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A aventura do capelão do Miguel Bombarda
2005-06-03 00:31:19

Há doentes que não têm nada para viver. Um padre faz com que se sintam pessoas.

Augusto Cima, beneditino, capelão do Hospital Miguel Bombarda, a enorme unidade de tratamento psiquiátrico escondida no centro de Lisboa, sabe o que espera em cada dia que avança por aqueles corredores altos. A maior parte dos doentes com que se cruza são analfabetos. Não têm casa. Não têm família. Não têm emprego. Não têm quem os venha buscar. "Não têm nada", resume o padre com o seu jeito prático, franco, de minhoto. Depressões, esquizofrenias, doenças bipolares, psicoses. É por estas razões que a maior parte dos doentes por ali anda. Alguns por vários meses, outros por vários anos. E há os que vivem a vida inteira naquelas salas e enfermarias por coisas bem menos graves, como debilidades mentais, simples epilepsias. Muitas vezes pobres, quase sempre impreparados, os familiares cansam- -se, ficam fartos deles, já não os querem aturar mais. A loucura dói, tem espinhos, faz sofrer toda a gente. Produz uma névoa de solidão em que os internados andam suspensos.

O padre Augusto avança por entre eles, saúda-os. "Olá, como vais! Estás melhor!? Então a família?", pergunta com vivacidade. Aperta- -lhes a mão, dá-lhes abraços enquanto anda, troca beijos com raparigas. Alguns amanhecem joviais, outros taciturnos, como parados no tempo. Nem sempre é fácil distinguir os doentes dos clínicos. Há muita gente em chinelos, mostrando os pés nas manhãs frias de Primavera.

"Sr. Padre", aproxima-se uma jovem sempre ansiosa, sempre apressada, "o que eu queria era confissão e missa". Augusto Cima diz-lhe que sim, quando quiser. "Disseram-me em 98 que me calasse e, agora, só falo em confissão." Prende-se a ele, não o larga, sempre a falar-lhe daquele silêncio imposto. E ele suave, a dizer que logo veremos, só falando. Outros se aproximam, vários falam-lhe ao ouvido. Baixo, olhando para os lados, com discrição. Queixam-se. Queixam-se muito, uns dos outros, dos médicos, dos enfermeiros, dos amigos que fizeram naquele hospital. "Está possuído, Sr. Padre, possuído pelo Demónio", denunciam às vezes. Augusto acalma a insistência "Não digo que não. Temos de ver, de observar." Esticam-se na sua magreza, gostam de o tocar, de o palpar, de sentir a firmeza da sua mão. "Possuído pelo Demónio!", repete um. "Deixa-me observá-lo e depois logo vos direi", diz pondo água na fervura. "A doença baixa a qualidade da nossa humanidade", considera o capelão. "Torna-nos piores. Desgasta os nossos melhores valores - respeito pelo outros, generosidade, bondade - e exacerba os piores desespero, sentimento de injustiça, o egoísmo."



"É como distracção, e portanto como terapêutica, que considero a utilidade dos exercícios religiosos, executados com aquela solenidade que tão grande elevação lhes presta."

Prof. Miguel Bombarda, 1893

Miguel Bombarda, chefe civil da revolução de 5 de Outubro que implantou a República, não nutria qualquer simpatia pela religião. Pelo contrário maçon, anticlerical, fundou a Junta Liberal que, em 1906, promoveu manifestações contra a Igreja e, em particular, contra os jesuítas. Professor na Escola Médico- -Cirúrgica de Lisboa, aceitou em 1892 o lugar de director do Hospital de Rilhafoles (actual Miguel Bombarda), onde edificou uma unidade, então moderna, para tratamento de doentes mentais. Foi assassinado por um doente esquizofrénico em 1910, na véspera da revolução. "Se a religião ajuda a melhorar a vida?", interroga-se o padre Augusto. "De certeza que sim. Nas celebrações o doente encontra alguém que o escuta, que o apoia, que lhe dá importância, que lhe quebra a solidão." Carlos Lacerda, médico, também acha que a religião pode ser útil "Não tem é de ser católica!", adverte, para separar águas. "Pode ser budista, árabe, protestante… E não pode ser fechada, obscurantista. Não se pode levar as pessoas a Fátima e dizer que vão ficar curadas da sua doença mental. Isso não é sério." Carlos Lacerda chefiou durante três anos a 9.ª Enfermaria, a dos "doentes residentes" que não têm condições clínicas - nem sociais, na maior parte dos casos - para sair. "Quando lá cheguei estava tudo muito pouco evoluído, para não dizer mais… Havia poucos médicos, poucos enfermeiros, as camas estavam todas num mesmo pavilhão, como num hangar." Não havia espaço para guardar objectos pessoais, "era desumano".



Em Outubro, na Visão, António Lobo Antunes recordou esses espaços numa crónica intitulada "Hospital Miguel Bombarda". "Sempre achei, desde o primeiro dia, era eu um internozito chegado de África, que em lugar de hospital me haviam colocado num chiqueiro de merda. Mas quem se rala? São doentes e são pobres." O autor de Eu Hei-de Amar Uma Pedra fala de um hospital com um clínico geral para centenas de doentes vestidos de uniforme, vistos quando o rei fazia anos, entupidos de medicamentos, babando-se, resmungando coisas que ninguém entende. "Tenho vergonha de ter sido médico ali", escreveu. "De me ter calado tantas vezes." Esta crónica mereceu uma resposta vigorosa do enfermeiro-director, António dos Reis Nunes, defendendo o profissionalismo dos que trabalham no hospital e contra-atacando "Lembra-se, caro Dr.", escreveu o enfermeiro, "quando um doente psicótico, em fase de descompensação, lhe pediu para ser internado e o Sr. lhe disse várias vezes que só o internava se desse com a cadeira na cabeça da enfermeira de serviço?" Não houve resposta. José Matos, director do Miguel Bombarda, começou a carreira como psiquiatra há vinte anos no hospital e recorda-se bem dos tempos a que aludiu Lobo Antunes. A voz baixa-lhe quando fala do período em que "os médicos eram menos e muito menos presentes", em que "os enfermeiros mais velhos estavam habituados a ser reis e senhores desta casa". Recorda repressão, maus tratos. Maldade. Havia mesmo um médico "muito fraco" que utilizava os electrochoques como castigo, como forma de afirmar o seu poder. Foi num hospital ainda com estes fantasmas que Augusto Cima entrou em 1994. Era capelão no Hospital Curry Cabral e o vigário-geral de Lisboa, em nome do então cardeal- -patriarca D. António Ribeiro, pediu-lhe para acumular a capelania do Miguel Bombarda. O padre Mário Pedras tinha lá estado dois anos e não aguentara. Ele hesitou "Primeiro, era a sobrecarga de trabalho. E depois a loucura..." Pediu uma semana para pensar, para falar com amigos, uns padres, outros não. A opinião foi unânime. "Todos disseram que tinha qualidades para o lugar", conta. "Não pude fugir.""Ao ver a compostura com que mais de cem doentes acompanham em Rilhafoles o exercício dominical, é-se forçado a reconhecer que nas práticas mais ou menos solenes da religião está um núcleo de distracção para os alienados que vale a pena desenvolver." Prof. Miguel Bombarda

Domingo, dia de missa. Alguns doentes já circulam à porta da igreja dentro do hospital quando o padre Augusto chega. Abre as portas, acende as luzes, ilumina um enorme fresco de Abel Manta, vai-se paramentar. Entra um grupo de música são médicos, psicólogas, professores que formam um grupo de oração que se reúne na Igreja de Santa Isabel e que, tal como outros grupos, um domingo por mês alegram a missa na antiga Quinta de Rilhafoles. Augusto Cima começa a celebração com a igreja meio vazia. Entra um que está ali depois de anos na prisão por ter morto uma pessoa e, por momentos, tira os seus inseparáveis headphones. Chegam depois duas louras, doentes bipolares, que ainda dias antes estavam muito activas denunciando no jardim a brutalidade com que certos enfermeiros tratavam alguns doentes "mais chatos" e "teimosos". Uma delas está agora muito diminuída, parece quebrada pela medicação, mãos vermelhas, olhos cheios de lágrimas. Senta-se também na última fila uma mãe da vizinhança acompanhada pelas filhas, duas meninas à volta dos dez anos, lindas, atentas ao que se passa. Pouco a pouco, a igreja preenche-se com a meia centena habitual de assistentes que, como de costume, se entusiasma muito com os cânticos, sobretudo aqueles em que a harmónica se junta à guitarra. "Senhor Jesus, abri-nos as escrituras / Inflamai o nosso coração"



Augusto lê a 1.ª epístola de S. Pedro, referente à ressurreição. E depois comenta que, "na vida, encontramos gente boa, gente menos boa, e até gente má". A homilia fala dos apóstolos nos tempos que se seguiram à morte de Cristo, um trauma enorme, e da necessidade que tinham "de alguma coisa que os pusesse para cima, que mostrasse o que se estava a fazer, que falasse do futuro". O padre é interrompido por apartes que nem sempre se percebem bem. Tenta então ordenar a conversa, como numa aula; com um braço mantém a maior parte em silêncio, com o outro vai apontando para dar a palavra. "Se vos aparecesse um homem ressuscitado, o que é que faziam?", interroga Augusto Cima. "Eu fugia!", responde um, provocando o riso. "Convidava-o para tomar o pequeno-almoço", diz outro, aproveitando a euforia. Só uma rapariga se escandaliza, num assomo místico "Eu, se fosse N.º Sr. Jesus Cristo, ajoelhava-me! Nem era digna de lhe beijar o manto..." Segue-se a oração dos fiéis, em que todos dizem a sua intenção em voz alta, e entram dois doentes a correr. Um vai para a direita, outro só pára no altar, onde estende a mão ao padre, que, de livro na mão, a aperta com cara séria. No meio alguém começa a dizer umas incongruências roucas. O sacerdote levanta o sobrolho na sua direcção, mas continua "Senhor, Pai Santo..."< "São principalmente as práticas religiosas acompanhadas de música que entendo dever fomentar." Prof. Miguel Bombarda

"Há passagens do Evangelho que só se entendem em circunstâncias particulares", observa o capelão. "O que mete medo às pessoas e as afasta da participação na missa neste hospital são estes acontecimentos inusitados e improváveis", diz o padre. "E, no entanto, o que acontece aqui é muito perto e parecido com as vivências de Jesus nas suas relações com os doentes, com a multidão ruidosa e com as perplexidades dos discípulos."Voltando à missa há um cântico muito vivo, acompanhado com palmas, que entusiasma toda a gente. Cria-se uma enorme energia, é como se uma porção de vitalidade tivesse entrado em circulação dentro e fora da igreja, à porta da qual chega cada vez mais barulho. "Saudemo-nos na paz de Cristo", diz o padre - e liberta-se uma torrente: beija-se e abraça-se quem está ao lado, mas todos querem exprimir a sua amizade a alguém que está no outro lado do templo. Segue-se a comunhão e, quando vêem as meninas na fila para comungarem com eles, são invadidos pela ternura: fazem-lhes festas, beijam-nas até elas se desfazerem em vergonha com tanta manifestação de carinho. Todos cantam, seguindo as letras através de folhas previamente distribuídas. Um doente mais gorducho vem para a frente e, num jeito muito seu, põe-se a reger coro e orquestra com um sorriso de orelha a orelha. "Isto, a nível humano, ainda não está a 100%." Feito o diagnóstico, Augusto Cima sublinha o esforço que tem sido feito nos últimos anos pelas administrações para melhorar. O número de médicos cresceu, a qualidade dos enfermeiros, sobretudo os que têm funções de coordenação e chefia, tem aumentado substancialmente. Há um alargamento permanente de espaços para reabilitação social dos doentes.



Ele próprio organizou as visitas que, às quintas-feiras, passam uma hora na 9.ª Enfermaria cada visitante "adopta" um doente de que fica "padrinho" ou "madrinha". E colabora com o GIRA, que promove a saída dos doentes do hospital para residências onde vivem em pequenos grupos, mais ou menos autónomos, com apoio médico e assistencial. "A enfermaria degrada os doentes, não os melhora", diz o capelão. "É preciso tirá-los de lá e torná-los participantes na terapia." O médico Carlos Lacerda aprecia a participação do padre na construção de pequenas coisas que repõem nos doentes a condição de pessoas. "É um homem culto, que gosta de pessoas, que sabe adaptar o discurso à situação", diz.

Fonte DN

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