimensões decisivas na vida cristã, que só se adivinham e pressentem no reflexo que têm na vida dos cristãos. Mas, por outro lado, devido à força comunitária da sua expressão, a Igreja tem uma forte visibilidade histórica e social, “é tão visível como a República de Veneza”, dizia São Roberto de Belarmino. É verdadeiramente uma comunidade visível, estruturada e hierarquizada; é visível no seu número, na força da comunidade reunida, na expressão da sua fé na cidade, na maneira como se organiza para a missão. Na sua visibilidade, ela interpenetra-se e interpela a cidade.
A força da Igreja reside na unidade entre esta visibilidade e a sua dimensão misteriosa e invisível. Também aqui ela imita Jesus Cristo, Seu Senhor, que na visibilidade da Sua natureza humana nos torna presente o mistério insondável do mistério de Deus . Aliás acontece algo de semelhante com o homem, que exprime a dimensão espiritual que o define e distingue, através da sua corporeidade. Um corpo sem alma não é humano. Esta variada riqueza da realidade da Igreja está toda presente na sua presença e acção na Cidade.

2. Damos à palavra Cidade o sentido abrangente de comunidade humana, quase sinónimo de sociedade, que encontra nas cidades a sua concretização estruturada e paradigmática. O homem é um ser social, chamado a conviver. A cidade é o lugar da convivência dos homens, onde nenhum ser humano pode viver a sua vida desligado da vida dos seus irmãos. Edificar a cidade é encontrar a convergência e a harmonia entre o bem pessoal e o bem comum. Viver na cidade é sinal de convivência e corresponsabilidade. A cidade é o rosto visível da comunidade humana, onde cada homem é responsável pelos outros homens.
Ao falar de Igreja na Cidade, olhamos particularmente para a nossa cidade de Lisboa, para todas as cidades da nossa diocese, a quem queremos proclamar o Evangelho da esperança. Mas o que dissermos aplica-se à missão da Igreja na sociedade, vista como um todo, pois nenhuma cidade se pode isolar da sociedade mais vasta em que está inserida.

A Igreja faz parte da Cidade
3. A expressão “missão na cidade” não pode ser entendida no sentido dos missionários que vêem de longe anunciar o Evangelho à cidade, como Jonas foi enviado a Ninive ou como São Francisco Xavier que percorreu todo o Oriente a proclamar, pela primeira vez, o Evangelho de Jesus Cristo. Não. Entre nós, a Igreja está na cidade, ela faz parte da cidade, da sua história, das suas mais enraizadas tradições, da sua cultura; é inspiradora dos valores que prossegue. Entre a Igreja e a nossa cidade há um longo caminho percorrido em conjunto e queremos continuar a percorrê-lo, para que seja mais humana, justa e acolhedora.
A Igreja na sua fisionomia de Povo de crentes e na sua estruturação comunitária, apresenta-se com a visibilidade de uma cidade, a Cidade de Deus, lhe chamou Santo Agostinho. Mas isso não a separa, nem isola, da cidade dos homens. Quando muito diremos, com o Concílio Vaticano II, que o cristão é cidadão de duas cidades. Os valores de comunhão e de fraternidade que devem caracterizar a Igreja como comunidade, são os mesmos valores com que os cristãos devem contribuir para o progresso da cidade dos homens. É por isso que todo o esforço para construir uma sociedade mais fraterna e mais digna do homem, é missão dos cristãos e pode ser expressão da sua fé. E o seu reconhecimento na cidade passa também pela evidência do seu contributo específico para o bem comum, quando se torna claro que a sua fé e o dinamismo que dela brota, se transformam em mais valia para a cidade.
A fé cristã inspira uma maneira de viver, fundamentada na dimensão teologal de participação na “vida nova” de Cristo ressuscitado, que deve exprimir-se em todas as dimensões do exercício da liberdade, pessoais e sociais. Foi para a liberdade que Cristo vos libertou, escreveu São Paulo aos cristãos de Roma (cf. VI, 6). É no concreto das opções e das reacções que o cristão é chamado a exprimir a novidade vital da sua fé. A experiência religiosa não isola o cristão num reduto místico que o separa da cidade dos homens. É aí que ele é chamado a testemunhar a esperança. O cristão não deve fugir da cidade, mesmo quando é incompreendido ou mesmo perseguido. E essa é a verdadeira “missão na cidade”: ir anunciando, pelo testemunho de uma existência coerente com a fé, a novidade libertadora do Evangelho de Jesus Cristo. É algo de permanente, que faz parte intrínseca da missão da Igreja no mundo. Talvez a galopante laicização da nossa sociedade encontre também a sua causa nessa falta de testemunho vivo dos cristãos na cidade. Esconder-se, atemorizados pela dificuldade das circunstâncias, ou não perceber que o concreto da vida é campo de expressão da fé, é, no fundo, abandonar a cidade.

II – A NOSSA CIDADE
4. A missão da Igreja na cidade exige que se conheçam as grandes coordenadas da sua problemática humana. As cidades, enquanto grandes aglomerados de populações, deveriam ser espaço de encontro e de convergência, de solidariedade e de partilha da vida, numa palavra, espaços abertos à construção de comunidades. Esta dimensão humana é a que mais interpela a Igreja, pois é às pessoas que ela é enviada para as ajudar a serem felizes, construindo, em comunidade, a consciência da sua dignidade e o espaço da sua liberdade. Como os próprios cientistas reconhecem, esta visão humanista da cidade está por desenvolver e tem sido esquecida no traçar das políticas e no gizar de soluções para a cidade. E, no entanto, ela é decisiva para garantir o rosto humano das cidades, concebidas como espaço de convivência entre pessoas. A missão da Igreja leva necessariamente à edificação de comunidades, enraizadas no mandamento cristão do amor fraterno, particularmente atentas aos mais isolados e distantes desse calor da comunhão, abertas e acolhedoras de todos os que buscam a partilha fraterna, anunciando-lhes o ideal da comunhão cristã. A missão da Igreja, enquanto dinamismo comunitário, pode ser decisiva na edificação de uma cidade de rosto humano.
Estamos conscientes de que os problemas da sociedade global se espelham na problemática das grandes cidades, não apenas devido ao fenómeno da “urbanização” progressiva das populações, mas também porque elas se tornam pólos de influência no todo da população, por serem centros de decisão do poder político, da actividade económica e financeira, da expressão cultural. Ao falarmos da cidade não deixamos de parte o resto da diocese, pois Lisboa é, hoje, uma realidade envolvente, composta por cidades e bairros periféricos que marcam o ritmo de toda a população.

A alma de Lisboa
5. Lisboa tem alma própria, que lhe define a sua identidade cultural, e que tem de ser tomada em conta neste projecto de evangelização, até porque as componentes dessa identidade cultural, ou têm origem no cristianismo, ou são convergentes com ele, constituindo aberturas ao anúncio do Evangelho.
Lisboa nasceu abraçada pelo rio. Segundo uma tradição remota, Lisboa veio do mar. Aqueles que a fundaram deixaram-se cativar pelo carácter acolhedor do estuário do Tejo. A alma de Lisboa é incompreensível sem a sua relação com o rio, que a abre ao horizonte largo do Oceano, desafio de aventura e de universalidade. Do mar vieram os cruzados e as relíquias de São Vicente; ao Tejo chegaram, certamente, os primeiros evangelizadores, mercadores ou soldados; do Tejo partiram as caravelas, abrindo Lisboa à universalidade.
Na definição desta alma de Lisboa ressalta a sua identidade cristã, que nem o terramoto soterrou, visível nas torres e fachadas das Igrejas, elementos estruturantes do tecido urbano, na beleza do património artístico religioso que, sem deixar de encher as Igrejas, foi suficiente para enriquecer museus. E como não reconhecer a alma de Lisboa nas grandes tradições culturais de natureza religiosa: a procissão da Senhora da Saúde, de Santo António, do Corpo de Deus?
Longamente dominada por muçulmanos, nela sempre habitaram cristãos e judeus, numa experiência única de convivência e tolerância. Esta tem de continuar a ser uma nota constitutiva da fisionomia cultural de Lisboa, na imensa variedade da sua população actual. Só assim se vencerá a dificuldade de muitas metrópoles contemporâneas: a fragmentação em estratos populacionais, incomunicáveis entre si, anulando aquele que deveria ser o elemento definidor de uma cidade, a comunicação e inter-acção entre as pessoas, as famílias, os diversos grupos populacionais. A Igreja, enquanto fenómeno de comunhão, tem de se assumir como proposta de solução para este problema. Só assim se revitalizará a vertente cristã da alma de Lisboa.

A população de Lisboa
6. Lisboa, com atraso em relação a idêntico fenómeno nas grandes metrópoles europeias, encontrou na imigração do campo para a cidade o elemento principal da renovação demográfica. Ainda hoje, sobretudo nos bairros periféricos, identificamos as populações pela zona do país de onde procedem, o que tem as suas consequências na expressão comunitária das paróquias, devido à variedade dos comportamentos religiosos de Norte a Sul do país. Hoje pode dizer-se que a renovação demográfica de Lisboa depende, em grande parte, do “saldo fisiológico”, isto é, o equilíbrio dos factores mortalidade e natalidade. Este elemento tem, hoje, de ser completado com outros fenómenos, tais como a imigração de outros povos, a mobilidade das populações actuais e a permanência, ainda que em menor grau, da imigração procedente de outras zonas do país.
O tecido demográfico acarreta consigo outras características da população, com particular incidência na evangelização e na missão da Igreja. Refiro, a título de exemplo: a diferença entre a população de origem lisboeta e os grupos populacionais de outras procedências étnicas ou regionais; a pluralidade cultural e religiosa, de certo modo uma novidade na fisionomia de Lisboa, a desafiar à tolerância e ao diálogo entre culturas e tradições religiosas. A tradição católica continua a ser maioritária, mas fragilizada na sua capacidade de influência pelo grande número de habitantes que não vivem, no concreto da experiência, a fé religiosa com que ainda se identificam. Temos de perceber em que medida esta “não-prática” de um tão grande grupo de católicos, é uma facilidade ou uma dificuldade para a proposta evangelizadora. Nota-se, nesse grupo, a tendência de avaliar a importância da Igreja pela sua intervenção social e de considerar que todas as religiões são iguais. A descoberta da especificidade cristã tem de constituir objectivo preciso da missão evangelizadora da Igreja.
Tendo em conta a sua variedade plural, há outras características da população de Lisboa, com incidências especiais na missão da Igreja, que vale a pena referir aqui, ainda que sucintamente.

A mobilidade
7. Trata-se de uma característica das grandes cidades, em evolução crescente desde há dois séculos, mas que deu um salto qualitativo com a civilização do automóvel e o alargamento da rede de transportes públicos. Tudo isto provocou alterações sucessivas na concepção das cidades e na vida das populações. A cidade passou a organizar-se a partir das exigências dos transportes, e não das pessoas. Os chamados “peões” perderam espaço nas grandes cidades, que privilegiaram a deslocação, de casa para o trabalho, da periferia para o centro e vice-versa, na busca dos múltiplos centros de interesse das pessoas e das famílias, que parecem passageiros em trânsito.
A mobilidade introduz alterações profundas na compreensão da vida. Antes de mais na definição do “tempo humano”, isto é, a relação da vida com a ocupação do tempo, ou o tempo concebido como espaço para a vida. “Passageiros em trânsito”, não têm tempo para a leitura, para o convívio, para a oração e vida religiosa, para o lazer que passa a ser, apenas, e quando o é, mais um número de um programa sobrecarregado. O cristianismo introduz na vida uma dimensão contemplativa, o que supõe um tempo humano mais pacificador. Há dimensões essenciais da felicidade humana que, para não as perder, é preciso lutar contra o boliço da cidade. A Igreja não se pode deixar arrastar para essa voragem do “tempo-sem-tempo”, e oferecer às pessoas o espaço-tempo da tranquilidade e da paz.
Uma outra consequência da mobilidade nas grandes cidades é a relativização do território como elemento principal da definição do “sentido de pertença”. A cidade está organizada numa base cultural, que se concretiza nos procedimentos e nas leis, segundo a qual a pessoa pertence ao sítio onde vive. Pertence-se à paróquia-freguesia da sua residência; aí se vota, aí se põem os filhos na escola-pública e a partir desse dado territorial se define o hospital ou centro de saúde a que se tem acesso, etc. Ora, na cidade marcada pela mobilidade, surgem novos critérios de pertença: a comunidade que se elegeu, o grupo a que se pertence, o lugar onde se trabalha, as práticas de lazer que se cultivam. O cidadão da cidade moderna define a sua vida num sistema de “multi-pertença”, que se relativiza e até choca com o sentido de pertença definido a partir do território.
No que à cidade de Lisboa diz respeito, e em termos de organização da Igreja, este dado faz-se sentir no sentido de pertença a movimentos e comunidades cristãs que não são as do território onde se vive, o que exige uma reflexão séria e criativa sobre a paróquia urbana e a relação com ela de outras realidades comunitárias, tais como os movimentos eclesiais e as comunidades que se formam à volta de um elemento comum congregador, como o podem ser uma escola católica ou um projecto de intervenção social.

A cidade silenciosa e esquecida
8. Quando procuramos tipificar a população de Lisboa, não podemos ignorar um estrato numeroso dessa população: os idosos, os que vivem sozinhos, os pobres. Eles ocupam um lugar privilegiado no coração da Igreja. É urgente aperfeiçoar os conhecimentos de definição, quantitativa e qualitativa, desta população, para melhor estruturar formas de presença fraterna e de inclusão social. A Igreja, com uma forte presença organizada nas estruturas de apoio assistencial, pode ser, para muitos deles, a porta da esperança. A palavra que anuncia o Evangelho tem de ser, junto desta população, acompanhada do testemunho da ternura que liberta e ajuda cada um a sentir-se pessoa. E aí ganha relevância a comunidade local, porque a caridade fraterna é também exercício de vizinhança.

A cidade temida e evitada
A adensar a complexidade da nossa cidade, surgem aqueles bairros que muitos evitam e alguns temem, porque intuem a possível relação existente entre eles e a insegurança urbana. São, frequentemente, marcados por dimensões como as minorias étnicas, os migrantes clandestinos, a economia paralela, a marginalidade social. A Igreja tem já uma presença viva e estruturada em todos eles e aparece como a instituição mais respeitada. Em alguns deles, a acção da Igreja foi o ponto de partida da sua evolução e integração social. Mas isso não significa que não continuem a representar, para a Igreja, um grande desafio pastoral, inventando formas sempre novas de pôr em prática aquilo a que João Paulo II chamou “a fantasia da caridade”. Temos consciência de que a prioridade está em desenvolver acções e pedagogias envolventes que levem os habitantes desses bairros a sentir-se pessoas, a conviverem com toda a restante população na mesma cidade, da qual não se devem sentir excluídos e ninguém os deveria excluir.
Perante estes estratos de população mais problemáticos, a Igreja está disposta a inter-agir, em convergência de colaboração, com outras entidades, públicas e privadas.


III – A IGREJA ENVIADA À CIDADE
9. É a esta cidade concreta que a Igreja é hoje enviada, anunciando a esperança que brota da mensagem evangélica. A missão da Igreja na cidade é uma realidade permanente, porque a Igreja partilha a vida, as tristezas e alegrias, os problemas e as esperanças da cidade. A missão evangelizadora da Igreja deve sempre harmonizar a dimensão perene da perspectiva evangélica da vida e da história, com as respostas, situadas no tempo, aos problemas actuais da comunidade. Trata-se de ler o Evangelho de sempre, como Palavra de Jesus Cristo, vivo na Sua Igreja, discernindo e interpretando os “sinais dos tempos”, isto é, captando as incidências entre o Evangelho e a vida concreta dos homens, em cada momento e em cada tempo. O Congresso Internacional para a Nova Evangelização, procura essa síntese: anunciar a verdade perene, o Evangelho de Jesus Cristo, não de forma abstracta, mas como mensagem dirigida a homens concretos, num tempo concreto. Isso exige dos evangelizadores uma dupla experiência: de contacto profundo com Jesus Cristo vivo e com a Sua Palavra e de empenhamento generoso na vida dos homens. É uma dupla paixão, que é afinal a mesma, porque a paixão de Jesus Cristo é o homem. Quanto mais o conhecemos e amamos, mais nos sentimos enviados por Ele para o amor dos homens. Esta dupla experiência tem de constituir a atitude permanente duma Igreja que se assume como enviada e há-de aprofundar-se no Congresso, constituindo a sua principal consequência, a exigir continuidade e radicalidade.

Lisboa ainda é uma cidade cristã?
10. Um estudo recente, referido na imprensa diária, situava a Polónia e Portugal como os países da União Europeia onde a fé religiosa, concretamente a fé em Deus, tem uma maior expressão. Isso leva-nos a tentar enunciar, ainda que de forma resumida e genérica, as principais atitudes que definem a população de Lisboa do ponto de vista da fé religiosa.
· Os chamados católicos praticantes, aqueles que, por fé esclarecida ou simples tradição religiosa, se reúnem ao domingo para celebrar a Eucaristia. Esta é, desde os primeiros séculos, a afirmação principal da pertença à Igreja e da fé em Cristo ressuscitado. Aliás a Igreja reúne-se ao domingo (Dies Domini), porque é o dia em que Cristo ressuscitou dos mortos. Toda a evangelização deve conduzir a esta valorização do domingo, dia em que a Igreja se reconhece e se assume como comunidade pascal. Quando os baptizados não fazem, espontaneamente, da reunião dominical a principal expressão da sua fé e da sua identidade cristã, ainda não assumiram um verdadeiro sentido de pertença à Igreja. A valorização da liturgia dominical, em profundidade e beleza, torna-se elemento decisivo para o crescimento da fé das comunidades.
Na Diocese de Lisboa, aqueles que se reúnem ao domingo são cerca de 12% da população total, quando os contamos num domingo em concreto. Quando interrogamos amostragens da população, com o método da sondagem, sobe a percentagem dos que se declaram “praticantes”, o que revela uma atitude que se vai acentuando: muitos cristãos, mesmo indo habitualmente à missa dominical, não vão todos os domingos, sem deixarem por isso, de se considerar praticantes. Esta atitude denuncia a relativização progressiva do “preceito” da obrigatoriedade da missa dominical. Este dado não pode ser descurado na pastoral evangelizadora, pois toda ela deve levar os cristãos baptizados a assumirem a sua pertença à Igreja e a reconhecer na Eucaristia dominical a sua principal expressão. Em todo o caso, é preciso reconhecer que as assembleias dominicais são a principal expressão da visibilidade da Igreja na cidade e o ponto de partida para a irradiação da missão.
· Os baptizados “não praticantes”. É um grupo significativo da nossa população. É um fenómeno que se deve a vários factores: o hábito, ainda generalizado, de pedir o baptismo para as crianças; a fragilização progressiva da família como primeira comunidade transmissora da fé; uma catequese de infância, onde incidem todas as dificuldades sociológicas da família, mais concebida como aprendizagem de uma doutrina e não tanto como processo de iniciação à vida cristã e que se revelou, muitas vezes, incapaz de fidelizar, num sentido de pertença à Igreja; a evolução do sentido do dever da prática religiosa, que desliza das condicionantes culturais e sociais, para uma opção pessoal, consciente e livre; o ambiente cultural envolvente, marcado pelo naturalismo.
Este grupo deve constituir o alvo privilegiado da “nova evangelização”, porque guarda uma atitude crente fundamental, muitos contactam ainda a Igreja em momentos particularmente significativos da vida, como o são o nascimento, o casamento, a morte e outros momentos de aflição. E também porque o baptismo é sempre uma semente de vida sobrenatural da fé, apta a germinar desde que o mínimo de circunstâncias lhe sejam propícias. A acção pastoral junto destes “cristãos esquecidos”, exige da Igreja uma reflexão criativa sobre atitudes e métodos. A evangelização tem de privilegiar o primeiro anúncio querigmático, em que se valorize o acolhimento como momento desse anúncio. A catequese tem de se afirmar como caminhada de iniciação catecumenal e a administração dos sacramentos que ainda solicitam à Igreja tem de se enquadrar numa proposta de evangelização. A Igreja não nega sacramentos, mas tem o direito e o dever de ajudar a criar as atitudes de fé que permitam recebê-los com fruto.
· Os ateus e os agnósticos. Não é fácil quantificar este grupo. Enquanto o ateísmo é, normalmente, uma atitude fundamentada racionalmente, o agnosticismo apresenta-se como um não tomar posição perante Deus e a religião. Os seus fundamentos racionais são, por vezes, tão frágeis como os do simples abandono da prática religiosa. Tem frequentemente a ver com a afirmação da laicidade, característica política do Estado moderno, transformada em “religião laica”, que se estende, abusivamente, à sociedade como um todo, qual filosofia inspiradora de valores e comportamentos.
A Igreja mantém com este grupo de cidadãos, muitos deles baptizados, uma atitude respeitadora e de abertura ao diálogo, porque muitos deles, sobretudo os agentes culturais, mantêm atitudes convergentes com a acção da Igreja. Essa abertura ao diálogo é o contexto em que se podem detectar aberturas à mensagem evangélica, mas não pode impedir a Igreja de proclamar, na sociedade, os valores e perspectivas que brotam da fé cristã, sobretudo no que diz respeito à dignidade da vida e da pessoa humana e à harmonia da sociedade, baseada na verdade, na justiça e na construção da fraternidade e da paz.
· Os outros grupos religiosos. A maior parte reportam-se ao cristianismo, quer sob a forma de Igrejas organizadas, quer em tradições mais diáfanas e doutrinalmente menos estruturadas. A atitude ecuménica é hoje componente constitutiva de toda a pastoral da Igreja. A diocese de Lisboa quer praticá-la em comunhão com as orientações do Santo Padre para toda a Igreja Universal.
Além destas comunidades crentes que se reportam ao cristianismo, estão implantadas, na cidade de Lisboa, comunidades significativas de outras religiões, tais como o judaísmo, o islamismo, o hinduísmo e mesmo o budismo. O respeito mútuo, ponto de partida para um sadio diálogo inter-religioso, deve ser a nossa atitude fundamental, que não exclui colaboração inter-religiosa em projectos concretos, sobretudo de incidência social. Mas devemos estar vigilantes para que esta atitude de diálogo não caía num sincretismo religioso, em que todas as religiões são iguais. A fidelidade à nossa especificidade católica é a base segura para todo o diálogo ecuménico e inter-religioso.

Uma identidade cristã difícil e problemática
11. Um dos factores que a evangelização tem de ter em conta é a deterioração progressiva da identidade cristã e da especificidade da vida da graça, assumida como caminho de santidade, e que se verifica mesmo entre o grupo dos cristãos praticantes. As principais manifestações desta tendência são a separação entre a vida da fé e a atitude moral que inspira o exercício da liberdade nos comportamentos habituais, esquecendo que a fidelidade cristã se exprime também nas “obras da fé”, agindo segundo a exigência do Evangelho, conduzidos pelo Espírito Santo; a pobreza da vida de oração vista apenas como intercessão, nos momentos de aflição, e não como expressão de uma intimidade de vida e de amor com Deus.
Este fenómeno encontra as suas causas, não apenas na fraqueza pessoal, mas no ambiente cultural envolvente, cada vez menos condizente com a qualidade da vida cristã e que influencia também as atitudes e comportamentos dos cristãos, o que sublinha a importância da evangelização, não apenas das pessoas, mas também da cultura.

O naturalismo na compreensão da vida
12. O nosso tempo é positivamente marcado por uma valorização da natureza. Denunciam-se os abusos destruidores dos interesses e das concretizações do que se considera progresso e cultiva-se o respeito pela natureza, de que as pessoas aprendem a fruir. Esse culto da natureza gera o naturalismo na interpretação do sentido moral da existência, segundo o princípio de que tudo o que é natural é bom. Esta atitude esquece, no entanto, dados decisivos para uma existência de qualidade, segundo o desígnio criador de Deus. Antes de mais, não é coerente, pois não respeita a verdade da natureza em aspectos essenciais da dignidade humana, como são o respeito pela vida desde a sua concepção, os egoísmos desenfreados nas relações humanas, a prioridade dada à construção da harmonia e da paz, a defesa da família concebida como compromisso amoroso e fecundo entre o homem e a mulher, a própria abertura do coração humano à transcendência de Deus, também essa natural.
Mesmo na reflexão teológica, a harmonia entre a natureza e a graça não é fácil de conseguir. A experiência dolorosa do pecado que enfraqueceu o dinamismo positivo da natureza, levou muitas vezes a menosprezá-la, valorizando apenas a força redentora de Cristo como fonte da verdade e da harmonia. Numa cultura de super-valorização da natureza, é urgente retomar na evangelização a busca desta harmonia. O fruto da redenção que se exerce em nós através da acção do Espírito Santo, é levar o homem a viver em plenitude todas as potencialidade de amor, de verdade e de beleza contidas na criação. O que é natural só será plenamente bom se for vivido com a força da graça sobrenatural. Na verdade da existência cristã não pode haver lugar, nem para naturalismos simplistas, nem para visões desencarnadas da perfeição humana.

A “renúncia” à vida eterna
13. O já referido estudo, noticiado na imprensa diária, acrescentava outro dado: uma percentagem elevada dos que declararam acreditar em Deus, admitiam não acreditar na vida para além da morte, ou seja, excluem a esperança na vida eterna. Além de ser um contra-senso, pois não se percebe como é possível acreditar em Deus e excluir a vida eterna, altera o essencial da fé cristã que tem a sua fonte de verdade e de sentido na ressurreição de Cristo, em cuja plenitude de vida participamos desde já, na esperança de ressuscitarmos com Ele e por Ele sermos introduzidos na plenitude da vida. Essa é uma expressão de fé que está muito próxima da descrença.
Essa atitude altera, profundamente, o sentido da vida presente, reduzida aos limites deste mundo. A certeza de que a vida eterna começa já neste mundo, na vida vivida com Cristo, é a fonte da exigência e do sentido da vida e da morte. A vida eterna não é só o que vem depois da morte, mas é uma densidade de vida que envolve e dá sentido à própria morte. A vida limitada ao seu horizonte temporal altera inevitavelmente a maneira de viver a morte, a dos outros e a nossa.
Esta dimensão de eternidade da nossa própria vida, que inaugura, neste mundo, a dimensão escatológica, tem de fazer parte dos conteúdos de toda a evangelização. A Eucaristia e a pastoral da morte são momentos propícios para este anúncio.

O subjectivismo na busca da verdade
14. Uma outra dimensão do ambiente cultural em que vivemos, é a atitude das pessoas perante a verdade, que influencia a própria atitude dos cristãos praticantes. A valorização da liberdade individual, desemboca facilmente no subjectivismo da verdade, em que cada um tem direito a construir a sua própria verdade. Esta perspectiva põe em questão dimensões fundamentais da atitude do cristão frente à verdade: relativiza a origem transcendente e revelada da Verdade, para nós concretizada na Sagrada Escritura, sobretudo nos ensinamentos de Jesus, na Tradição e no Magistério da Igreja, enquanto intérprete autêntico dessa verdade revelada; e, ao acentuar exclusivamente a dimensão individual da verdade, secundariza a dimensão comunitária da verdade, constitutiva de uma Tradição. A nossa fé é a fé da Igreja e é por isso que só a Igreja pode ser Mestra segura da verdade e da fé, garantia da objectividade da própria verdade. A exigência moral da vida cristã encontra o seu fundamento nessa dimensão comunitária e revelada da verdade, e dilui-se sem essa referência à verdade objectiva, cuja plenitude nos foi manifestada em Jesus Cristo, Ele que nos disse claramente: Eu sou a verdade.

Sinais de esperança
15. O Concílio Vaticano II convidou-nos a identificar, na realidade complexa do mundo, em cada tempo histórico, sinais de esperança, lendo os “sinais dos tempos”. Aí é dito que a Igreja, para cumprir a sua missão no mundo, “tem o dever de, em cada momento, perscrutar os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho, para poder responder, de maneira adaptada a cada geração, às questões eternas da vida dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e suas relações recíprocas” .
Nesta sociedade a que a Igreja quer anunciar a esperança, é possível encontrar, na sua realidade complexa, sinais da acção do Espírito, sementes de verdade abertas à manifestação plena da verdade de Deus para o homem.
· A descoberta da solidariedade: apesar do acentuar de egoísmos pessoais e grupais que minam a sociedade, é notória a descoberta da solidariedade, enquanto expressão de ajuda mútua e de serviço dos outros. E é particularmente significativo que sejam os jovens os mais sensíveis a essa atitude. À luz do Evangelho e da exigência do amor fraterno, os cristãos estão na primeira linha desse serviço dos irmãos, pessoalmente e através das instituições da Igreja. Mas a evangelização deve levá-los a descobrir, cada vez mais, nessa solidariedade, a beleza da caridade, que acontece sempre que o amor dos irmãos é uma expressão do próprio amor de Deus.
· A redescoberta do dinamismo missionário: também aqui são sobretudo os jovens que têm a ousadia de inventar novas formas de partir em missão. Muitos fazem experiências de algum tempo o que leva sempre alguns a decidir consagrar toda a sua vida ao serviço da missão. Hoje são muitos os cristãos leigos que partem em missão: famílias, profissionais de várias áreas, pessoas enquadradas em movimentos. Este fenómeno é, em si mesmo, sinal da vitalidade da Igreja, que procura caminhos novos para a missão de sempre. A vocação missionária é constitutiva do ser da Igreja.
· A inquietação da radicalidade. Embora o panorama aparente da sociedade seja de facilitismo, atitude de quem busca e se contenta com uma felicidade momentânea, desfrutando avidamente de quanto a vida pode oferecer de imediato, nota-se em muitos a inquietação da profundidade e da radicalidade. Trata-se de uma espécie de insatisfação cultural que pode ser abertura à descoberta da autêntica radicalidade cristã.
· Voltar à oração. A fragilidade e, por vezes, o abandono completo da experiência pessoal da oração, é dos sintomas mais preocupantes da vida cristã. Mas também neste campo se verifica um movimento de redescoberta e valorização da oração pessoal, a partir de bases sólidas de toda a oração do cristão, tais como a valorização da oração litúrgica da Igreja e da adoração, sob a forma de adoração eucarística. Já o afirmámos várias vezes: a oração, porventura oculta e silenciosa, pode representar uma força decisiva para a vida da cidade.


IV – O ANÚNCIO CRISTÃO
16. Este Congresso acentuará a dimensão querigmática da nossa pastoral evangelizadora, ou seja, ensinar-nos-á a anunciar, de forma simples, directa e interpelante, as verdades decisivas da fé cristã, as únicas que podem mudar as vidas e converter os corações.
O anúncio querigmático da fé tem determinadas características que constituem a sua força de convicção. Tem a simplicidade da vida, a clareza da convicção, que lhe vem do facto de ser um testemunho de vida, a humildade da proposta, fruto do amor fraterno, baseado na coerência da verdade em que se acredita. Brota da alegria de se pertencer a um Povo, o Povo de Deus, verdadeiro sujeito da fé da Igreja, que situa no mistério da comunhão a dimensão pessoal e individual da nossa crença. É sempre uma expressão de amor, repassado de respeito pelos outros e desprendido nos resultados que espera ou procura, pois uns semeiam e outros colhem, e só o Senhor é o Mestre da seara.
Este testemunho simples, sincero e ousado, mas desprendido e gratuito, é hoje muito importante no contexto da missão da Igreja na cidade. Ele comunica o essencial da fé da Igreja, apresentada como experiência de vida e não apenas como exposição doutrinal.

Anunciar o Deus Vivo
17. Deus é um problema crucial para o homem de todos os tempos. Ele é um mistério, não no sentido de um enigma a decifrar, mas como realidade profunda no coração do homem, que este é convidado a descobrir, encontrando-se no mais profundo de si mesmo. O homem confronta-se, na busca da sua verdade, com problemas e com mistérios. Os problemas podem situar-se nas realidades exteriores ao homem, que ele procura esclarecer e, porventura, resolver, com a sua inteligência racional. O mistério situa-se no interior do homem e este só o pode iluminar mergulhando na sua própria profundidade. Quando o homem limita a sua própria busca da verdade ao nível mais superficial das aparências, corre o risco de marginalizar Deus, mesmo que continue a dizer que acredita n’Ele.
Queixamo-nos frequentemente de que Deus se esconde, é obscuro, não Se manifesta e no fundo somos nós que nos recusamos a mergulhar no mais profundo de nós mesmos. Aqueles que aceitam fazê-lo, conduzidos pelo Espírito, acabam por tocar a simplicidade e a luminosidade de Deus, que se nos revela com aquela proximidade íntima que só o amor torna possível. No anúncio querigmático de Deus, não basta falar de Deus, discutir sobre Deus; é essencial testemunhar aqueles momentos mais autênticos da nossa vida em que Deus se manifestou como luz. Escutar, sem desfalecer, a Sua Palavra, teimar humildemente na experiência da oração, porque são caminhos que nos conduzem ao mais fundo de nós mesmos, são, por isso mesmo, caminhos para experimentar o Deus Vivo. É dessa densidade e profundidade de experiência de Deus que Jesus Cristo é, para nós, a Testemunha, Ele que conhece Deus na intimidade do amor filial. Jesus Cristo é o Vivo porque entre a Sua vida e a vida de Deus há identificação que só o amor gera.

Reconhecer Deus em Jesus Cristo
18. É por isso que Cristo Vivo para sempre, porque venceu a morte e nos comunica a vida, ajudando-nos a vencer a nossa própria morte, é o anúncio primordial dos cristãos. Toda a mensagem de Jesus, o “Evangelho do Reino”, é um convite à profundidade. “Mudai o vosso coração”, eis o desafio que resume a Sua mensagem, que é desafio e proposta, na certeza da Sua experiência, de que Deus é o mais íntimo do homem. Esse é o itinerário que Cristo nos convida a percorrer com Ele, da superficialidade à profundidade, de um coração dividido a um coração novo, de um Deus desconhecido a uma experiência viva do Deus Vivo. O Senhor sabe que esse regresso à verdade profunda de nós mesmos pode supor o sofrimento purificador, caminho que Ele percorreu até à radicalidade, na certeza de que só Ele nos pode conduzir nesse acto recriador do regresso à profundidade de nós mesmos. Ele revela, sem explicar, a relação existente entre sofrimento e nova criação.
A quantos se sentem atraídos por Ele, o Senhor lança sempre o mesmo desafio: vinde comigo, segui-Me. Verdadeiramente não nos convida para lado nenhum, porque Ele próprio não tem onde reclinar a cabeça. O itinerário que nos propõe, seguindo-O, é o regresso à profundidade de um coração recriado, é ir ao encontro do Deus Vivo. É por isso que acrescenta: quem quiser vir comigo, tome a sua cruz e siga-Me. O regresso a Deus é sempre um acto de coragem radical e generosa.
Cristo ressuscitado está vivo, na Sua Igreja; só isso torna possível que continue, em todos os tempos, a convidar-nos a percorrer, com Ele, esse caminho de regresso, que é descoberta da mais profunda verdade de nós mesmos. E não nos convida, apenas, a ir atrás d’Ele. Porque nos comunica a Sua vida, atrai-nos para percorrer, com Ele, à maneira d’Ele, esse caminho da vida. Essa participação na vida do Senhor ressuscitado é a irrupção, no presente da nossa vida, da plenitude escatológica que nos é prometida. Só Ele é a garantia de a alcançarmos.
Este anúncio de Cristo Vivo como caminho para a vida só pode ser feito por quem já encetou esse caminho, seguindo-O como Mestre e Senhor. O próprio facto de o testemunhar, compromete-nos mais com essa opção de fazer da nossa vida um caminho com Cristo. É um testemunho que inclui, necessariamente, a experiência da Eucaristia como celebração contínua da Páscoa, momento verdadeiramente decisivo desse caminho de vida.

O anúncio através de uma opção clara de vida
19. Sempre, mas de modo mais claro no nosso tempo, o anúncio de Jesus Cristo tem de incluir uma afirmação clara de uma maneira de viver, da “vida nova” em que Ele nos introduziu. Sem isso, a opção cristã é estéril, incapaz de transformar positivamente o homem e a sociedade. Seguir Jesus Cristo toca, de forma exigente e transformadora, em todas as principais expressões da vida do homem enquanto ser espiritual e livre. São as grandes questões do coração humano, de que fala o Concílio: o sentido da vida e da morte, a relação entre a vida presente e a eternidade, a exigência da verdade e do amor, o modelo de felicidade que se procura, uma maneira de estar no mundo e o compromisso sério pela edificação de uma civilização do amor. O cristão não pode esconder que Jesus Cristo é fonte de exigência ética e deve proclamá-lo e testemunhá-lo na prática das suas escolhas e comportamentos. É preciso não esquecer que a santidade se exprime na vida, na carne e no sangue das nossas opções e dos nossos ideais, e que a separação da fé e da vida é a maior fragilidade da Igreja.
Este é, certamente, o aspecto mais exigente do anúncio cristão, pois supõe a coragem de ser diferente e, de certo modo, “lutar contra a corrente” das maneiras de ver a vida, aceites pela sociedade contemporânea. Só é possível travar esta luta com a força de Deus e a firmeza inabalável da fé.

Várias linguagens para o mesmo anúncio
20. Essa foi a experiência surpreendente do Pentecostes: na diversidade das linguagens, todos captaram a mesma mensagem. Este testemunho simples e interpelante da sua fé, os cristãos podem exprimi-lo em diversas linguagens: na simples coerência de vida com que procuram ser fiéis à verdade em todas as circunstâncias; na explicitação dialogal, pessoa a pessoa, quando as circunstâncias o tornam possível; no silêncio da sua oração confiante e, porventura sofrida; identificando-se com a linguagem da Igreja, quando celebra o mistério ou quando se assume como Mestra da fé; na busca racional da inteligibilidade ou na expressão artística da beleza; no serviço generoso dos irmãos, sobretudo dos que mais precisam.
Devemos estar atentos e aprender a escutar as linguagens, aparentemente profanas, de todos os que connosco convivem na cidade, pois também elas podem exprimir a busca da verdade e da beleza. O conjunto de todas essas linguagens constitui o fenómeno da cultura, verdadeiro quadro da expressão de todas as buscas e de todos os anseios. A Igreja em si mesma, na variedade das suas expressões, enquadra-se nesse quadro mais vasto e plural da cultura, que hoje já não se define por uma referência religiosa, o que não significa que a exclua ou a negue. A Igreja, na sua missão evangelizadora, deve valorizar esta presença do mundo da cultura, no seio da própria mutação cultural, pois esse é talvez o único contexto em que muitos contemporâneos nossos podem escutar a mensagem da Igreja e em que os próprios cristãos aprendem a escutar outras linguagens.


V – OS DESAFIOS DO CONGRESSO INTERNACIONAL PARA A NOVA EVANGELIZAÇÃO
21. O Congresso foi longamente preparado e estão criadas as condições para que aconteça com qualidade. Desde o início ele tem um objectivo claramente assumido: levar as Igrejas que estão nas cinco cidades europeias em que se realiza, a encontrarem caminhos novos de evangelização, no contexto cultural do homem europeu contemporâneo. Assumindo-se como uma proposta de diálogo com a cidade, em que a Igreja explicita a esperança que a anima e o seu modo próprio de estar na cidade, ele é, antes de mais, interpelação às comunidades cristãs para aprofundarem a sua fé, único ponto de partida válido para o dinamismo evangelizador. E esse poderá ser o seu fruto mais precioso: levar os cristãos e as comunidades a assumirem que a evangelização é simples e urgente. Se a nossa fé é um dom precioso e Jesus Cristo, o nosso tesouro, não podemos deixar de os anunciar para os partilhar.
Durante o Congresso haverá uma “missão na cidade”. Ela deve afirmar-se como um momento forte de uma atitude permanente dos cristãos na cidade: serem coerentes com a sua fé e darem testemunho dela sempre que as circunstâncias o tornem possível. Isso significa coerência consigo próprio, tolerância para aceitar a diferença, discernimento para perceber o momento e o modo de compromisso com o bem da comunidade.
A sua dimensão europeia ajudar-nos-á a perceber melhor, não só a exigência da construção de uma verdadeira comunidade em plano europeu, mas a universalidade da Igreja, onde brilha a luz da unidade da fé e da verdade. Acolheremos os nossos irmãos vindos de Viena, de Paris, de Bruxelas e de Budapeste e com eles partilharemos a unidade da mesma fé e o entusiasmo por um processo de nova evangelização para a Europa. Na sua relação com os povos da Europa, a Igreja já provou, ao longo dos séculos, que, em termos de evangelização, é possível começar sempre de novo. Em comum com estas Igrejas irmãs, aprenderemos a amar esta Europa, de que hoje se fala quase só na vertente económica e política.
Peço a todos que intensifiquem a sua oração, pois dela depende a fecundidade misteriosa desta iniciativa. A experiência dos “missionários da oração”, em curso desde o anúncio do Congresso, deve alargar-se a todos os cristãos do Patriarcado. O Congresso foi colocado sob a protecção de Santa Teresinha do Menino Jesus, Padroeira das Missões, cujas relíquias serão veneradas na nossa Catedral durante toda a semana do Congresso. Mas contamos, particularmente, com a protecção de Nossa Senhora que, na sua imagem da Capelinha das Aparições, estará connosco durante o Congresso. Confiemos-lhe, desde já, não apenas a sua realização, mas os frutos fecundos que dele poderão brotar para a Igreja de Lisboa.

22. Durante todo o Ano Pastoral que começa com o Congresso, procuraremos, nas diversas instâncias da Igreja diocesana, perceber os dinamismos inovadores para a nossa maneira de ser Igreja e de realizar a missão evangelizadora que o Senhor nos confiou. Procuraremos que toda a comunidade diocesana partilhe neste discernimento de novos caminhos da missão. Espero que todos aqueles e aquelas que vão estar mais directamente envolvidos no Congresso, tenham, desde já, essa preocupação de discernir o futuro. O Congresso não é só uma festa, é um momento duma peregrinação, dum caminho que queremos percorrer.

Lisboa, 8 de Setembro de 2005, Festa da Natividade da Virgem Santa Maria

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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