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Joaquim Franco comenta o filme de Mel Gibson
2004-03-25 21:09:10

O filme "A Paixão de Cristo" estreou nas salas de cinema nacionais. A longa metragem, protagonizada pelo actor Jim Caviezel e assinada por Mel Gibson, conta a história das 12 últimas horas de vida de Jesus Cristo. A discussão em torno do filme começou ainda durante as filmagens, quando o Vaticano exigiu uma visualização prévia à estreia. As maiores críticas partem da comunidade judaica mundial ao alegar que a história do filme tem um teor anti-semita.

Paixão de Sangue
A polémica judaico-cristã

O tema não é novo. A discussão teológica entretanto gerada também não. Mas a "Paixão de Cristo" é uma aposta pessoal de Mel Gibson, um católico integrista. E como qualquer aposta pessoal, tem uma interpretação própria, uma leitura parcial, um ângulo definido.

Tendo a narrativa sido construída a partir do Evangelho de São João, o que mais cita os judeus como "culpados" pela condenação e morte de Jesus Cristo, este filme não evita o enquadramento do anti-semitismo.

A narrativa de "A Paixão de Cristo" consagra citações integrais do Evangelho (exemplo de Cristo quando se vira para Pôncio Pilatos e diz: "...a maior culpa é de quem Me entregou a ti"), mas resvala na criativa tendência de aprofundar a "culpa" dos judeus (exemplo de uma cena, que não existe nos Evangelhos, na noite em que Cristo é detido pelos guardas do Templo, em que Maria diz: "Levaram-No para esconder o crime deles").

A teologia moderna já concluiu - e o Concílio Vaticano II deu um passo nesse sentido - que a culpa judaica definida nos Evangelhos não pode ser "lida" à luz dos nossos dias.
Os quatro Evangelhos da Bíblia devem ser interpretados no devido tempo e espaço. Sob o risco de se alterar grosseiramente a história, enviesando o passado e manipulando o presente. Mas Mel Gibson não se preocupa com a exegese bíblica. Relata um Evangelho como implacável verdade histórica - o que nenhum dos Evangelhos é - e aplica as mais modernas tecnologias da imagem e do cinema, criando um filme tecnicamente perfeito.

A violência inédita

Há uma óbvia lógica comercial, própria do meio - o cinema -que determina a linguagem adoptada. Mais que o debate teológico, o que marca este filme é a violência na recriação da Paixão de Cristo.

Nunca as últimas horas de Cristo foram tão "cruéis". Os actores falam em latim e aramaico, a língua de Jesus, e a opção técnica do realizador é de uma eficácia tão atroz e inquietante quanto as imagens. Os pormenores da flagelação, da Via Sacra e da crucifixão são de um realismo perturbador, no limite do sadismo. Ajudado pelo próprio rosto, que corresponde ao imaginário ocidental do personagem histórico e religioso, Jim Caviezel tem um desempenho poderoso no papel de Jesus Cristo.

A mesma indústria que faz a "reconstrução" dos maiores sofrimentos com a facilidade das novas tecnologias, reencontra uma figura que a humanidade sempre relacionou com os limites do sofrimento, mas que nunca "viu" sofrer como agora.

Conhecem-se os estigmas religiosos, as sensibilidades do realizador, mas embora centralize todo o sofrimento numa única pessoa, numa só fé e cultura, o filme de Mel Gibson é uma exaltação do sacrifício, e acaba por ultrapassar os ícones conhecidos da Paixão de Cristo.

Nesta lógica, pouco importa se faz ou não um relato com solidez teológica. O espectador é confrontado com o lado mais negro do ser humano... a diplomacia da conveniência, a legitimação dos poderes a qualquer custo, o desejo mórbido de sangue, a tortura.

Mel Gibson "ressuscita" o maior entre todos os dilemas da Fé Cristã ou, porque não dize-lo, da humanidade... A vida mais sofrida, tem uma dignidade maior.

A escola da moderna comunicação explica que só se dá importância a um "acontecimento" quando este quebra as amarras da banalidade quotidiana. Ora, a morte elevada ao extremo sofrimento em vida gera sempre uma grande
inquietação. Seja Cristo, seja um qualquer outro inocente ou um qualquer outro povo, que encontrou a "cruz" às mãos de um qualquer poder sem escrúpulos, perante o marasmo da indiferença humana.

É esta a grande virtude d "A Paixão de Cristo", segundo Mel Gibson. Neste filme, sangue a mais significa... Indiferença a menos.

Joaquim Franco
Jornalista
SIC Online


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