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«Corpo Humano e Corpo de Deus»
2003-12-04 20:29:06

Discurso proferido por D. José da Cruz Policarpo, na cerimónia de encerramento do congresso “linguagem corporal do amor” do passado fim de semana em Lisboa, na Universidade Católica.

1. Agradeço-vos terem-me dado a honra de pronunciar a última palavra neste Congresso centrado na “linguagem corporal do amor”. Faço-o, não à guisa de conclusões de um trabalho em que não pude participar, mas antes lançando uma última interpelação, que só pode ir na direcção de alargar o horizonte do mistério do amor, não o reduzindo à sexualidade e, ainda menos, à genitalidade, antes integrando estas na visão alargada e universalizante da realidade do amor como vivência da liberdade e busca da plenitude a que chamamos felicidade. Falar de linguagem corporal do amor, significa falar de amor humano, do homem e do seu mistério, enquanto síntese entre o espírito e a matéria, entre Deus e o cosmos, criação de Deus, espírito encarnado, que exprime a vida espiritual na corporeidade. Todo o amor humano é corpóreo, e nenhuma expressão humana que se reduza ao corpo merece o nome de amor. Falar de expressão corporal do amor é falar do mistério do homem e da dignidade do seu corpo.
Na antropologia bíblica a primeira afirmação da dignidade do corpo é a vida. E ser vivo é a primeira expressão da semelhança do homem com Deus. No seu mistério cruzam-se a materialidade do cosmos e a espiritualidade divina: “Então Deus modelou o homem com o barro da terra, insuflou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivo” (Gen. 2,7). É no corpo que se exprimiu a vida e na sua corporeidade o homem tornou-se imagem de Deus. É isso que distingue o corpo do cadáver: o corpo é a matéria organizada para exprimir a vida, que é espiritual; o cadáver é a matéria incapaz de exprimir a vida. Esse é o drama espiritual do moribundo de Isaías 38, em que surge, com o seu carácter dramático, a busca de um sentido para a própria morte, em que o corpo deixa de exprimir a vida, para se tornar cadáver: “em meio da vida, vou descer às portas da morte… não mais verei o Senhor na terra dos vivos” (v. 10). “Nem a morada dos mortos vos louvará, nem a morte vos dará glória; para quem desce ao túmulo, acaba a esperança na vossa fidelidade; … só os vivos podem louvar-vos, como eu vos louvo hoje” (vv. 18-19).
Para o homem, a vida é o corpo vivo; participação espiritual na própria vida divina, a vida humana vai-se afirmando e definindo como relação e capacidade de amor. Porque só o corpo exprime a vida, só o corpo pode exprimir o amor. Procurar a dignidade do corpo, significa mergulhar na profundidade do amor como participação da vida divina, pois Deus é amor. E isto levanta algumas questões fundamentais, de cujas respostas depende o sentido último da existência humana: o homem que não ama estará vivo? O homem que morreu fisicamente deixará de poder amar, como o texto de Isaías sugere? Se ama, com que corpo, antes da ressurreição final? Como poderá o homem, cuja expressão de amor é corpórea, entrar numa comunhão de amor com Deus, que não tem corpo? Ou teremos de falar da corporeidade de Deus, a cuja imagem o homem foi criado?

O Corpo de Deus
2. Só em Jesus Cristo a corporeidade de Deus se torna clara e acessível. “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós e nós vimos a Sua glória” (Jo. 1,14). A corporeidade de Deus, em Jesus Cristo, é decisiva para que o homem atinja a plenitude da comunhão de amor, porque a sua união ao Corpo de Deus, em Jesus Cristo, eleva e transforma a sua própria corporeidade. A encarnação de Deus, em Jesus Cristo, que ao acontecer no tempo, constitui a plenitude do tempo humano, está suposta e subjacente em toda a revelação do amor de Deus pelos homens. O próprio Antigo Testamento é incompreensível sem o mistério da corporeidade de Deus.
A História da Salvação é a revelação do desígnio insondável de amor de Deus pelos homens, que se manifestou e radicalizou em Jesus Cristo. Mas a realidade de Jesus Cristo ilumina todo esse desígnio eterno, em acção desde a criação do mundo. São Paulo chama-lhe um “mistério escondido, desde sempre, em Deus, o criador de todas as coisas” (Ef. 5,9) e não hesita em situar Jesus Cristo, Verbo divino feito Homem, como agindo no início da criação (cf. Col. 1,15). A possibilidade de Deus amar, corporalmente, em Jesus Cristo, está subjacente a toda a História da Salvação.
É o sentido profundo da simbologia do “Deus esposo”. Nos profetas, a imagem mais expressiva do amor de Deus pelo seu povo, é o amor esponsal. É por isso que a Páscoa de Jesus, já na plenitude da capacidade expressiva da corporeidade de Deus, no Corpo de Jesus cristo, é apresentada como a plena realização dessa aliança nupcial entre Deus e o Seu Povo, porque aí o dom do próprio Corpo, na Eucaristia e na Cruz, é a expressão definitiva do amor salvífico de Deus.
A encarnação de Deus em Jesus Cristo é a única forma de corporeidade de Deus admitida no Antigo Testamento. É totalmente proibido fazer figurações humanas de Deus, porque a única figura humana de Deus será o Seu Verbo encarnado. Os “ídolos” são rejeitados, não por serem representações de Deus, mas por não serem vivos. “Têm boca e não falam, têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem” (Ps.113). Só Cristo será o Vivo. “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a luz dos homens” (Jo. 1,4). A Sua ressurreição constituirá a manifestação plena da vida divina num corpo humano. Nela readquire sentido toda a corporeidade humana.

O Corpo como sacramento do amor
3. Em Cristo o corpo humano atinge a plenitude do seu significado: ele exprime o dom total da pessoa. E essa plenitude de sentido acontece na Páscoa de Jesus. Nela, o nosso corpo atinge, também, a sua plenitude de sentido. A Páscoa consiste nisso: a plenitude do dom de amor do próprio Cristo, a Deus Pai e aos homens seus irmãos. E isso exprime-se no dom total e radical do Seu próprio corpo, expressão da sua vida. Cristo tinha de morrer; tinham de Lhe tirar a vida para se tornar claro que Ele a oferecia. E no seu drama, Ele exorcizou o drama humano da morte. Esta pode ser o dom total do próprio corpo, como semente de uma vida definitiva. Em Cristo, a morte e a ressurreição constituem uma unidade inseparável. O Seu corpo de ressuscitado, primícias da nova humanidade, é o princípio da redenção do nosso próprio corpo, tornando-o definitivamente capaz do amor.
A Eucaristia, sacramento da morte e da ressurreição de Jesus, é a expressão perene deste dom contínuo que Cristo faz do Seu corpo, por amor e para o amor. E porque unidos a Ele, fazendo com Ele um só corpo, podemos oferecer, por amor, os nossos próprios corpos a Deus e aos irmãos. “Isto é o Meu Corpo, que vai ser entregue por vós” (Lc. 22,19). Ou no relato de Paulo: “Isto é o Meu Corpo, que é para vós” (1Cor. 11,24). A experiência eucarística permite aos homens consciencializar que os seus corpos se unem ao Corpo de Cristo ressuscitado fazendo um só corpo: “O Pão que comemos não é uma comunhão no Corpo de Cristo? Porque há um só pão, nós formamos um só corpo” (1Cor. 10,16). A Eucaristia reúne todos os cristãos num só corpo, que é o Corpo de Cristo, tal como o matrimónio une o homem e a mulher num só corpo: “é por isso que o homem deixa o seu pai e a sua mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois um só corpo”. No sacramento do matrimónio, esta união dos esposos num só corpo é feita no Corpo de Cristo ressuscitado.
À oferta do Senhor que nos diz: isto é o Meu Corpo que é para vós, toda a Igreja e cada cristão devem responder: eis o nosso corpo que é para Ti. Isto di-lo a Igreja em cada Eucaristia; dizem-no os esposos em cada expressão da sua união de amor; di-lo cada cristão em tantos momentos da sua vida. São Paulo lembra aos cristãos de Corinto, que mesmo na sua expressão sexual, “o corpo é para o Senhor e o Senhor é para o corpo” (1Cor. 6,13). O amor conjugal e a expressão sexual do amor são, apenas, mais uma expressão da caridade; e esta reúne todas as expressões de dom da nossa vida, ao Senhor e aos irmãos. Dom do Espírito, ela exprime-se no corpo, ele próprio transformado pela semente da ressurreição. Entre o amor conjugal e a Eucaristia há um traço comum misterioso: ambos se tornam possíveis pelo dom que Cristo nos faz do seu próprio corpo, convidando-nos a fazermos dom do nosso: eis Senhor, o meu corpo, que é para vós.

As múltiplas expressões corporais da caridade
4. Não reduzamos à expressão sexual a capacidade do nosso corpo exprimir a caridade. São incontáveis os momentos e as circunstâncias em que o nosso corpo se torna sacramento do amor e expressão da caridade. Lembremos apenas algumas delas, pela universalidade de que se revestem na experiência humana:

* A ternura: é a expressão do amor que mais valoriza a contemplação e a solicitude pelo outro. Trata-se de olhar o outro, de o tocar para o sentir, perceber e acolher. Só num amor terno se penetra o insondável mistério do outro. Sem ternura, o outro continuará a ser, para mim, um desconhecido. Toda a revelação, enquanto abertura ao outro do mais profundo do ser, é expressão de ternura e só é possível na ternura. Só esta constrói intimidade. É mais universal do que a conjugalidade, pois eu posso amar com ternura todas as pessoas com quem me cruzo. É na ternura que o amor toca a beleza.
É por isso que ela exprime a solicitude atenciosa pelo outro. Na Sagrada Escritura esta é uma das descrições possíveis do amor de Deus, sobretudo quando Ele se compara ao pastor, na sua solicitude pelas ovelhas. A ternura é simples nas suas expressões, intensa na intimidade que gera, gratuita e generosa nas intenções, é experiência de encantamento pela beleza do outro.

* A oração e o louvor: manifestações dos sentimentos mais íntimos da minha relação com Deus, elas têm uma expressão corpórea, em que cada gesto ou atitude exprimem um sentimento. Se me calo, procuro o recolhimento; se canto ou danço, manifesto a minha alegria; se toco ou me deixo embalar pela música, desejo a harmonia; se me prostro, manifesto a total submissão ao meu Deus; se elevo os braços, é porque brota do meu coração uma súplica; se ponho as mãos, exprimo a humildade de quem pede com confiança; se choro, declaro a minha dor; se sorrio com todo o ser, é sinal de que a alegria me inundou o coração. Como poderíamos exprimir tudo isto sem corpo? Mas poderia o nosso corpo ter expressões tão belas, sem a intensidade do espírito?

* O sofrimento e a dor. Se há algo que se sente no corpo é a dor. Mas só a densidade espiritual transforma a dor humana em sofrimento. Oh! como é possível amar, sofrendo, se a dor é oferecida por amor. A dor sente-se no corpo e proporciona-nos a circunstância de o oferecer a Deus, dizendo ao Senhor: este é o meu corpo, que é para Vós. É insondável a força transformadora do sofrimento oferecido e amado. Talvez ele seja a alavanca silenciosa que sustenta o mundo.

* A morte oferecida e vivida. A morte é, também, uma expressão corporal de amor, de confiança, de abandono. É por isso que, na tradição cristã, ela é a porta que nos introduz na vida e na harmonia definitivas. Também aí eu digo ao Senhor, em união com Cristo: eis o meu corpo, toma-o para Ti. Esta dimensão ganha um relevo sublime, no martírio como vida oferecida. Cito-vos, a este propósito, o testemunho de um Mártir Judeu, Aquiba, no ano 135 depois de Cristo. Antes de ser morto exclama: “Amei-O com todo o meu coração, com toda a minha fortuna; mas não tinha tido ainda a ocasião de O amar com toda a minha alma. Chegou esse momento”. Toda a morte cristã se pode revestir da grandeza do martírio, se morrermos em Cristo.

Poderíamos referir, ainda, todas as lutas movidas pelo amor: pela paz e pela justiça, pela honestidade e pela verdade, pela defesa dos oprimidos e alívio dos que sofrem. Só com o dom do próprio corpo se edificará um mundo novo. Quem quiser salvar a sua vida, acabará por perdê-la, quem aceitar perdê-la, salvá-la-á. O dom do corpo significa o dom da vida e a radicalidade do dom será sempre a expressão da plenitude do amor.

5. A união conjugal é, apenas, uma expressão desta aprendizagem da caridade, tornada possível pela ressurreição de Cristo. É uma expressão de amor que assume e resume todas as possíveis expressões corpóreas do amor. Tornada possível pela graça pascal (sacramento do matrimónio), os esposos aprendem com o Senhor a dizer um ao outro: eis o meu corpo, é para ti, para podermos ser um só corpo, que é para o Senhor. Conduzida pela ternura, força criadora de toda a intimidade, ela pode incluir o sofrimento e a dor, a oração e a contemplação, e desabrochar em dinamismo de amor fraterno e de construção de um mundo novo. A própria experiência de êxtase que ela proporciona é o anúncio de uma plenitude de amor, que agora é apenas prometida e desejada.
Neste mistério do amor não podemos ficar prisioneiros das análises culturais: saber quantos noivos guardam a virgindade para o seu esposo, quantos esposos são infiéis, em que idade os jovens iniciam a sua vida sexual, num objectivo escondido de mostrar que o ideal cristão falhou. Todas essas realidades são sintomas de uma sociedade que procura a vida, mas ainda não descobriu o caminho que leva a ela. É que o nosso corpo, se exprime o amor, pode também exprimir, dolorosamente, o fracasso e a desilusão. Oxalá ele possa ser, ao menos, a linguagem de um desejo e de um ideal.

Universidade Católica Portuguesa
Lisboa, 29 de Novembro de 2003

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca


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