paroquias.org
 

Notícias






Liberdade Religiosa - Uma Lei Necessária e Urgente
2001-04-26 21:07:14

"A reforma do direito das religiões em Portugal em conformidade com a Constituição é um passo fundametal na construção legislativa do Estado de direito"


Preâmbulo do Projecto de Lei da Liberdade Religiosa.

Mais de vinte e cinco anos passados sobre a aprovação da Constituição do Estado Democrático nascido com o 25 de Abril, continua a faltar um estatuto jurídico da liberdade religiosa, que a partir do princípio constitucional de liberdade de consciência de religião e de culto, consagre um conjunto de direitos individuais e colectivos das igrejas e dos seus crentes.

Os princípios da laicidade do Estado e da separação entre Estado e igrejas, conquistas irreversíveis da modernidade, não implicam o desinteresse pelo fenómeno religioso como importante facto de coesão social, e de dinamização de forças de solidariedade e espiritualidade nas sociedades modernas.

Portugal é hoje uma sociedade cada vez mais aberta à multiculturalidade e onde por força de factores como a imigração e o desenvolvimento recente de novos movimentos religiosos, as religiões minoritárias têm uma presença não desprezível em muitas áreas do nosso país.

Por isso mesmo e já de há muitos anos vêm muitas dessas igrejas formulando queixas de violação de direitos de liberdade religiosa e sobretudo de discriminação face ao quadro de direitos atribuídos quer pela Concordata, quer por variada legislação à Igreja Católica (muita dela aprovada depois do 25 de Abril...).

A reforma do direito da liberdade religiosa implica, pois, dois passos igualmente importantes - a aprovação de uma lei base de natureza constitucional, que densifique e desenvolva os princípios constitucionais na matéria e a revisão, dentro deste quadro jurídico geral, da Concordata com a Igreja Católica.

Esta última, celebrada em 1940, em condições políticas e culturais bem diversas das que hoje caracterizam quer a sociedade e o Estado Português quer a própria Igreja Católica, é um documento ultrapassado consagrando uma visão de separação, não como ele resulta da Constituição de 1976 e do Concílio Vaticano II, mas como um sistema em que uma e outra parte admitem a outra a intervir em matérias que lhe são essenciais, criando-se em muitos casos uma anacrónica confusão entre o Estado e Igreja Católica, designadamente com concentração na mesma pessoa de estatutos diversos (o capelão tenente coronel, para dar um exemplo claro).

A necessidade da sua revisão é hoje consensualmente aceite, tendo sido a própria Igreja Católica há mais de dois anos e depois disso repetidamente e declarar a sua disponibilidade para a negociação de um novo acordo, agora finalmente a iniciar-se.

Quando da apresentação do projecto de lei de liberdade religiosa no início da presente legislatura, alguns puseram em causa a correcção do caminho seguido, defendendo que a revisão da Concordata deveria preceder a aprovação da lei de forma a alcançar a harmonização dos dois instrumentos jurídicos e o cumprimento do princípio constitucional da igualdade. Esta posição, ainda hoje é defendida por pessoas de posições ideológicas tão diversas como Manuel Alegre e Antunes Varela.

Não faltou mesmo a alguns sectores o argumento "táctico" de que o início das negociações com a Santa Sé com uma lei já aprovada, deixaria as "mãos livres" à Cúria Romana para negociar e exigir um estatuto jurídico diferente e superior ao das restantes igrejas, e em contrapartida o Estado Português "de joelhos perante o Vaticano".

Sempre manifestei a minha perplexidade perante esta argumentação.

Na verdade, concebida a lei de liberdade religiosa como lei com vocação de regulamentação de todas as questões do direito das religiões, e do seu relacionamento com o Estado, é para mim claro que nas negociações com o Vaticano terá de ser este o guião e matriz da Concordata. Esta só poderá pretender consagrar regime diverso para as questões em que haja razões especiais que justifiquem esse regime especial sem ofensa do princípio da igualdade e que são, a meu ver, muito poucos (festas católicas consideradas feriados nacionais pelo Estado, casamento canónico).

Isto mesmo foi afirmado recentemente pelo Presidente da Conferência Episcopal ao declarar que o conteúdo da futura Concordata seria precisamente... o da lei da liberdade religiosa.

Aliás a lei pretende precisamente atribuir a todas as igrejas e comunidades religiosas radicadas no país um estatuto idêntico ao da Igreja Católica.

E esta não é uma posição isolada de meios próximos da Igreja. Para além de Jorge Miranda no parecer emitido a pedido da Igreja Católica sobre a lei da liberdade religiosa, o Professor Roque Cabral em comentário à mesma, defendeu mesmo a desnecessidade de uma Concordata perante o conteúdo previsível da lei e os princípios constitucionais.

A Concordata interessa à Igreja para assegurar um regime de estabilidade imune às mudanças de maioria parlamentar; mas não pode conter diferenças que ofendam o princípio da igualdade.

A única diferença que a Constituição reconhece explicitamente à Igreja Católica é a que resulta do estatuto de direito internacional público da Santa Sé que lhe permite celebrar acordos internacionais.

E "a própria participação da Igreja nas audições sobre a lei da liberdade religiosa, ao longo da sua discussão pública, quer primeiro com proposta de lei, quer depois como iniciativa parlamentar veio certamente contribuir do ambiente propício, ao entendimento para o processo de negociação". (Preâmbulo do Projecto de Lei)

A polémica reacendeu-se recentemente, a propósito da iniciativa de dois deputados do PS, António Reis e Jorge Lacão, quanto ao âmbito de aplicação da lei, designadamente do artigo 58ª do Projecto.

Nesse artigo do projecto se dispõe que ficam ressalvadas a Concordata e a legislação aplicável à Igreja Católica não lhe sendo aplicáveis as disposições relativas às restantes igrejas ou comunidades religiosas radicadas, "sem prejuízo da adopção de quaisquer disposições por acordo entre o Estado e a Igreja Católica por remissão da lei".

O projecto alternativo dos referidos deputados pretendia salvaguardar a Concordata "bem como os regimes especiais daí decorrentes na legislação aplicável à Igreja Católica", acrescentando ainda como normas não aplicáveis à Igreja Católica as relativas ao regime de benefícios fiscais e ao Estatuto das outras igrejas e aplicar desde já à Igreja Católica todas as restantes disposições da lei.

Chamada a Igreja Católica, através do seu legítimo representante - a Conferência Episcopal - a pronunciar-se sobre esta versão alternativa veio esta afirmar não aceitar que o Parlamento pudesse pretender, iniciar ele próprio a revisão da Concordata, condicionando deste modo a negociação entre Estados a realizar pelos meios e no local próprio.

A posição da Igreja e de vários comentadores no seguimento desta não faz justiça à proposta dos meus colegas de bancada.

Esta não pretende condicionar a revisão concordatária e muito menos aplicar à Igreja Católica normas anti-concordatárias.

Pelo contrário, representa tão somente um esforço para alargar o âmbito de aplicação da lei, aplicando desde já à Igreja Católica as normas que, salvaguardando o estatuto concordatário e tudo o que dele em especial decorra, e ainda algumas matérias que se encontram, pelo menos parcialmente, para além da Concordata (como o estatuto de alguns benefícios fiscais da Igreja) caminhar desde já para uma maior universalidade da lei.

Porquê então não a subscrever e aceitar?

É que ela assenta em premissa que é muito discutível e que lançaria sobre o regime jurídico da Igreja Católica dúvidas sistemáticas, a abrir para querelas inúteis, com prejuízo manifesto da estabilidade e clareza de relações entre o Estado e a Igreja Católica e do clima necessário a um processo de negociações que todos devem pretender simplificar e acelerar. E essa premissa é a de que seria possível distinguir no conjunto de legislação aplicável à Igreja Católica aquela que derivasse da Concordata e a que não tivesse essa característica.

Ora, na verdade não é fácil nem de resultado claro distinguir dentre a muita e variada legislação que cobre hoje a actividade da Igreja Católica em Portugal, entre aquela que decorre da Concordata e a que está para além dela.

Alguns exemplos penso serem suficientes para esclarecer o alcance do que deixo dito.

A Universidade católica é uma instituição concordatária criada ao abrigo do artigo XX que permite à Igreja livremente estabelecer e manter escolas? Ou está para além dele?

O estatuto fiscal dos eclesiásticos, isentos de pagamento do IRS, estará protegido pelo artigo VII ao estabelecer que estes estão isentos do pagamento de impostos pelo exercício do "munus" espiritual, mesmo quando estes estão integrados nos quadros da função pública, onde todos os restantes funcionários estão sujeitos a este imposto?

As capelanias militares e outras situações análogas que se foram criando ao longo dos anos estarão cobertas pelos artigos XVII e XVIII da Concordata, embora esta na sua letra esteja aquém do que está hoje institucionalizado e legalmente estipulado nesta matéria?

Uma leitura actualista e extensiva baseada mais no espírito do que na letra da Concordata, radicará nesta um conjunto de normas que não cabem (para muitos) na sua letra.

Uma outra leitura, constatará que, em vários casos, a legislação avulsa ou a sua interpretação extensiva, extravasa do quadro concordatário construindo sistemas e atribuindo direitos que dele verdadeiramente não constam.

Para além de a partir dos princípios constitucionais de separação e da não confessionalidade do Estado ter de se concluir que vários preceitos da Concordata são hoje inconstitucionais, a exigir que o Estado legisle no sentido da sua conformação constitucional.

E é o que tem sido feito por acção ou omissão em vários casos de manifesta inconstitucionalidade (nomeação de bispos dependente do acordo do Estado; obrigação das aulas de religião e moral católicas nas escolas públicas a não ser que os pais solicitem a isenção; característica não alternativa da cadeira de religião e moral, etc., etc.)

Imagina-se, pois facilmente, a dificuldade da tarefa e os potenciais e desnecessários conflitos interpretativos a que daria lugar tal "operação" de aplicação imediata de artigos (quais?) da Lei, ao complexo estatuto jurídico da Igreja Católica.

Certo é que o Estado não perde, perante a Concordata, o poder de legislar em matérias atinentes à Igreja Católica sempre que, não violando as obrigações concordatárias ou partindo da supremacia da Constituição da República sobre o texto do tratado possa e deva intervir para salvaguardar a legalidade e a Constituição da República.

Nem tudo o que está escrito na Concordata, mesmo nas suas mais amplas interpretações, é intocável pelo direito interno português. Não o tem sido e assim deve continuar. Por isso mesmo, na parte final do artigo 58ª do Projecto de Lei, por mim subscrito, se prevê que disposições da lei da liberdade religiosa poderão ser aplicáveis à Igreja Católica quer por acordo entre esta e o Estado (que não se resume à Concordata a rever, mas também a inclui) quer por remissão da lei (entendendo-se aqui por lei, as que eventualmente vierem a ser aprovadas, a exemplo do que já foi feito noutros casos).

Não é assim, pois, tão grande a diferença entre as duas propostas.

Elas assentam ambas no respeito pelas obrigações assumidas pelo Estado na Concordata e deixam aberto o caminho para aplicação à Igreja Católica de tudo o que não violar e que seja necessário para cumprimento dos preceito constitucionais.

Só que na proposta que subscrevo e para além da densificação dos princípios constitucionais, de imediata aplicação à Igreja Católica, por força da sua predominância sobre o conteúdo do tratado (e a aplicação desse conjunto de artigos não é completamente inócua...) também o Estado poderá legislar no sentido de aplicar à Igreja Católica artigos da lei que manifestamente estejam para além dela ou derivem de imperativos constitucionais claros.

Este processo legislativo, à semelhança de qualquer outro, deverá passar por uma audição do interessado directo, neste caso a Igreja Católica (como aliás o Projecto de Lei da Liberdade Religiosa implicou a audição - aliás mais do que uma - das religiões minoritárias mais representativas).

Não é tarefa que tenha de ser feita pela e na própria lei da liberdade religiosa. Aprovada esta, ela ficará a ser a lei básica das religiões em Portugal, dando cumprimento ao que foi o seu objectivo primeiro; conferir um estatuto digno e constitucional às confissões minoritárias. Mas indicando igualmente o caminho para afirmação do princípio constitucional da igualdade, com a necessária harmonização com o futuro direito concordatário.

Não se trata de condicionar as negociações; trata-se pelo contrário de as simplificar, seguimento aliás das opiniões vindas do próprio interior da Igreja (já atrás citadas).

A lei cobre todo o universo do que são típicas normas concordatárias e assegurará um quadro jurídico universal e igualitário para todas as religiões, exceptuadas as matérias em que pela própria dimensão da presença da Igreja Católica na sociedade e/ou pelos problemas específicos que ela levante se justifique um regime especial como aliás, será também possível para outras religiões. (O artigo 44º e seguintes da lei prevê a celebração de acordos com o Estado para matérias de interesse comum).

Valeu, pois a pena a apresentação do Projecto como é urgente a sua aprovação final. Como igualmente se impõe o rápido início do processo formal de negociação da nova Concordata (com este ou outro nome, como tem sido feito por outros países) que corresponda às exigências do Estado democrático que hoje somos e de uma Igreja "aggiornata" e moderna, de uma Igreja do Concílio Vaticano II, bem diversa da que celebrou o Tratado de 1940.

Como também valeu a pena a polémica gerada à volta do Projecto, quanto mais não seja para que "lux fiat".

*ex-ministro da Justiça, deputado do PS e autor do Projecto de Lei sobre a liberdade religiosa

Fonte Público

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia