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O rosto feminino da Igreja
2005-05-27 00:03:26

Jesus dá a Deus o nome de Pai. Mas Deus tem outro nome que percorre toda a profecia do Antigo Testamento e encontra ecos no Novo Testamento: esposo. O povo eleito é a esposa, capaz de uma infidelidade assimilada à idolatria.

Mas o amor do esposo divino é inalterável: “Desposar-te-ei para sempre, desposar-te-ei... com amor e misericórdia. Desposar-te-ei com fidelidade e tu conhecerás o Senhor.” (Os 2,21-22). Toda a grande profecia é atravessada por este tema dos esponsais sagrados entre Deus e o seu povo: “Com efeito, o teu criador é que é o teu esposo, o seu nome é Senhor do universo. O teu redentor é o Santo de Israel, chama-se Deus de toda a terra. O Senhor chamou-te novamente como a uma mulher abandonada e angustiada. Na verdade, como se pode repudiar a esposa da juventude? É o teu Deus quem o diz. Por um curto momento Eu te abandonei, mas, com grande amor, volto a unir-me contigo. Num acesso de ira, e por um instante, escondi de ti a minha face, mas Eu tenho por ti um amor eterno” (Is 54,5-8; cf. Jr 31,3-4, Ez 16,8).

O tema dos esponsais continua no NT. Aí o esposo é aquele que Deus “enviou ao mundo” (Jo 3,17), mais precisamente o seu Filho. Em João, o primeiro dos sinais de Jesus acontece durante uma festa de núpcias: as bodas de Caná. Jesus é explícito em atribuir-se o título de esposo: “Podem os convidados estar tristes quando o esposo está com eles?” (Mt 9,15; cf. Mc 2,19-20 e Lc 5,34-35) A parábola das virgens loucas fala da chegada do esposo, o próprio Jesus (Mt 25,1-13). É também assim que João Baptista, no quarto Evangelho, fala de Jesus: “Eu não sou o Messias... O esposo é aquele a quem pertence a esposa; mas o amigo do esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do esposo” (Jo 3,28-29). Noutra parábola, de novo Jesus fala das núpcias do filho do rei: “O Reino do Céu é comparável a um rei que preparou um banquete nupcial para o seu filho” (Mt 22,2).

Paulo está na continuidade directa deste tema e vê a Igreja e os cristãos desposados com Cristo: “Sinto por vós um ciúme semelhante ao ciúme de Deus, pois vos desposei com um único esposo, Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura” (2 Co 11,2). A esposa é doravante a Igreja: “Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para a santificar, purificando-a no banho da água, pela palavra. Ele quis apresentá-la esplêndida, como Igreja sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas santa e imaculada” (Ef 5,25-27). A Igreja é a Esposa ataviada do Cordeiro, a nova Jerusalém que desce do céu, de junto de Deus (cf. Ap 19,7; 21,10), e, um pouco antes, a mulher que dá à luz, coroada de estrelas, constituindo “um grande sinal no céu” (Ap 12,1-2).

Para muitos não é estranha esta característica de o povo/Igreja ser esposa de Deus, mas falta que se tirem desta feminilidade todas as consequências. Frente a Deus, seja ele o grande Deus transcendente do Antigo Testamento, seja o Verbo incarnado, Jesus Cristo, a Igreja e, por extensão – uma vez que o género humano está ordenado ao baptismo, porta de entrada da Igreja –, toda a humanidade, é do género feminino. A união com Deus é uma união esponsal. A espiri-tualidade corrobora esta característica. Para o tempo da união, fala-se de “mística nupcial”, na qual as mulheres, no decorrer dos séculos, chegaram a alturas inexcedíveis. E o cume da vida mística é o nascimento espiritual do Verbo na alma, esse sublime fruto da união esponsal com Deus, que nos faz nascer a nós próprios em Deus. Grandes místicos falam deste nascimento. Mestre Eckhart faz dele o centro da sua doutrina espiritual, mas ele é já um tema recorrente nos Padres da Igreja, tanto orientais como ocidentais.1 O grande Angelus Silesius chega a dizer: “A obra de predilecção de Deus, que tanto lhe importa, é poder engendrar seu Filho em ti”. Não só a Virgem Maria e S. José são representados com o Menino nos braços. Entre outros santos, Sto. António tem, também ele, o Menino nos braços, fabuloso penhor da entrada no Reino. Jesus disse: “Se não voltardes a ser como as criancinhas não podereis entrar no Reino do Céu” (Mt 18,3). Mas se não se for como uma mulher, não nos poderemos instalar nele. A maternidade, logo a feminilidade, é uma chave do Reino. Toda a lógica do Reino, que é a lógica de Deus, é uma espécie de lógica do “quem ganha, perde”. Deus exige que sejamos como crianças a fim de fazer de nós suas esposas, isto é, mulheres. Jesus abole a religião dos pais (“a ninguém chamareis Pai” (Mt 23,9) substituindo à autoridade patriarcal a autoridade do único Pai: Deus. Perante esse Pai, todos somos potencialmente mães, isto é, esposas, isto é, mulheres.

Discutindo recentemente esta intuição com um teólogo com altas responsabilidades na Igreja, ele imediatamente apreendeu uma das consequências maiores desta realidade incontestável: “Ao passo que os antigos gnósticos queriam que o feminino se masculinizasse para se tornar admissível, no cristianismo todos temos, de alguma forma, que passar a ser mulher”. Assim é. Daí a subida importância de Maria na Igreja, a perfeição do humano em Deus. Maria e o seu “sim” incondicional e imaculado abre a Deus o espaço da salvação no qual acontece o divino-humano (a incarnação e, como sua extensão no aqui e agora da Igreja, também, a divinização). Maria é a humanidade redimida (a Imaculada), a Igreja na sua origem, a perfeição dada à partida e prometida a cada um de nós como ponto de chegada das grandes caminhadas espirituais. Esta ligação íntima entre o mariano e o eclesial foi reconhecida desde os Padres da Igreja, mas incessantemente volta a oferecer-se à nossa reflexão. Hans Urs von Balthasar distingue o princípio feminino da Igreja no seu todo e o princípio petrino do ministério exclusivamente masculino.2 O reconhecimento da feminilidade do humano perante Deus, no máximo do seu cumprimento enquanto humano, não me parece que de alguma forma possa fundamentar dentro da Igreja a exclusão da mulher seja de que actividade ou missão for, antes pelo contrário. Mas à reflexão que enlaça a mario-logia e a eclesiologia, haverá que juntar os dados da teologia espiritual, pois o que se passa com a Igreja no seu todo, e que se passou já em Maria, pode acontecer de novo em cada cristão, se este deixar que o Espírito abra nele esse espaço marial e esponsal no qual Deus acontece. O espaço do feminino por fim vitorioso: “O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas. Santo é o seu nome” (Lc 1,49).



Maria Armanda Saint-Maurice



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1 Cf. meu artigo “Cristificação e ‘maria-nização’: breves considerações sobre a maternidade divina”, in Praxis (2004) 65-78.

2 Cf. o artigo “A catolicidade da Igreja” no livro na minha tradução recente: J. Ratzinger /H. U. von Balthasar, Maria, primeira Igreja, Gráfica de Coimbra, 2005.

Fonte Ecclesia

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