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O cardinalato, uma honra ou uma missão?
2001-02-21 19:10:25

Uma coisa e outra. Por vezes, mais honra que missão, segundo as vicissitudes históricas. O Cardinalato é uma instituição ligada ao exercício do Primado. Nasceu para ajudar o Papa no governo da Igreja e sempre se manteve como um órgão ligado ao Primado, dele completamente dependente na composição e atribuições.
Por mais estranho que pareça, o Cardinalato nasceu num período de grande reforma e para assegurar o sucesso e continuidade da mesma.


Foi no início do segundo milénio, portanto há cerca de mil anos, que a instituição do Cardinalato teve o seu aparecimento, precisamente no Pontificado de S. Leão IX (1049-1054), o primeiro Papa santo, depois de 42 que ininterruptamente foram privados desse título. É verdade que no primeiro milénio o título de santo se dava com mais facilidade e sem as exigências de agora, mas é sintomático que até o ano 530 todos os legítimos Bispos de Roma tenham esse título e a partir daí, com Bonifácio II, o percam. Até 884, o título ainda aparece com certa frequência, mas com Estêvão VI (885-891), o imediato predecessor do famoso Papa Formoso, o título desaparece por completo, reaparecendo só em 1049, precisamente com o Papa que criou a instituição do Cardinalato, S. Leão IX.

No século X, e primeira metade do século seguinte, a Igreja de Roma passou por um período muito obscuro, o chamado «século de ferro». A Sé de Pedro, posta à mercê de umas poucas famílias romanas, que serviam os próprios interesses e os de outros, foi ocupada por pessoas que não estavam à altura. Não quer dizer que o descalabro na Igreja do Ocidente fosse total, mas Roma deixara de ser o grande ponto de referência pastoral e espiritual. Note-se que foi precisamente nesse período que se teve a grande reforma de Cluny, que bem depressa se estendeu da vida monástica ao inteiro tecido eclesial das redondezas e não só, penetrando até nalgumas cortes, que se tornaram viveiros de santos e onde se encontrou força para pôr cobro à crise com que o Papado se debatia.

A partir de 1046 temos uma série de Papas, na maioria alemães, que são criaturas do Imperador, mas escolhidas com o propósito de reformar a Igreja de Roma e dar continuidade à reforma. É a chamada "reforma gregoriana", pelo nome do seu maior impulsionador, o Papa S. Gregório VII; uma reforma que se manifestava sobretudo em duas frentes: a moralidade do clero e a sua autonomia perante o poder civil, virtudes que acabavam por reflectir-se também na Igreja.
Leão IX vê-se na necessidade de se rodear de eclesiásticos - monjes e não só - amigos da reforma, que o ajudem no seu esforço reformador. Convida os monjes Humberto e Hildebrando, os futuros Cardeal Silva Cândida e Papa Gregório VII; o arcidiácono de Liege, Frederico de Lorena, futuro Estêvão X, e outros.

Punha-se o problema de como integrar na estrutura eclesiástica da Igreja Romana esses colaboradores vindos do exterior. A modalidade encontrada foi a dos "cardinales", qualificativo que então se dava aos Bispos e sacerdotes encarregados de administrar sacramentos e presidir aos serviços litúrgicos, por turnos, nas Basílicas romanas. Com Estêvão II (752-757) eram "cardinales" os bispos das sete dioceses suburbicárias, ou seja, da periferia da Urbe (Roma), e os padres que estavam à frente das igrejas "titulares" de Roma, correspondentes às actuais igrejas paroquiais, onde se administravam os sacramentos. Esses bispos e padres eram "cardinales", enquanto vinham prestar serviço por turnos nas Basílicas romanas: os bispos, na Basílica de São João de Latrão; os padres titulares, nas de São Pedro, São Paulo, Santa Maria Maior, São Lourenço… O adjectivo "cardinal" não comportava nenhuma posição de relevo; indicava apenas funções litúrgicas fora das próprias igrejas. Se eram eminentes, era pela sua posição de chefes das igrejas a que presidiam.

Até então, o Papa, mais Bispo de Roma que pastor da Igreja Universal, era assistido no governo da sua Igreja, inclusive no seu múnus petrino, pelo presbitério romano: padres e diáconos de Roma. Nas questões mais relevantes, era assistido pelo Sínodo, a que participavam os bispos suburbicários, os da Itália central e de outras dioceses que eventualmente se encontrassem em Roma. Na sede vacante, o governo da Igreja Romana pertencia ao presbitério, representado por um triunvirato: o arcipreste (o primeiro dos padres), o arcidiácono (o primeiro dos diáconos) e o primicério (o primeiro dos notários palatinos, ou seja, da Casa Episcopal). Trata-se de uma estrutura e estilo, que eram em parte comuns a outras dioceses e patriarcados.

Tudo muda com a reforma do século XI. Aos colaboradores chamados de fora, o Papa confere cargos que os tornam "cardinales"; confere-lhes dioceses suburbicárias ou igrejas "titulares", isentando-os dos serviços litúrgicos e associando-os ao governo da Igreja. Passam a ser "cardinales", sem o serem no sentido originário da palavra. "Cardinal" passa assim de adjectivo a substantivo, de serviço a dignidade. A mudança é grande, ao menos nas consequências: os titulares das dioceses suburbicárias e das chamadas igrejas "titulares" já não são necessariamente membros do clero romano; os novos titulares, espécie de adidos, ficam dispensados do serviço litúrgico, embora conservem a categoria, e passam também a colaborar no governo da Igreja, quando antes os "cardinales" se cingiam à liturgia e adiminstração dos sacramentos.

Os "cardinales" (cardeais) passam a ser considerados os "cardines" da Igreja Universal. São Pedro Damião, em 1057, chega a dizer que os sete bispos cardeais, ou seja, os sete bispos suburbicários, participam com Pedro do poder supremo da Igreja. Em 1059, Nicolau II reserva a esses cardeais bispos a eleição do Papa.

A Igreja de Roma, que até à metade do século XI era considerada a sede do Bispo de Roma, começa agora a identificar-se com a Igreja Universal. Os cardeais vêm a encontrar-se acima dos bispos.

No cisma que contrapôs Gregório VII ao antipapa Clemente III (1080-1100), este é apoiado pelos cardeais padres e diáconos, passando também estes a adquirir poder.

São Gregório VII bem procurou diminuir o poder dos cardeais no governo da Igreja, mas a sua política centralizadora acabará por reforçar-lhes o poder com os seus sucessores.

Sob Pascal II (1099-1118) o Colégio Cardinalício já está organizado em três ordens: 6/7 bispos, 28 padres e 18 diáconos. Já constituíam um verdadeiro e estável órgão de governo, de apoio ao Papa. Já são na maioria italianos. Sob Calixto II (1119-1124) , são chamados "senadores, com primazia em tudo o que se refere ao múnus apostólico". Em 1130, já as três ordens de cardeais participam na eleição do sucessor de Honório III. No segundo Concilílio Lateranense (1141), os cardeais bispos são encarregados de desempenhar as funções que eram próprias do Sínodo Romano, mas é todo o Colégio Cardinalício que constitui o órgão supremo de direcção no governo da Igreja. O Concílio Lateranense III (1179) confirma aos cardeais o poder de eleger o Papa, com a maioria de dois terços. Todos os cardeais têm os mesmos direitos. A partir de então, é constante a sua participação no governo da Igreja: ajudam o Papa no seu governo; em sede vacante, governam a Igreja e elegem o novo Papa.

No fim do século XI, já é regular a reunião do Consistório que, aos poucos, substitui o Sínodo Romano. A importância do Consistório e dos cardeais aumenta com a centralização do governo da Igreja. A consolidação do Consistório marca uma mudança, não sem contrastes e resistências, em termos de eclesiologia: o exercício da autoridade passa dos bispos aos cardeais e do Sínodo Romano ao Consistório.

Não se esqueça que a Igreja de Roma, por circunstâncias e condicionamentos históricos, torna-se a única sede importante do Ocidente. As Igrejas Orientais, que poderiam exercer uma influência moderadora na manutenção das tradicionais estruturas de participação no governo eclesial, estão totalmente separadas, seguindo a própria estrada e tradição. As grandes Igrejas do Ocidente, em certo sentido parceiras da Romana, como eram a do Norte de África e a da Espanha visigótica, sucumbiram ao Islão. A única Igreja florescente é a da Inglaterra, que é todavia uma fundação da Igreja Romana, com as tradições e praxes canónicas desta. Quando, sob os Carolíngios, se realiza uma unidade europeia, é a praxe da Igreja Romana que se implanta e difunde. Daí que se processe, sem contrastes, a centralização do Papado. Era o melhor que se podia oferecer a um Ocidente que emergia de uma crise.

Sob o Pontificado de Inocêncio III (1198-1216), o mais significativo da centralização medieval da Igreja, o Consistório dos cardeais reúne-se regularmente três vezes por semana. E durante toda a Idade Média tem reuniões regulares, para discutir e decidir sobre as questões mais importantes, tanto de ordem espiritual como temporal. Torna-se o Senado eclesiástico e político, o tribunal das causas judiciárias e de apelo que se fazem a Roma.

A crescente organização da Cúria Romana, que avança a par da centralização da Igreja, não diminui a importância do Colégio Cardinalício, que se mantém no topo, unido ao Papa no governo da Igreja. O contributo dos cardeais nesse governo é sempre de auxílio, e nunca de controlo ou diminuição da acção papal. Várias tentativas houve por parte dos cardeais de condicionar o Papa, através de "capitulações", ou seja, compromissos feitos durante o conclave e tendentes a obrigar o eleito a aceitar determinadas exigências do Colégio dos cardeais, mas todas essas "capitulações" foram, total ou parcialmente, renegadas pelo Papa eleito.

Os Pontificados breves e as prolongadas sedes vacantes (20 meses em 1241 e 32 em 1268) favoreciam a importância dos cardeais, mas nunca se chegou à consolidação dessa vantagem.

A composição numérica do Colégio Cardinalício também variou através dos tempos, numa proporção inversa entre importância e quantidade. No início do século XII os cardeais são 53. No século seguinte não superam os 20, por vezes reduzem-se a 10. Na sede vacante de 1254, os cardeais que elegem Alexandre IV são apenas 13. Em 1261, Urbano IV foi eleito por 8 cardeais e em 1277 Nicolau III foi-o por igual número. Uma estabilidade no número de cardeais foi estabelecida por Sixto V, que o fixou em 70, declarando inválida a criação que superasse tal limite.

Será o Papa João XXIII, já nos nossos dias, quem superará esse limite. João Paulo II irá ainda mais longe.

Uma honra ou uma missão o Cardinalato? Pela função que exerce e pelo número restricto, não há dúvida que se trata de uma instituição de elevado prestígio.

As funções dos cardeais, como tais, são hoje muito reduzidas: colaboram com o Santo Padre no exercício da sua função primacial, mas mais integrados nos organismos da Cúria Romana, que através de verdadeiros Consistórios. Estes são mais reminiscências históricas que estruturas efectivamente decisionais. O Consistório hoje é mais para formalizar certas decisões, que para discuti-las ou decidir.

O poder mais significativo que o Colégio Cardinalício mantém é o de eleger o Papa, prerrogativa que se reduz à escolha de uma pessoa, mas que, indirectamente, comporta a opção de uma linha de Pontificado. Dada porém a total autonomia que o eleito goza, essa determinação torna-se relativa.

O Cardinalato nasceu de uma reforma. Parecia que uma outra reforma, a do Vaticano II, o dispensaria, passados precisamente mil anos. Paulo VI, porém, não obstante o seu espírito inovador, manteve o Cardinalato, e João Paulo II, aumentando-lhe o número e a internacionalização, ainda mais o consolidou.

Não falta quem considere absoleta essa instituição. Ela porém pode ser encarada como uma forma de manter e sublinhar a realidade romana do Papado. O Papa é, antes de mais, Bispo de Roma e, como tal, qual sucessor de Pedro, cabe-lhe a função primacial. A existência de um Colégio de cardeais, cada vez mais internacional, mas sempre ligado à Igreja Romana, pelo exclusivo da nomeação papal e por uma certa ligação com as dioceses suburbicárias, com as igrejas titulares e as diaconias da diocese de Roma, por mais antiquado que pareça, aproxima o Papado da sua origem. Com a participação, ao mesmo tempo universal e discreta de um Colégio Cardinalício, o Papa aparece mais como Bispo de Roma, sucessor de Pedro, na sua função primigénia de coluna de comunhão e de ortodoxia. Outras formas de participação da Igreja Universal no governo do Papa, na base das Conferências Episcopais ou noutras formas que foram ventiladas, talvez acabassem por realçar ainda mais o Papa como Bispo universal, numa centralização que não estaria muito na linha de uma eclesiologia tradicional e ecuménica. Também aí residiriam a importância e a vantagem de manter a estrutura em questão.

P. João de Chaves Bairos, scj



Fonte Ecclesia

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