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Natal, o Triunfo da Linguagem Simbólica Sobre a Técnica
2003-12-24 08:34:12

O que pode ter a ver o Menino Jesus que Fernando Pessoa viu "descer à terra" (no poema VIII do "Guardador de Rebanhos" de Alberto Caeiro) com um resplendor do século XVIII, representando o Sol como atributo de Deus? E o Natal cristão tem ainda relação com as compras, a azáfama e os presentes?

Diz a tradição que o dia de Natal foi fixado na data em que os romanos festejavam o Sol pelo Solstício de Inverno, para afirmar o novo Sol, Jesus, que vinha iluminar toda a humanidade. A peça de prata setecentista pretende celebrar essa afirmação, numa reminiscência dos cultos solares pagãos. Hoje, o modo de viver o Natal parece ter substituído Jesus Cristo por novos astros.

A força do Natal ultrapassa, no entanto, a realidade do "stress" pré-natalício: "O Natal acaba por ser a única ocasião em que, colectivamente, a linguagem simbólica triunfa sobre a linguagem técnica e do quotidiano", diz ao PÚBLICO o padre e poeta José Tolentino Mendonça.

O movimento vivido nos primeiros séculos do cristianismo pretendeu "baptizar" todos os acontecimentos mais importantes. "Os cristãos foram buscar o que era pertinente para a cultura do tempo, para apresentar a sua proposta", afirma Tolentino Mendonça. Essa foi a sua força: "Os símbolos não se inventam, é preciso ir buscá-los ao fundo da alma dos homens."

Por isso, pode olhar-se um resplendor do século XVIII como os que se encontram na exposição "As Formas do Espírito", patente na Galeria D. Luís, do Palácio da Ajuda (Lisboa), até Abril (ver PÚBLICO de 19-12-2003). Em forma de sol ou de meia-lua, eles são uma "clara herança do paganismo", nota José António Falcão, comissário da mostra e director do Departamento de Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, entidade que promove a exposição.

Deus como luz. A ideia é traduzida com muita eficácia através dos resplendores, pequenas coroas de prata destinadas na maior parte dos casos a ser colocadas na cabeça das imagens dos santos.

Não foi, no entanto, apenas o Sol a ser cristianizado. Muitas das representações de São José, objecto de uma "devoção intensa" no Alentejo, como diz ao PÚBLICO José António Falcão, remetem para a "herança de todos os cultos patriarcais" anteriores ao cristianismo e que afirmavam o homem como esteio da família. Uma dessas imagens, iconograficamente significativa, mostra um São José jovem e pleno de vigor, todo ao contrário da imagem tradicional que dele se construiu, como um velho piedoso e quase simplório.

Esta sacralização do paganismo feita pelo cristianismo nascente parece estar hoje a viver o seu reverso, com o símbolo a ser quase "mais universal que o próprio conteúdo", diz Tolentino Mendonça.

Esse movimento é traduzido pelo poema citado de "O Guardador de Rebanhos": "Vi Jesus Cristo descer à terra./ (...) Tinha fugido do céu./ Era nosso demais para fingir/ De segunda pessoa da Trindade./ Depois fugiu para o Sol/ E desceu pelo primeiro raio que apanhou./ Hoje vive na minha aldeia comigo."

Em "A Festa da Descrucificação" (publicado em "O Armistício", 1985), Natália Correia pede um "deus mais brando, mais simples e mais jovem": "Entre os mais deuses, singelo e comovido,/ Tua amável doçura jubilosa/ Folgará num crepitar macio/ Do deus mais brando, mais simples e mais jovem./ (...) Voltai aos lares, calmos e ressurgidos/ Na festa da descrucificação."

O Natal, comenta Tolentino Mendonça, "é o único momento do ano em que todos nos identificamos com uma linguagem simbólica", cuja força é confirmada pela "absorção do religioso pelo cultural". O que se passa na Coreia do Sul serve de exemplo: país maioritariamente budista, onde os cristãos são apenas 20 por cento da população, o Natal é celebrado, sem que haja qualquer fundamento cristão. "Começou por haver uma assimilação do Natal que foi, agora, autonomizado", diz o poeta.

Olhando para o fenómeno que se vive à volta do natal, Tolentino Mendonça diz que não é catastrofista: "Não considero que um Natal puro esteja irremediavelmente perdido. A movimentação é uma conversa em aberto, a possibilidade de uma palavra, de um nascimento. Nestes dias, há palavras que atravessam a língua e que são raras no resto dos dias."

Nas suas últimas duas crónicas no PÚBLICO, frei Bento Domingues também recusou qualquer tentação de "recristianizar" o Natal: "Não desejo que aconteça com o Natal o que sucedeu (...) com a chamada 'cristianização' das festas populares (...). Ao roubarem-lhes os folguedos, as danças, (...) atingiram as próprias dimensões antropológicas das expressões católicas da fé."

Referindo-se aos relatos bíblicos do nascimento de Jesus, Tolentino Mendonça diz que aquele acontecimento "nasce na periferia, representa a irrupção do divino na história, mas passa despercebido". Hoje, "o verdadeiro Natal põe-nos à escuta da palavra que ainda não foi dita".

Fonte Ecclesia

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