paroquias.org
 

Notícias






«O “futuro” de Deus»
2003-10-14 21:24:47

Conferência no Congresso
“O Presente do Homem – O Futuro de Deus,
O lugar dos Santuários na relação com o Sagrado”
Santuário de Fátima, 11 de Outubro de 2003


1. O tema que me foi proposto é, pelo menos, provocante. À partida poderíamos reduzir o seu tratamento à simples afirmação de que Deus não tem futuro. Devido à Sua plenitude, Deus é o único ser que não tem a Sua felicidade pendente de um futuro, que encerra sempre um desejo, que é projecto, um “ainda não” que se espera seja um dia realidade plena e plenificante. Trata-se de saber se o conceito de futuro é conciliável com o de eternidade enquanto perfeição absoluta.
Afirmar que “Deus não tem futuro”, não significa adoptar correntes filosóficas ou teológicas chamadas da “morte de Deus”. Em Teologia esta corrente significou, apenas, uma visão radical da “quenose” de Deus em Jesus Cristo: “Deus morreu em Jesus Cristo”. Esta corrente não percebeu a morte de Cristo como plenitude do amor vivida por um homem e a ressurreição como plenitude da vida, onde a plenitude da vida divina se torna experiência humana, porque a vida do homem encontrou-se com a plenitude de Deus.
Já as teorias da “morte de Deus” nas filosofias positivistas são a negação da transcendência de Deus e a redução da existência de Deus a uma criação da subjectividade humana. Deus só existe porque o homem, na sua busca de absoluto, precisou de o “criar”. Um dia, alguém que discutia comigo sobre a existência de Deus, lançou-me este desafio: o que é que resta de Deus no dia em que, por hipótese, nenhum homem acredite n’Ele? E eu respondi: esse dia seria o mais triste da história da humanidade, talvez o seu fim, porque teria perdido a notícia do seu sentido radical e da sua ligação à fonte da vida. Percebi, nesse dia, que nenhuma imanência, sem abertura à transcendência, pode ser caminho para encontrarmos resposta às nossas interrogações sobre Deus. Que o futuro de Deus se joga no futuro do homem e que para este não há futuro sem Deus.

2. A ideia de “futuro” conduz-nos à noção teológica de tempo. O tempo humano é incompreensível sem a história, concebida como aventura da humanidade em busca da sua realização. E o tempo é, apenas, a consciência que mede este drama, nos seus avanços e retrocessos, nas suas conquistas e nos seus recuos, no desvendar de caminhos para a realização da felicidade humana. A consciência do sentido deste drama é perfeita em Deus – por isso Ele se revela, indicando os caminhos da salvação – é imperfeita e progressiva no homem. O “tempo humano” recebe luz do “tempo divino”: é por isso que é possível e importante uma leitura profética da história.
O “tempo humano” é marcado por uma dupla experiência: a duração e a densidade. A duração refere-se à relação que há entre um princípio e um fim, que se aplica, quer à criação – dimensão cósmica da duração – quer à história humana e à vida de cada pessoa. Define-a a orientação da vida para um fim ainda não atingido, supõe projecto e desejo, é o lugar da esperança. A ela está inevitavelmente ligado o devir do homem e da história.
A densidade tem a ver com a intensidade do presente vivido; é como se a duração se relativizasse e só contasse o presente, que se anuncia como definitivo; é como se a vida valesse por esse momento que passa. Podemos sentir esta densidade do tempo em experiências como o amor, o sofrimento, a oração. Estas experiências de densidade dão sentido à duração humana, anunciando a relação do tempo com a eternidade.
Ao longo dos séculos a cultura levou o homem a medir o tempo sobretudo pela duração, com o risco de o identificar com ela. A densidade é dificilmente mensurável mesmo por aquele que a vive, sobretudo não se lhe aplica a medida da duração. Sem excluir o devir, ela é mais da ordem do perene e do definitivo. É nesse sentido que Cristo diz que n’Ele o tempo atingiu o fim, isto é, tocou a plenitude (cf. Mc. 1,15).
O tempo, concebido como medida da duração, proporciona-nos uma visão simples de futuro: é o que ainda não aconteceu, o que está para vir. Esta ideia de futuro não se pode aplicar a Deus, pois ela é própria dos seres em devir. O tempo visto como densidade da experiência humana, sugere-nos uma outra perspectiva de futuro: é o anseio da plenitude de algo que já se está a viver intensamente no presente. É o sentido da oração do salmista: como o veado anseia pelas águas, assim minha alma anseia por vós Senhor (cf. Sl. 42-43). Este futuro existe, porque no homem toda a densidade do presente é apenas o anúncio de uma plenitude que se espera. O futuro assim concebido é indesligável da esperança. Mesmo na redenção, em Cristo, o Espírito Santo que nos é dado, proporciona-nos apenas viver as primícias do Reino (cf. Rom. 8,23). Esta visão do futuro repugna menos à plenitude de Deus, não porque Ele dependa de um futuro para experimentar a plenitude, mas porque no Seu desígnio insondável de criação ligou a sua glória à participação, pelo homem, da Sua plenitude de vida. É o desígnio de Deus acerca do homem que abre para Deus um futuro que é, afinal, o futuro do homem.

O Homem é o “futuro” de Deus
3. A criação encerra um grande mistério. Porque é que Deus criou? Não precisava de o fazer; não procurou um acréscimo de plenitude e de glória. Deus, comunidade de Pessoas, que encontram na perfeição da relação de amor a plenitude do Ser, decidiu alargar essa comunhão de amor a outras pessoas que criou à Sua imagem, isto é, seres que só encontrarão a sua plenitude na perfeição da relação de amor e que exprimirão, nessa plenitude de amor, a própria glória de Deus. A criação do homem é, na sua génese, o desejo de Deus participar a outros a Sua vida divina. A ela preside um desígnio eterno: elevar o homem à plenitude da comunhão divina.
Não há amor sem liberdade; aliás esta encontra a sua verdade profunda na abertura ao amor. Criando o homem para o amor, Deus criou-o livre, para que o amor a que aspira fosse uma experiência activa e não apenas passiva. Mas ao criar o homem livre, Deus sujeitou o caminhar da criação para a sua plenitude ao devir da história, fruto da dimensão imponderável da liberdade. No momento em que criou o homem Deus aceitou ter um “futuro”, o futuro do homem, essa longa caminhada da história humana para a plenitude de todas as coisas em Cristo. O Apóstolo São Paulo define bem esta plenitude da criação e da história em Jesus Cristo. “E quando todas as coisas Lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo, em todos” (1Cor. 15,28). Nesse momento o futuro desaparecerá na plenitude de um presente perene e eterno.
Mas se o homem encarna o futuro de Deus, torna-se claro que o futuro do próprio homem, da sua vida em plenitude, está em Deus. Só Deus é o futuro do homem, pois só n’Ele reside a fonte da vida. Este facto é a justificação da encarnação do Verbo eterno de Deus num homem, Jesus de Nazaré.
Que só em Deus o homem tem futuro, isto é, encontra a sua verdade e poderá atingir a plenitude da vida é uma dimensão continuamente presente na espiritualidade bíblica e cristã. Lembremos, a título de exemplo, um Hino do Ofício de Leituras:

“Atei os meus braços com a tua Lei, Senhor,
E nunca os meus braços chegaram tão alto!
Ceguei os meus olhos com a Tua Luz, Senhor.
E nunca os meus olhos viram tão longe!
Só desde que Te dei a minha alma, Senhor,
Ela é verdadeiramente minha”.

A busca da realização positiva deste futuro do homem, em Deus, o único verdadeiro futuro do homem, acompanha toda a longa história da humanidade e torna-se explícita na história bíblica da salvação. O poder criador de Deus torna-se poder de salvação, o desígnio de Deus na criação, torna-se desígnio de salvação. E como São Paulo mostra claramente na Carta aos Colossenses, de ambos estes desígnios, Cristo é a plenitude (cf. Col. 1,15-20). Durante essa longa história, em que se manifesta o desejo de aliança de Deus com a humanidade, Cristo torna-se o futuro de Deus e por isso se vem a manifestar como plena realização do futuro do homem. “O tempo chegou ao fim!...”.

Cristo é o futuro de Deus
4. Desde que o homem pecou, isto é, que usou a sua liberdade afastando-se da sua vocação primeira de ser chamado a participar na comunhão de amor de Deus, o amor criador de Deus tornou-se amor redentor. Deus não desistiu do objectivo que o levou a criar o homem; o pecado não pôs em questão o Seu desígnio de amor. A partir desse momento Deus tem um futuro na Sua acção redentora e esse futuro chama-se Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, o homem verdadeiro que realizará plenamente o desígnio amoroso de Deus para a humanidade.
Toda a Sagrada Escritura nos narra a gesta de Deus, agindo na História, Ele que não desiste de chamar os homem à intimidade com Ele, estabelecendo com eles uma aliança de amor. Quando escolhe um Povo que há-de depois atrair todos os outros povos, quando, dentro do Povo, selecciona um “resto fiel”, a figura do “justo”, o homem completamente fiel ao chamamento do Senhor aparece no horizonte. Logo na narração das origens, aparece claro que esse “justo” é o futuro de Deus e do homem; só Ele vencerá a raiz do pecado: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça” (Gen. 3,15). Ou nos momentos dramáticos da história de Israel, quando a infidelidade dos que conduzem o Povo já não lhes permite reconhecer que só Deus o conduz, é o seu salvador. “Pois sabei que o próprio Senhor vos dará um sinal: a Virgem concebeu e dará à luz um Filho e chamá-lo-á Emanuel” (Is. 7,14). A realização desta Palavra, é a mensagem que o Anjo Gabriel leva, em nome de Deus, a uma virgem de Nazaré, noiva de um homem justo, chamado José: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que vais ficar grávida, terás um filho e dar-lhe-ás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado filho do Altíssimo” (Lc. 1, 26-27, 31-32).
Cristo é o futuro de Deus pois só Ele recuperará os direitos de Deus no seio da humanidade que criou; só Ele reconduzirá a humanidade à sua vocação primeira e à sua dignidade de íntimos de Deus. Da sua plenitude todos nós recebemos. O futuro da realização do desígnio de Deus não é um futuro completamente pendente; é um futuro já realizado em Cristo e a realizar na humanidade, a partir de Cristo, até ao fim. O projecto de Deus acerca da criação já triunfou em Jesus Cristo e há-de triunfar, completamente em Jesus Cristo. Ele é a garantia de que o futuro da humanidade será positivo, apesar do sofrimento e do pecado. A criação inteira acabará por ser a manifestação da glória de Deus (cf. Rom. 8, 18-21). O triunfo de Jesus Cristo será a manifestação do triunfo de Deus, no Seu desígnio de criação e de redenção. É o que proclama o Apocalipse, num Hino que rezamos na “Liturgia das Horas”:

“Sois digno, Senhor nosso Deus, de receber a honra, a glória e o poder, porque fizestes todas as coisas e pela Vossa vontade existiram e foram criadas.
Sois digno de receber o livro e abrir as suas páginas seladas, porque fostes imolado e resgatastes para Deus, com o Vosso Sangue, Homens de toda a tribo, língua, povo e nação, e fizeste de nós, para Deus, um reino de sacerdotes, que reinarão sobre a terra.
É digno o Cordeiro que foi imolado de receber o poder e a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor” (Apc. 4,11; 5,9, 10,12).

A Igreja e o futuro de Deus
5. Quando contemplamos a humanidade contemporânea, na multiplicidade das suas religiões, no fenómeno do relativismo e da descrença, no materialismo dos valores e dos critérios, na fragilidade de tantos cristãos, que não são sinal do triunfo de Deus, em Jesus Cristo, apetece-nos perguntar se o projecto de Deus tem futuro. Esquecemo-nos que ele tem futuro, porque depende de Deus, da acção do Espírito Santo no homem e na história.
Perante estes tempos, “que são os últimos”, temos mais notícia da densidade, vivida na Páscoa de Jesus, do que da duração deste projecto de salvação. O facto de o “tempo humano” ter atingido a plenitude em Jesus Cristo, nada nos diz da duração do tempo da salvação. O Concílio Vaticano II recorda-no-lo: “Ignoramos o tempo da nova terra e da nova humanidade, e também não sabemos o modo como se transformará o Universo” (G.S. n. 39). O triunfo definitivo da plenitude de Cristo, conduzindo definitivamente a humanidade à verdade da criação, não sabemos quando acontecerá e quanto tempo durará. Sabemos apenas que o grande obreiro desse futuro novo, o Espírito Santo, está em acção no seio da humanidade, através da Igreja sacramento de Jesus ressuscitado. O futuro do plano de Deus passa pela Igreja. Daí a sua beleza e a sua responsabilidade.
Um dos aspectos impressionantes da pedagogia da salvação, no Antigo Testamento, é a importância que Deus dá a um pequeno povo, a quem se revela, cuja história tem sentido para todo o mundo, embora a maior parte do mundo o desconheça. O cristianismo, marcado pelo carácter decisivo da Páscoa de Cristo, dinamizado pelo dom do Espírito e pela missão de evangelizar, tem pressa de ver a humanidade a coincidir fisicamente com a Igreja e períodos houve da história em que se teve a ilusão dessa coincidência. Hoje conhecemos melhor o mundo na sua globalidade e sofremos por ver a Igreja, apesar da sua dimensão numérica, a ser “um pequeno rebanho”, como se ela tivesse falhado na sua missão de universalidade. Não conhecemos, nem o ritmo, nem o tempo de Deus. Afinal o que é decisivo é que a Igreja seja o novo povo da aliança, nascido de Cristo ressuscitado, tornado, pela força do Espírito, sacramento de salvação para todos os homens. Na Igreja, sacramento de Cristo, a autenticidade cristocêntrica é mais importante do que a quantidade, pois o tempo da universalidade do Reino só Deus o conhece. O tempo da Igreja é profundamente marcado pela densidade da salvação. Continua a ser válida para ela, como critério de discernimento da sua missão, a parábola evangélica do fermento na massa. E a Igreja será fermento na medida em que se identificar com Jesus Cristo, viver da plenitude de Jesus Cristo. A autenticidade e a santidade são a grande interpelação que o Espírito faz à Igreja.

6. Isto não significa que a Igreja desmoreça no ardor da sua missão evangelizadora. O levar o anúncio da boa-nova da salvação a todos os homens é vontade e mandato do próprio Senhor. E é maravilhosa a epopeia da evangelização nestes dois mil anos de história do cristianismo. Mas a evangelização não é, apenas, uma tarefa e muito menos uma estratégia. Ela é um testemunho e o seu vigor brota da densidade com que a Igreja vive de Jesus Cristo.
No tempo actual, em que o conhecimento global da humanidade é mais completo, na variedade das suas culturas e das suas religiões e na dramaticidade dos seus problemas, não nos parece provável que esteja para breve a coincidência da Igreja com a humanidade. Esse “tempo” só Deus o conhece. Isto repõe-nos um problema tantas vezes suscitado na história da Igreja: qual o futuro dos homens não cristãos perante Deus, qual o futuro de Deus na humanidade como um todo? As outras religiões farão parte do futuro de Deus? Qual o seu lugar na realização deste longo projecto de Deus de reunir, um dia, todos os homens, na sua comunhão de amor?
Não hesitarei em responder positivamente a esta questão, afirmando que toda a religião sincera, que ponha o homem em contacto com Deus, faz parte do futuro de Deus, porque isso se torna possível na centralidade salvífica de Jesus Cristo. Também na fé das outras religiões existem as “sementes do Verbo”, como lhe chamava Santo Ireneu. Desde que não as consideremos como caminho definitivo. Definitivo, em termos do futuro de Deus, só Jesus Cristo o é.
Perante as outras religiões há duas perspectivas imperfeitas em que podemos cair: ou de as considerar sem valor no conjunto da realização do desígnio da salvação, ou de as considerarmos definitivas, ao lado do cristianismo, como se todas as religiões fossem iguais. Nós acreditamos que o futuro de toda a religião sincera é a convergência com Cristo ressuscitado, embora ignoremos o tempo e o modo da manifestação dessa convergência. E, nesse aspecto, continua a ser missão da Igreja manifestar explicitamente essa plenitude de Jesus Cristo. Todos os que adoram a Deus estão abertos ao Seu desígnio; todos os que acreditam que a salvação é acção de Deus em nós, estão abertos ao dom do Espírito; todos os que buscam a perfeição e a santidade estão a deixar-se guiar por esse Espírito.
No diálogo inter-religioso não se ganha em dar prioridade aos proselitismos e aos sincretismos. É um diálogo a estabelecer na humildade e na verdade, de quem respeita o caminho religioso dos seus irmãos, incitando-os, com o nosso exemplo, a procurarem cada vez mais o rosto de Deus, que é amor, dando-lhes o testemunho, vivido e sincero, de que nós, os cristãos, encontramos esse rosto de Deus no rosto de Jesus Cristo. No diálogo inter-religioso o testemunho da santidade é mais fecundo do que a simples convicção doutrinal. Nós esperamos esse momento, que só Deus conhece, em que se manifestará a unicidade e a centralidade de Jesus Cristo, a única realização plena do futuro de Deus.

O futuro de Deus passa pelo triunfo do amor
7. Porque foi plenamente realizado em Jesus Cristo, o futuro de Deus, que é o futuro do homem, não é um futuro completamente pendente. Já está conseguido em Jesus Cristo e na transformação que o Espírito Santo vai realizando no coração dos homens. O homem está salvo, isto é, a sua vocação à comunhão de amor com Deus está garantida. Depois da Páscoa de Jesus desapareceu a ameaça de a humanidade ser um fracasso na perspectiva do plano de Deus. O futuro de Deus é o futuro da graça e do amor. É um futuro que se constrói todos os dias pelos caminhos da fidelidade e da abertura às interpelações do Espírito. A caminhada da humanidade para a sua plenitude definitiva é uma aprendizagem do amor. É esse o único objectivo da acção do Espírito, ensinar os caminhos do amor, em todas as suas concretizações na existência humana. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, continuam a ser os mandamentos que resumem toda a Lei. Quem ama cumpre a totalidade da Lei.
É contrário à realização deste futuro tudo o que é egoísmo, violência, injustiça, ódio, desprezo do próximo; mas também o que é desprezo de Deus e da glória que lhe é devida. O pecado é sempre uma traição de amor, uma recusa de amar e ser amado. Ao olharmos o mundo contemporâneo ele aparece-nos manchado por esta falta de amor. Mas há, no horizonte da nossa história de pecado, realidades que constituem a construção sólida desse futuro de Deus, menos visíveis e aparatosas que as manifestações do mal, mas mais fecundas em termos do futuro da humanidade: a oração sincera, a obediência à Palavra de Deus, o amor gratuito e generoso dos irmãos, sobretudo dos que mais precisam, essa onda imensa de generosidade e solidariedade que atravessa o nosso tempo e a nossa história. A luta entre o amor e o ódio, entre a paz e a violência, entre o diálogo e o orgulho, é um combate sem tréguas, mas a vitória do amor está garantida pelo Espírito Santo.
Este combate não é uma luta entre a Igreja e o resto do mundo. Também a Igreja é campo dessa batalha. Chamada a ser comunhão de amor, sabemos como a nossa infidelidade tolda a pureza do seu rosto de esposa. E o amor generoso de um não cristão, é mais realização do futuro de Deus do que o egoísmo ou a indiferença dos cristãos. Povo que tem como Lei o mandamento novo do amor, a realidade da Igreja deveria ser uma aurora de luz a anunciar a esperança de que é possível construir uma civilização do amor.


A plena liberdade é o futuro de Deus
8. “Foi para a liberdade que Cristo vos libertou” (Gal. 5,1). Só os seres livres podem amar. Por isso Deus criou o homem livre. Foi no respeito por essa liberdade que Deus aceitou que a realização do Seu desígnio de criação fosse lenta e dramática. A liberdade, o grande anseio e a maior reivindicação do homem de todos os tempos! Deus correu o risco de respeitar a liberdade do homem; a Igreja só pode correr o risco de respeitar a liberdade dos homens.
Mas a liberdade aprende-se, não basta defendê-la. A longa caminhada da humanidade na luta pela liberdade, não é só a da sua defesa, mas da percepção do que é, verdadeiramente, a liberdade. Na óptica da redenção, só é livre quem foi libertado. A verdadeira liberdade toca-se na experiência do amor, e a luz que a guia chama-se verdade. Todos os que buscam a liberdade têm de se fazer peregrinos da verdade. Só ela guia o coração humano para se fixar naquelas realidades que são a fonte das verdadeiras alegrias. Devendo estar sempre, na primeira linha da defesa da liberdade, a Igreja tem de ser pedagoga da liberdade, iluminando as consciências com a verdade que, por Jesus Cristo, ela aprende de Deus. “Serão todos ensinados por Deus” (cf. Jo. 6,45).
Não ter medo da liberdade significa aceitar as diferenças e ser paciente com as experiências imperfeitas de liberdade. Mas só cultivando a liberdade se constrói a civilização do amor.

O futuro de Deus plenamente conseguido em Maria
9. Estamos num grande Santuário Mariano, onde habitualmente as pessoas se aproximam de Deus e do Seu Filho através de Maria. É justo, e teologicamente necessário, encerrar esta Conferência contemplando Maria como a realização plena, numa criatura, do futuro de Deus e do seu desígnio de amor. Por isso Deus se revê nela como a criatura que correspondeu totalmente ao Seu plano de criação. O Anjo Gabriel, mensageiro divino, exprime à Virgem de Nazaré esses sentimentos de completa satisfação do Criador: “Achaste graça, diante do Senhor”; Deus está encantado por ti (cf. Lc. 1,30).
Esta plenitude de graça, que encanta Deus, ou seja, que O faz sentir-se plenamente glorificado na sua criatura, significa uma total intimidade de amor entre Maria e a Santíssima Trindade. Segundo São Bernardo, o Anjo vem anunciar e acaba por verificar essa perfeita intimidade de amor. Segundo ele, “o Anjo veio surpreender Maria numa grande intimidade de oração, com Deus, na contemplação e isso como que surpreende o Anjo, inspirando-lhe a saudação: Ave, cheia de graça. ‘Não há que admirar que seja cheia de graça aquela com quem Deus estava. O que é mais admirável é que Aquele que enviou o Anjo à Virgem, fosse encontrado, pelo Anjo, com a Virgem’. A mensagem que o Anjo traz, da parte de Deus, é uma mensagem de amor” .
O facto de a Virgem se tornar Mãe da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e a aceitação dessa maternidade são expressão de total abandono de amor e de confiança, introduzem Maria na intimidade amorosa das Pessoas divinas, proporcionando-lhe uma relação de amor, como pessoa, com cada uma das Três Pessoas. Volto a citar o que escrevi noutra ocasião, a propósito da Mariologia de São Bernardo: “A encarnação da Segunda Pessoa é acção de toda a Trindade, o que faz com que a maternidade introduza Maria na intimidade da comunhão trinitária, criando relações específicas com cada uma das Pessoas divinas. São Bernardo aproxima-se, assim, da Mariologia de tradição oriental, que gosta de situar Maria na ordem hipostática, isto é, contemplando o mistério da sua maternidade, não apenas na ordem da sua imanência histórica, mas também na intimidade particular e absolutamente única com a Santíssima Trindade, a partir da intervenção de cada uma das Pessoas divinas, na sua maternidade” .
Esta total capacidade de se deixar amar por Deus e de responder a esse amor, amando sem restrições nem limites, significa, para Deus e para a humanidade, a vitória definitiva sobre o pecado, a superação da “maldição de Eva” e, por isso mesmo, é um clímax na verdade da criação. Essa perfeita intimidade de amor atinge-a Maria, ao tornar-se Mãe do Filho de Deus. Essa fecundidade de Maria é a fecundidade do amor esponsal entre ela e Deus Pai, pela força criadora do Espírito. Mãe do Deus Filho, ela manifesta-se-nos como esposa de Deus Pai, realizando, pela primeira vez, de forma perfeita, a união esponsal de Deus com o Seu Povo.
Maria e o seu Filho são, realmente, a realização do futuro de Deus. Aí começa um tempo novo para toda a humanidade, que passa a poder, em Jesus Cristo, vencer o pecado e abrir-se ao amor. Esse é o futuro do homem ou, se quiserdes, o futuro de Deus na sua relação amorosa com o homem. Toda a santidade cristã é o anúncio de esperança de que esse futuro é possível e Maria está, necessariamente ligada à realização desse futuro. A sua plenitude de graça será sempre o anúncio e o sinal de que os homens poderão viver do amor; a sua qualidade de “esposa de Deus” será sempre o espelho em que a Igreja se revê, ao procurar ser a esposa imaculada de Deus Filho. Realização plena do “futuro de Deus”, Maria fará sempre parte do futuro da Igreja.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca


voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia