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O Homem das Dores segundo Mel Gibson
2004-03-30 20:49:54

Jesus terá morrido a 7 de Abril do ano 30. Mel Gibson faz-nos assistir às últimas 12 horas da sua vida, com base nos Evangelhos e nas visões místicas de Catarina Emmerich. Os Evangelhos, todos o sabem, são teologia e não reportagem. Pode pôr-se em imagens o que é teológico e não propriamente histórico no sentido do que hoje entendemos por história?

Pasolini fez um filme sobre o Evangelho segundo são Mateus, e, com uma intuição poética admirável, põe-nos em frente do mistério da figura de Jesus Cristo. Mas a nota discordante deste filme é que não compreendeu a Paixão, que é minimizada. Mel Gibson enfrenta agora exclusivamente a Paixão, como se continuasse a obra encetada por Pasolini, embora demonstre, por seu lado, não ter apreendido todo o esplendor da Ressurreição, vitória indissociável do sofrimento de Cristo. Não se pode pedir tudo a um criador. Fez o seu filme indubitavelmente com rigor, embora sem conseguir transmitir a soberana santidade de Jesus nem o seu insondável mistério que, por exemplo, emergem no enigmático sudário de Turim.

No mundo violento do cinema contemporâneo, uma desabalada violência abate-se sobre a figura do Inocente por excelência. A legenda inicial anuncia o programa teológico do filme: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, carregou as nossas dores” (Is 53,4). Esse programa centra-se na antiquíssima profecia do Deutero-Isaías e nos seus 4 Cânticos do Servo, à luz dos quais, aliás, tal como dos Sl 22 e 69, os próprios escritores do NT leram a Paixão de Cristo. Pela comunicação social sabemos que são as mãos do realizador que enterram os cravos nas mãos do crucificado. Mel Gibson e todos nós, com as nossas grandes e pequenas faltas, contribuímos para esse “pecado do mundo” que cravou Cristo na cruz. O alarme levantado nos media sobre se o filme é anti-semita nada tem a ver com a mensagem deste, embora não seja de excluir que os anti-semitas o possam utilizar como utilizam outros pretextos, pois tudo serve propósitos racistas. Mas o filme não é um produto racista, tal como não é um produto político ou ideológico. É um filme religioso, que evolui como uma meditação da Via Sacra.

As figuras principais, além desse “aflitíssimo Jesus” das nossas antigas orações, são sem dúvida Maria, que é como o fio humano condutor do argumento – aquela que Mel Gibson põe a compreender que chegou a “hora” joânica de Jesus, acompanhada sempre pela Mada-lena e pelo discípulo amado –, e a figura da “serpente antiga” (cf. Ap 12,9; 20,2), que o próprio NT relê, à luz da serpente de Gn 2-3, como uma figura satânica. De acordo com Lc 4,13, o diabo, que tenta Jesus nos seus 40 dias de deserto, “ ... retirou-se de junto d’Ele, até um certo tempo”. Esse tempo é o tempo da agonia no Horto, no qual os Padres da Igreja viram o auge do sofrimento de Jesus, perlado de um suor de sangue, pois aí começa a “hora e o poder das trevas” (Lc 22,44.53). Os verdadeiros inimigos de Jesus não são os príncipes dos sacerdotes, não são Pilatos e os brutais soldados romanos, nem mesmo a populaça que prefere Barrabás a Jesus: o verdadeiro inimigo é essa “serpente antiga” que perpassa por entre a multidão ululante e que tenta demover Jesus, no Horto, de arcar com o pecado do mundo (e esta inimizade básica é perfeitamente conforme com a teologia dos Padres da Igreja); essa serpente, que nunca se aproxima de Maria, e que Jesus esmaga com o pé decididamente, ao escolher a morte para que seja feita a vontade do Pai e não a Sua – apresentando-se assim como essa descendência da mulher que Gn 3,15 anuncia. É a mesma serpente antiga que conduz Judas ao desespero definitivo, mesmo depois de haver como que uma última tentativa por parte do céu de lhe enviar duas crianças que tentam trazê-lo ao amor e ao arrependimento, e que a recusa de Judas transforma, na única cena em que se manifesta no filme a tensão escatológica das últimas horas de Jesus (e que Mel Gibson não consegue no resto do filme transmitir), em pequenos diabinhos que o empurram para o local deserto e apodrecido do seu suicídio. Que esta “serpente antiga” é o principal inimigo de Jesus di-lo o filme quando, após um longo período de obscuridade (Mt 27,45; Mc 15,33; Lc 23,44), Jesus expira e de muito alto, do mais alto do firmamento, cai uma lágrima de Deus. Quando esta lágrima cai dá-se a comoção cósmica que só Mt refere (27,51): o tremor de terra que abala o templo, o partir das pernas dos dois outros condenados, o trespassar do lado de Jesus, de onde jorra o sangue e a água, isto é, de onde nasce a ordem sacramental da Igreja, e também o grande grito da “serpente antiga” e o seu desaparecimento.

Realmente, com a morte de Jesus, “tudo está consumado” (Jo 19,30). A antiga criação e as suas maldições estão superadas, tudo é recriado em Jesus, novo Adão, que dá origem ao novo ser humano espiritual e vivificado (1 Co 15,21-22.45-49).
É Maria, aliás, quem tem a mais perfeita consciência da luta titânica que Jesus, Homem-Deus, está a travar contra a opressão humana. Não só no seu “Amen” à “hora” dolorosa de Jesus mas também ao saudar Jesus crucificado – qual nova Eva, como lhe chamou santo Irineu de Lião –, como “carne da minha carne...”, o que corresponde ao inverter da saudação que Adão faz a Eva: “Esta sim, é carne da minha carne” (Gn 2,23). E Maria continua “... coração do meu coração”, o que remete para as devoções do Coração de Jesus e do Coração Imaculado de Maria. E pede a seu Filho que a deixe morrer com ele, realizando nesse momento de máximo sofrimento o que a profecia de Simeão lhe vaticinara: “uma espada te trespassará o coração, para que se revelem os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,35). Maria, pois, medianeira daí em diante e mesmo, manchada com o sangue da cruz, co-redentora. Este filme, que tem galvanizado multidões de cristãos protestantes, não pode deixar de ter efeitos benéficos do ponto de vista ecuménico no que diz respeito à pessoa de Maria.
Tem-se também chamado a atenção para a soteriologia que preside ao filme, acusando-o de optar por uma teologia da satisfação vicária que teve curso em séculos passados e que foi formalmente rejeitada pela Comissão teológica internacional: “Não se trata de pensar que Deus castigou ou condenou Cristo em vez de nós. Essa é uma teologia erradamente avançada por vários autores, nomeadamente na teologia reformada” (Documentation Catholique 1803, 1981, 229). Não se trata também da teologia do “resgate ao diabo” que provém de uma interpretação deficiente de santo Agostinho e mesmo, antes dele, de Orígenes, nem da teologia da satisfação à ofendida honra de Deus de santo Anselmo, que punha o acento numa satisfação de algum modo judiciária. É bem claro, através desse momento essencial do filme que é a lágrima divina – sobre o fim da maravilha das maravilhas de Deus que é a Incarnação, isto é, o envio do Filho (cf. Mt 21,33-40) –, quanto Deus não é cúmplice seja de que forma for do martírio de Jesus. “Deus amou de tal forma o mundo que lhe deu o Seu Filho único” (Jo 3,16). O próprio Jesus apresenta o Seu sofrimento iminente e a consequente tristeza dos discípulos como as dores do parto com vista a um novo nascimento (Jo 16,21) e falou da necessidade de o grão de trigo morrer (Jo 12,24). Os anjos no sepulcro vazio lembram às mulheres como Jesus lhes ensinava que “havia de ser entregue às mãos dos pecadores” (Lc 24,7). A teologia que preside à obra de Mel Gibson é certamente uma teologia do sacrifício, mas essa teologia é a do próprio NT, tanto nas suas referências aos salmos já citados e aos Cânticos do Servo, como na epístola aos Hebreus e nos próprios escritos de Paulo (Rm 12,1; 1 Co 10,14-22; 11,24-25; Ef 5,2). Isto para não falarmos do paralelismo feito por João entre Jesus e o cordeiro pascal, omnipre-sente também no Cordeiro Imolado do Apocalipse. Mas este sacrifício, que em Jesus não é ritual mas existencial, não é senão uma manifestação da misericórdia divina em favor dos homens.


É uma manifestação de uma cristologia descendente, desde os Padres da Igreja, de um Deus que se dá aos homens sem medida, até ao fim (Jo 13,1) e que destrói os pesados portões da morte, para abrir a vida do Espírito sem medida aos homens, a divinização que é o seu fim último e a sua alegria definitiva.

Maria Armanda Saint-Maurice, Teóloga

Fonte Ecclesia

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