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João Paulo II pede referência à herança cristã europeia
2003-06-29 16:22:23

João Paulo II denuncia as tentativas de excluir a "herança religiosa, e de modo particular a profunda alma cristã" da Europa".
Neste Documento, o Papa refere ainda que "no continente europeu, certamente não faltam prestigiosos símbolos da presença cristã, mas, com a afirmação lenta e progressiva do secularismo, correm o risco de reduzirem-se a meros vestígios do passado".


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL ECCLESIA IN EUROPA DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II AOS BISPO E AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS AOS CONSAGRADOS E CONSAGRADAS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE JESUS CRISTO, VIVO NA SUA IGREJA, FONTE DE ESPERANÇA PARA A EUROPA

INTRODUÇÃO

Anúncio de alegria para a Europa

1. A Igreja na Europa, animada por sentimentos de solidariedade, acompanhou os seus Bispos que se reuniram em Sínodo, pela segunda vez, para meditar sobre Jesus Cristo, vivo na sua Igreja, fonte de esperança para a Europa.

Trata-se de um tema que também eu, unido com os meus irmãos Bispos e retomando as palavras da 1ª Carta de S. Pedro, quero proclamar a todos os cristãos da Europa ao início do terceiro milénio: « Não temais (...), nem vos deixeis perturbar. Mas venerai Cristo Senhor nos vossos corações e estai sempre prontos a responder (...) a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança » (3, 14-15).1

Este anúncio ressoou continuamente durante o Grande Jubileu do ano 2000, com o qual está intimamente relacionado o referido Sínodo, tendo sido celebrado nas proximidades da sua abertura como se fosse uma porta que desse para ele.2 O Jubileu constituiu « um único e incessante cântico de louvor à Santíssima Trindade », um autêntico « caminho de reconciliação » e um « sinal de genuína esperança para todos os que levantam seu olhar para Cristo e para a sua Igreja ».3 Tendo-nos deixado em herança a alegria do encontro vivificante com Cristo, que « é o mesmo ontem, hoje e sempre » (Heb 13, 8), propôs-nos de novo o Senhor Jesus como o fundamento único e indefectível da verdadeira esperança.

O segundo Sínodo para a Europa

2. Desde o princípio, o aprofundamento do tema da esperança constituía o objectivo principal da II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa. Sendo o último na série dos Sínodos de carácter continental celebrados como preparação para o Grande Jubileu do ano 2000,4 tinha por finalidade analisar a situação da Igreja na Europa e oferecer indicações para promover um novo anúncio do Evangelho, como sublinhei ao tornar pública a sua convocação a 23 de Junho de 1996, no fim da Eucaristia celebrada no Estádio Olímpico de Berlim.5

A Assembleia Sinodal não podia deixar de retomar, verificar e desenvolver as conclusões do Sínodo anteriormente dedicado à Europa, que fora celebrado em 1991, logo a seguir à queda dos muros, debruçando-se sobre o tema « Para sermos testemunhas de Cristo que nos libertou ». Desta I Assembleia Especial resultou a urgência e a necessidade da « nova evangelização », cientes de que « a Europa, hoje, não deve simplesmente fazer apelo à sua precedente herança cristã: é preciso, de facto, que seja posta em condições de decidir novamente do seu futuro no encontro com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo ».6

Nove anos mais tarde, a convicção de que « é tarefa urgente da Igreja oferecer de novo aos homens e às mulheres da Europa a mensagem libertadora do Evangelho » 7 ressurgiu com a sua força estimuladora. O tema escolhido para a nova Assembleia Sinodal colocava, agora sob a perspectiva da esperança, o mesmo desafio. Tratava-se, por conseguinte, de proclamar este anúncio de esperança a uma Europa que parecia tê-la perdido.8

A experiência do Sínodo

3. A Assembleia Sinodal, realizada de 1 a 23 de Outubro de 1999, revelou-se uma preciosa oportunidade de encontro, escuta e confronto: aprofundou-se o conhecimento recíproco entre Bispos de diversas partes da Europa e com o Sucessor de Pedro, e, todos unidos, pudemos edificar-nos mutuamente, graças sobretudo aos testemunhos daqueles que, sob os regimes comunistas passados, tinham suportado duras e prolongadas perseguições pela fé.9 Vivemos uma vez mais momentos de comunhão na fé e na caridade, animados pelo desejo de realizar um fraterno « intercâmbio de dons », enriquecendo-nos mutuamente com a diversidade das experiências de cada um.10

Era patente a vontade de acolher o apelo dirigido pelo Espírito às Igrejas da Europa para se empenharem perante os novos desafios.11 Com um olhar cheio de amor, os participantes no encontro sinodal detiveram-se sem medo a observar a realidade actual do continente, ressaltando as suas luzes e sombras. Daí resultou claramente a noção de que a situação está marcada por graves incertezas a nível cultural, antropológico, ético e espiritual. Com igual nitidez, foi-se afirmando uma vontade crescente de entrar dentro desta situação para interpretá-la e ver as tarefas que esperam a Igreja: daí surgiram « orientações úteis para tornar cada vez mais visível o rosto de Cristo mediante um anúncio mais incisivo, corroborado por um coerente testemunho ».12

4. Vivendo a experiência sinodal com discernimento evangélico, foi maturando cada vez mais a consciência da unidade que, sem renegar as diferenças resultantes das vicissitudes históricas, entrelaça as várias partes da Europa. É uma unidade que, tendo as suas raízes na inspiração cristã comum, pode conciliar as diversas tradições culturais mas requer, tanto a nível social como eclesial, um contínuo caminhar no conhecimento recíproco procurando uma maior partilha dos valores de cada um.

Ao longo do Sínodo, pouco a pouco foi-se evidenciando um forte pendor para a esperança. Embora aceitando as análises da complexidade que caracteriza o continente, os padres sinodais individuaram, como sendo provavelmente a urgência maior que o atravessa de Leste a Oeste, a necessidade cada vez mais sentida de esperança, que torne possível dar sentido à vida e à história e caminhar de mãos dadas. Todas as reflexões do Sínodo se encaminhavam para dar resposta a esta necessidade, a partir do mistério de Cristo e do mistério trinitário. O Sínodo quis repropor a figura de Jesus, vivo na sua Igreja, revelador do Deus-Amor que é comunhão das três Pessoas divinas.

O ícone do Apocalipse

5. Sinto-me feliz por poder, com a presente Exortação pós-sinodal, partilhar os frutos desta II Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa. Pretendo assim corresponder ao desejo que me foi manifestado no termo do encontro sinodal, quando os Pastores me entregaram os textos das suas reflexões com o pedido de oferecer à Igreja peregrina na Europa um documento sobre o próprio tema do Sínodo.13

« Quem tem ouvidos, oiça o que o Espírito diz às Igrejas » (Ap 2, 7). Ao anunciar à Europa o Evangelho da esperança, terei como guia o livro do Apocalipse, « revelação profética » que desvenda à comunidade crente o sentido oculto e profundo das coisas que acontecem (cf. Ap 1, 1). O Apocalipse apresenta-nos uma palavra dirigida às comunidades cristãs, para ajudá-las a interpretar e viver a sua inserção na história, com os seus problemas e tribulações, à luz da vitória definitiva do Cordeiro imolado e ressuscitado. Ao mesmo tempo, encontramo-nos com uma palavra que nos obriga a viver deixando de lado a tentação frequente de construir a cidade dos homens, prescindindo de Deus ou contra Ele. É que, se isto se verificasse, a própria convivência humana acabaria, mais cedo ou mais tarde, por conhecer uma irremediável derrota.

O Apocalipse contém um encorajamento dirigido a todos os crentes: para além de qualquer aparência e apesar de os efeitos não serem ainda visíveis, a vitória de Cristo já se deu e é definitiva. Daí o conselho a olhar as vicissitudes humanas fundamentalmente com uma atitude de confiança, que nasce da fé no Ressuscitado, presente e activo na história.

CAPÍTULO I

JESUS CRISTO É NOSSA ESPERANÇA

« Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente » (Ap 1, 17-18)

O Ressuscitado está sempre connosco

6. Num tempo de perseguição, tribulação e crise para a Igreja como era a época do autor do Apocalipse (cf. 1, 9), a palavra que ressoa na visão é uma palavra de esperança: « Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; conheci a morte, mas eis-Me aqui vivo pelos séculos dos séculos. E tenho as chaves da Morte e do Inferno » (Ap 1, 17-18). Encontramo-nos assim com o Evangelho, o « feliz anúncio », que é o próprio Jesus Cristo. Ele é o Primeiro e o Último: n'Ele, toda a história encontra o seu princípio, sentido, direcção e realização; n'Ele e com Ele, na sua morte e ressurreição, já tudo ficou dito. É o Vivente: estava morto, mas agora vive para sempre. Ele é o Cordeiro que está de pé no meio do trono de Deus (cf. Ap 5, 6): aparece imolado, porque derramou o seu sangue por nós no madeiro da cruz; está de pé, porque voltou à vida para sempre e mostrou-nos a omnipotência infinita do amor do Pai. Ele segura firmemente nas suas mãos as sete estrelas (cf. Ap 1, 16), isto é, a Igreja de Deus perseguida, que, embora em luta contra o mal e o pecado, tem motivos para sentir-se alegre e vitoriosa, porque está nas mãos de Cristo que já venceu o mal. Ele caminha no meio dos sete castiçais de ouro (cf. Ap 2, 1): está presente e activo na sua Igreja em oração. Ele é, enfim, « Aquele que vem » (Ap 1, 4) através da missão e da acção da Igreja ao longo da história humana; vem como ceifeiro escatológico, no fim dos tempos, para levar à perfeição todas as coisas (cf. Ap 14, 15-16; 22, 20).


I. Desafios e sinais de esperança para a Igreja na Europa

O ofuscamento da esperança

7. Esta palavra é dirigida hoje também às Igrejas na Europa, frequentemente provadas por um ofuscamento da esperança. De facto, os nossos dias, com todos os desafios que nos lançam, apresentam-se como um tempo de crise. Muitos homens e mulheres parecem desorientados, incertos, sem esperança; e não poucos cristãos partilham estes estados de alma. Numerosos são os sinais preocupantes que inquietam, ao início do terceiro milénio, o horizonte do continente europeu, o qual, « apesar de estar na posse plena de imensos sinais de fé e testemunho e no quadro duma convivência sem dúvida mais livre e mais unida, sente todo o desgaste que a história antiga e recente produziu nas fibras mais profundas dos seus povos, dando origem muitas vezes à desilusão ».14

De entre muitos aspectos, amplamente citados também durante o Sínodo,15 quero recordar a crise da memória e herança cristãs, acompanhada por uma espécie de agnosticismo prático e indiferentismo religioso, fazendo com que muitos europeus dêem a impressão de viver sem substrato espiritual e como herdeiros que delapidaram o património que lhes foi entregue pela história. Por isso, não causam assim tanta maravilha as tentativas de dar um rosto à Europa excluindo a sua herança religiosa, e de modo particular a sua profunda alma cristã, estabelecendo os direitos dos povos que a compõem sem enxertá-los no tronco irrigado pela linfa vital do cristianismo.

No continente europeu, certamente não faltam prestigiosos símbolos da presença cristã, mas, com a afirmação lenta e progressiva do secularismo, correm o risco de reduzirem-se a meros vestígios do passado. Muitos já não conseguem integrar a mensagem evangélica na experiência diária; aumenta a dificuldade de viver a própria fé em Jesus num contexto social e cultural onde é continuamente desafiado e ameaçado o projecto de vida cristã; em vários sectores públicos, é mais fácil definir-se agnóstico do que crente; dá a impressão de que o normal é não crer, enquanto o acreditar teria necessidade de uma legitimação social não óbvia nem automática.

8. Esta crise da memória cristã é acompanhada por uma espécie de medo de enfrentar o futuro. A imagem que se forma do amanhã, aparece muitas vezes vaga e incerta. Do futuro, sente-se mais medo que desejo. Sinais preocupantes disto mesmo são, entre outros, o vazio interior, que oprime muitas pessoas, e a perda do significado da vida. Como manifestações e frutos desta angústia existencial, contam-se, de modo particular, a dramática diminuição da natalidade, a queda das vocações ao sacerdócio e à vida consagrada, a relutância, se não mesmo a recusa, de tomar decisões definitivas na vida inclusive no matrimónio.

Assiste-se a uma generalizada fragmentação da existência; predomina uma sensação de solidão; multiplicam-se as divisões e os contrastes. Entre outros sintomas deste estado de coisas, a situação europeia actual regista o grave fenómeno das crises familiares e do esmorecimento do próprio conceito de família, a persistência ou reabertura de conflitos étnicos, o reaparecimento de alguns comportamentos racistas, as próprias tensões inter-religiosas, o egocentrismo que fecha indivíduos e grupos em si mesmos, o crescimento de uma indiferença ética geral e de uma preocupação obsessiva pelos próprios interesses e privilégios. Na visão de tantos, a globalização em curso, em vez de apontar para uma maior unidade do género humano, arrisca-se a seguir uma lógica que marginaliza os mais débeis e aumenta o número dos pobres da terra.

A par do aumento do individualismo, nota-se um enfraquecimento progressivo da solidariedade interpessoal: se as instituições de assistência continuam a desempenhar um louvável trabalho, observa-se uma atenuação no sentido da solidariedade, pelo que muitas pessoas, embora não lhes falte o necessário a nível material, sentem-se mais sós, deixadas à mercê de si mesmas, sem redes de apoio afectivo.

9. Na raiz da crise da esperança, está a tentativa de fazer prevalecer uma antropologia sem Deus e sem Cristo. Esta forma de pensar levou a considerar o homem como « o centro absoluto da realidade, fazendo-o ocupar astuciosamente o lugar de Deus e esquecendo que não é o homem que cria Deus, mas é Deus que cria o homem. O ter esquecido Deus levou a abandonar o homem », pelo que « não admira que, neste contexto, se tenha aberto amplo espaço ao livre desenvolvimento do niilismo no campo filosófico, do relativismo no campo gnoseológico e moral, do pragmatismo e também do hedonismo cínico na configuração da vida quotidiana ».16 A cultura europeia dá a impressão de uma « apostasia silenciosa » por parte do homem saciado, que vive como se Deus não existisse.

Neste horizonte, ganham corpo as tentativas, verificadas ainda recentemente, de apresentar a cultura europeia prescindindo do contributo do cristianismo que marcou o seu desenvolvimento histórico e a sua difusão universal. Estamos perante o aparecimento duma nova cultura, influenciada em larga escala pelos mass-media, com características e conteúdos frequentemente contrários ao Evangelho e à dignidade da pessoa humana. Também faz parte de tal cultura um agnosticismo religioso cada vez mais generalizado, conexo com um relativismo moral e jurídico mais profundo que tem as suas raízes na crise da verdade do homem como fundamento dos direitos inalienáveis de cada um. Os sinais da diminuição da esperança manifestam-se às vezes através de formas preocupantes daquilo que se pode chamar uma « cultura de morte ».17

A nostalgia irreprimível da esperança

10. Todavia, como sublinharam os padres sinodais, « o homem não pode viver sem esperança: a sua vida perderia o sentido, tornando-se insuportável ».18 Muitas vezes pensa-se que é possível satisfazer esta exigência de esperança com realidades efémeras e frágeis. E assim a esperança, confinada num âmbito intramundano fechado à transcendência, acaba por ser identificada, por exemplo, com o paraíso prometido pela ciência e a técnica, com as mais variadas formas de messianismo, com a felicidade de natureza hedonista oferecida pelo consumismo, com o prazer imaginário e artificial gerado por substâncias estupefacientes, com algumas formas de milenarismo, com o fascínio das filosofias orientais, com a busca de formas esotéricas de espiritualidade, nas diversas correntes da New Age.19

Tudo isto, porém, se revela profundamente ilusório e incapaz de satisfazer aquela sede de felicidade que o coração do homem continua a sentir em si mesmo. Deste modo permanecem e agravam-se os preocupantes sinais de enfraquecimento da esperança, que às vezes se manifestam mesmo através de formas de agressividade e de violência.20

Sinais de esperança

11. Nenhum ser humano pode viver sem perspectivas de futuro. Menos ainda a Igreja, que vive na expectativa do Reino que chega e já está presente neste mundo. Seria injusto não ver os sinais do influxo do Evangelho de Cristo na vida da sociedade. Os padres sinodais encontraram-nos e evidenciaram-nos.

Entre estes sinais, conta-se a recuperação da liberdade da Igreja no Leste europeu, com as novas possibilidades de acção pastoral que lhe foram abertas; a concentração da Igreja na sua missão espiritual e o seu compromisso de viver o primado da evangelização mesmo nas relações com a realidade sócio-política; a ampla tomada de consciência da missão própria de todos os baptizados, na variedade e complementaridade dos respectivos dons e tarefas; a maior presença da mulher nas várias estruturas e sectores da comunidade cristã.

Uma comunidade de povos

12. Olhando para a Europa como comunidade civil, não faltam sinais indicadores de esperança: neles, mesmo entre as contradições da história, podemos com um olhar de fé individuar a presença do Espírito de Deus que renova a face da terra. Os padres sinodais, no termo dos seus trabalhos, descreveram-nos assim: « Constatamos com alegria a crescente abertura dos povos uns aos outros, a reconciliação entre nações por longo tempo hostis e inimigas, o alargamento progressivo do processo de união aos países do Leste Europeu. Reconhecimentos, colaborações e intercâmbios de todo o tipo estão em desenvolvimento, de maneira que, pouco a pouco, se cria uma cultura, antes, uma consciência europeia, que esperamos possa fazer crescer, especialmente nos jovens, o sentimento da fraternidade e a vontade da partilha. Registamos como positivo o facto de todo este processo se desenvolver segundo métodos democráticos, de modo pacífico e num espírito de liberdade, que respeita e valoriza as legítimas diversidades, suscitando e apoiando o processo de unificação da Europa. Saudamos com satisfação aquilo que foi feito para determinar as condições e as modalidades do respeito dos direitos humanos. Por fim, no contexto da legítima e necessária unidade económica e política na Europa, enquanto registamos os sinais de esperança oferecidos pela consideração dada ao direito e à qualidade de vida, formulamos ardentes votos por que, numa fidelidade criativa à tradição humanista e cristã do nosso continente, seja garantido o primado dos valores éticos e espirituais ».21

Os mártires e as testemunhas da fé

13. Desejo, porém, chamar a atenção especialmente para alguns sinais surgidos na vida eclesial propriamente dita. Antes de mais nada, quero com os padres sinodais apresentar novamente a todos, para que nunca seja esquecido, o grande sinal de esperança constituído por tantas testemunhas da fé cristã que viveram, no último século, tanto no Oriente como no Ocidente. Souberam assumir o Evangelho em situações de hostilidade e perseguição, frequentemente até à prova suprema do sangue.

Estas testemunhas, particularmente as que enfrentaram a prova do martírio, são um sinal eloquente e grandioso, que somos chamados a contemplar e imitar. Atestam-nos a vitalidade da Igreja; apresentam-se como luz para a Igreja e a humanidade, porque, nas trevas, fizeram brilhar a luz de Cristo; pertencendo a diversas confissões cristãs, resplandecem igualmente como sinal de esperança no caminho ecuménico, na certeza de que o seu sangue « é também linfa de unidade para a Igreja ».22

Mais radicalmente ainda, elas dizem-nos que o martírio é encarnação suprema do Evangelho da esperança. « De facto, os mártires anunciam este Evangelho e testemunham-no com a sua vida até à efusão do sangue, porque, certos de não poderem viver sem Cristo, estão prontos a morrer por Ele na convicção de que Jesus é o Senhor e o Salvador do homem e que este, por conseguinte, só n'Ele encontra a verdadeira plenitude da vida.

Deste modo, segundo a advertência do apóstolo Pedro, mostram-se prontos a dar a razão da esperança que está neles (cf. 1 Pd 3, 15). Além disso, os mártires celebram o “Evangelho da esperança”, porque a oferta da sua vida é a manifestação maior e mais radical daquele sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que constitui o verdadeiro culto espiritual (cf. Rm 12, 1), origem, alma e apogeu de toda a celebração cristã. Por último, eles servem o “Evangelho da esperança”, porque, com o seu martírio, exprimem em sumo grau o amor e o serviço ao homem, enquanto demonstram que a obediência à lei evangélica gera uma vida moral e uma convivência social que honra e promove a dignidade e a liberdade de toda a pessoa ».23

A santidade de muitos

14. Fruto da conversão realizada pelo Evangelho é a santidade de muitos homens e mulheres do nosso tempo; não só daqueles que foram proclamados oficialmente santos pela Igreja, mas também dos que, com simplicidade e no dia a dia da existência, deram testemunho da sua fidelidade a Cristo. Como não pensar aos inumeráveis filhos da Igreja que, ao longo da história do continente europeu, viveram uma santidade generosa e autêntica no mais recôndito da vida familiar, profissional e social? « Todos eles, como “pedras vivas” aderentes a Cristo “pedra angular”, construíram a Europa como edifício espiritual e moral, deixando aos vindouros a herança mais preciosa. O Senhor Jesus havia prometido: “Aquele que acredita em Mim fará também as obras que Eu faço; e fará obras maiores do que estas, porque Eu vou para o Pai'' (Jo 14, 12). Os santos são a prova viva da realização desta promessa, e ajudam a crer que isto é possível mesmo nos momentos mais difíceis da história ».24

A paróquia e os movimentos eclesiais

15. O Evangelho continua a dar os seus frutos nas comunidades paroquiais, no meio das pessoas consagradas, nas associações de leigos, nos grupos de oração e de apostolado, nas diversas comunidades juvenis, e também através da presença e difusão de novos movimentos e realidades eclesiais. De facto, em cada um deles o mesmo Espírito consegue suscitar renovada dedicação ao Evangelho, generosa disponibilidade ao serviço, vida cristã caracterizada por radicalismo evangélico e zelo missionário.

Embora carecida de constante renovação,25 a paróquia continua ainda hoje a deter e a realizar na Europa, tanto nos países pós-comunistas como no Ocidente, uma missão indispensável e de grande actualidade no âmbito pastoral e eclesial. É capaz ainda de proporcionar aos fiéis o espaço para um real exercício da vida cristã e ser lugar também de autêntica humanização e sociabilização, quer no contexto dispersivo e anónimo típico das grandes cidades modernas quer em zonas rurais com pouca população.26

16. Com os padres sinodais, ao mesmo tempo que exprimo a minha grande estima pela presença e a acção das diversas associações e organizações apostólicas, em particular da Acção Católica, desejo pôr em relevo a específica contribuição que podem, nunca isolando-se mas em comunhão com as outras realidades eclesiais, oferecer os novos movimentos e as novas comunidades eclesiais. De facto, estes últimos « ajudam os cristãos a viverem mais radicalmente segundo o Evangelho; são berço de diversas vocações e geram novas formas de consagração; promovem sobretudo a vocação dos leigos e levam-na a exprimir-se nos diversos âmbitos da vida; favorecem a santidade do povo; podem ser anúncio e exortação para muitos que de outro modo não se cruzariam com a Igreja; frequentemente apoiam o caminho ecuménico e abrem sendas para o diálogo inter-religioso; servem de antídoto contra a difusão das seitas; são de grande ajuda para irradiar vitalidade e alegria na Igreja ».27

O caminho ecuménico

17. Damos graças ao Senhor pelo grande e reconfortante sinal de esperança constituído pelos progressos que o caminho ecuménico pôde realizar sob o signo da verdade, da caridade e da reconciliação. Trata-se de um dos grandes dons do Espírito Santo para um continente, a Europa, que deu origem às graves divisões entre os cristãos no segundo milénio e sofre ainda muito com as consequências das mesmas.

Recordo com emoção alguns momentos de grande intensidade vividos durante os trabalhos sinodais e a convicção unânime, afirmada também pelos delegados fraternos, de que o caminho ecuménico – não obstante os problemas que ainda restam e os novos que vão surgindo – não pode ser interrompido, mas deve continuar com renovado ardor, com mais profunda determinação e com a humilde disponibilidade de todos para o perdão recíproco. De bom grado faço minhas algumas expressões dos padres sinodais, porque « o progresso no diálogo ecuménico, que tem o seu fundamento mais profundo no próprio Verbo de Deus, constitui um sinal de grande esperança para a Igreja actual: o crescimento da unidade entre os cristãos é efectivamente de mútuo enriquecimento para todos ».28 É preciso « considerar com alegria os progressos até agora obtidos no diálogo tanto com os irmãos das Igrejas Ortodoxas como com os irmãos das comunidades eclesiais oriundas da Reforma, reconhecendo nisso um sinal da acção do Espírito pelo qual devemos louvar e agradecer ao Senhor ».29


II. Voltar a Cristo, fonte de toda a esperança

Confessar a nossa fé

18. Da Assembleia Sinodal saiu, clara e veemente, a certeza de que a Igreja tem para oferecer à Europa o bem mais precioso, que ninguém mais lhe pode dar: é a fé em Jesus Cristo, fonte da esperança que não desilude,30 um dom que está na origem da unidade espiritual e cultural dos povos europeus e pode constituir, também hoje e no futuro, um contributo essencial do seu progresso e integração. Sim, passados vinte séculos, a Igreja apresenta-se no início do terceiro milénio com o mesmo anúncio de sempre, que constitui o seu único tesouro: Jesus Cristo é o Senhor; só há salvação n'Ele, e em mais ninguém (cf. Act 4, 12). A fonte da esperança, para a Europa e para o mundo inteiro, é Cristo; « e a Igreja é o canal pelo qual passa e se difunde a onda de graça que brotou do Coração trespassado do Redentor ».31

Fundamentada nesta confissão de fé, brota do nosso coração e dos nossos lábios « uma jubilosa confissão de esperança: Vós, ó Senhor, ressuscitado e vivo, sois a esperança sempre nova da Igreja e da humanidade; Vós sois a única e verdadeira esperança do homem e da história; Vós sois entre nós “a esperança da glória” (Col 1, 27) já nesta nossa vida e para além da morte. Em Vós e Convosco, nós podemos alcançar a verdade, a nossa existência tem um sentido, a comunhão é possível, a diversidade pode tornar-se riqueza, a força do Reino está em acção na história e ajuda na edificação da cidade do homem, a caridade dá valor perene aos esforços da humanidade, o sofrimento pode tornar-se salvífico, a vida vencerá a morte, a criação participará na glória dos filhos de Deus ».32

Jesus Cristo nossa esperança

19. Jesus Cristo é a nossa esperança, porque Ele, o Verbo eterno de Deus que está desde sempre no seio do Pai (cf. Jo 1, 18), amou-nos até ao ponto de assumir em tudo, excepto no pecado, a nossa natureza humana tornando-Se participante da nossa vida, para nos salvar. A confissão desta verdade encontra-se mesmo no âmago da nossa fé. A perda da verdade sobre Jesus Cristo ou uma má compreensão da mesma impede de penetrar no próprio mistério do amor de Deus e da comunhão trinitária.33

Jesus Cristo é a nossa esperança, porque Ele revela o mistério da Santíssima Trindade. Este constitui o centro da fé cristã, que pode oferecer ainda, como o fez até agora, um grande contributo para a edificação de estruturas que, inspirando-se nos grandes valores evangélicos ou confrontando-se com eles, promovam a vida, a história e a cultura dos diversos povos do continente.

Múltiplas são as raízes que com a linfa dos seus ideais contribuíram para o reconhecimento do valor da pessoa e da sua dignidade inalienável, o reconhecimento do carácter sagrado da vida humana e do papel central da família, da importância da instrução e da liberdade de pensamento, de palavra, de religião, e contribuíram também para a tutela legal dos indivíduos e dos grupos, a promoção da solidariedade e do bem comum, o reconhecimento da dignidade do trabalho. Tais raízes favoreceram a subordinação do poder político à lei e ao respeito dos direitos da pessoa e dos povos. Importa recordar aqui o espírito da Grécia antiga e da romanidade, os contributos dos povos celtas, germânicos, eslavos, ugro-finlandeses, da cultura hebraica e do mundo islâmico. No entanto há que reconhecer que historicamente estas inspirações acharam, na tradição judaico-cristã, uma força capaz de as harmonizar, consolidar e promover. É um facto que não se pode ignorar; pelo contrário, é preciso reconhecer, no processo da construção da « casa comum europeia », que este edifício deve assentar também sobre valores que encontram na tradição cristã a sua plena epifania. Reconhecê-lo é vantajoso para todos.

Não sendo « sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional » da Europa, a Igreja coerentemente deseja respeitar a legítima autonomia da ordem civil.34 Mas, é sua missão reavivar nos cristãos da Europa a fé na Santíssima Trindade, bem sabendo que uma tal fé é prenúncio de autêntica esperança para o continente. Muitos dos grandes paradigmas de referimento atrás mencionados, que estão na base da civilização europeia, têm as suas raízes últimas na fé trinitária. Esta contém uma extraordinária força espiritual, cultural e ética, capaz, para além do mais, de esclarecer inclusive algumas das grandes questões que hoje se levantam na Europa, tais como a desagregação social e a perda de uma referência que dê sentido à vida e à história. Daí a necessidade de uma renovada meditação teológica, espiritual e pastoral do mistério trinitário.35

20. As Igrejas particulares da Europa não são simplesmente entidades ou organizações privadas. Na realidade, elas trabalham no quadro duma dimensão institucional específica, que merece ser juridicamente valorizada no pleno respeito dos justos ordenamentos civis. Quando reflectem sobre si mesmas, as comunidades cristãs devem sentir-se como um dom de Deus para o enriquecimento dos povos que vivem no continente. Tal é o jubiloso anúncio que são chamadas a levar a cada pessoa. Quando aprofundam a sua dimensão missionária, elas devem testemunhar constantemente que Jesus Cristo « é o Mediador único e constitutivo de salvação para a humanidade inteira: só n'Ele é que a humanidade, a história e o universo encontram definitivamente o seu significado positivo e se realizam totalmente; Ele tem em Si mesmo, na sua acção e na sua pessoa, as razões definitivas da salvação; Ele não é apenas um mediador de salvação, mas é a própria fonte da salvação ».36

No contexto do pluralismo ético e religioso actual que vai caracterizando cada vez mais a Europa, é preciso, por conseguinte, confessar e repropor a verdade de Cristo como único Mediador entre Deus e os homens e único Redentor do mundo. Por isso, como fiz no termo da Assembleia Sinodal, com toda a Igreja convido os meus irmãos e irmãs na fé a procurarem constantemente e com confiança abrir-se a Cristo e a deixarem-se renovar por Ele, anunciando, unicamente com a força da paz e do amor, a todas as pessoas de boa vontade que, quem encontra o Senhor, conhece a Verdade, descobre a Vida, acha o Caminho que a ela conduz (cf. Jo 14, 6; Sal 16/15, 11). A partir do teor de vida e do testemunho da palavra dos cristãos, os habitantes da Europa poderão descobrir que Jesus Cristo é o futuro do homem. Segundo a fé da Igreja, de facto, « não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar » (Act 4, 12).37

21. Para os crentes, Jesus Cristo é a esperança da humanidade, porque dá a vida eterna. Ele é « o Verbo da vida » (1 Jo 1, 1), que veio ao mundo para que os homens « tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Deste modo Ele mostra-nos como o verdadeiro sentido da vida do homem não está confinado ao horizonte terreno, mas abre-se para a eternidade. É missão de cada Igreja particular da Europa ter em conta a sede de verdade dos indivíduos e a necessidade de valores autênticos que animem os povos do continente. Com renovada energia, ela deve repropor a novidade que a anima; trata-se de concretizar uma acção cultural e missionária bem articulada, capaz de demonstrar com gestos e argumentos convincentes que a nova Europa precisa de reencontrar as suas raízes últimas. Neste âmbito, todos aqueles que se inspiram nos valores evangélicos têm uma função essencial a desempenhar e que diz respeito ao fundamento sólido sobre o qual se há-de edificar uma convivência mais humana e pacífica porque respeitadora de todos e de cada um.

É necessário que as Igrejas particulares da Europa saibam devolver à esperança a sua fundamental componente escatológica.38 De facto, a verdadeira esperança cristã é teologal e escatológica, fundada sobre Jesus ressuscitado, que de novo há-de vir como Redentor e Juiz e nos chama à ressurreição e ao prémio eterno.

Jesus Cristo vivo na Igreja

22. Voltando a Cristo, os povos europeus poderão reencontrar a única esperança que lhes dá plenitude de sentido à vida. Também hoje O podem encontrar, porque Jesus está presente, vive e actua na sua Igreja: Ele está na Igreja e a Igreja está n'Ele (cf. Jo 15, 1ss.; Gal 3, 28; Ef 4, 15-16; Act 9, 5). Nela, em virtude do dom do Espírito Santo, continua incessantemente a sua obra salvífica.39

Com os olhos da fé, somos capazes de ver a presença misteriosa de Jesus nos diversos sinais que nos deixou. Está presente antes de mais nada na Sagrada Escritura, que fala d'Ele em todas as suas páginas (cf. Lc 24, 27. 44-47); de modo verdadeiramente único, porém, Ele está presente sob as espécies eucarísticas. Esta « presença chama-se “real” não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».40 De facto, na Eucaristia « estão contidos, verdadeira, real e substancialmente, o corpo e o sangue, conjuntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, Cristo completo ».41 « Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé ».42 Real é também a presença de Jesus nas outras acções litúrgicas da Igreja, que esta celebra em seu nome. Entre elas, contam-se os sacramentos, acções de Cristo, que Ele realiza por meio dos homens.43

Jesus está verdadeiramente presente no mundo ainda de outros modos, especialmente nos seus discípulos que, fiéis ao duplo mandamento da caridade, adoram Deus em espírito e verdade (cf. Jo 4, 24) e testemunham com a vida o amor fraterno que os identifica como discípulos do Senhor (cf. Mt 25, 31-46; Jo 13, 35; 15, 1-17).44

CAPÍTULO II

O EVANGELHO DA ESPERANÇA CONFIADO À IGREJA DO NOVO MILÉNIO

«Desperta e reanima o resto que está para morrer » (Ap 3, 2)

I. O Senhor chama à conversão

Jesus fala hoje às nossas Igrejas

23. « Isto diz Aquele que tem na sua mão direita as sete estrelas e caminha no meio dos sete castiçais de ouro [...], o Primeiro e o Último, que esteve morto e reviveu [...], o Filho de Deus » (Ap 2, 1. 8. 18). É o próprio Jesus que fala à sua Igreja. A sua mensagem é dirigida a todas e cada uma das Igrejas particulares e diz respeito à sua vida interna, a qual regista às vezes a presença de concepções e mentalidades incompatíveis com a tradição evangélica, suporta frequentemente diversas formas de perseguição e, pior ainda, é tentada por preocupantes sintomas de mundanização, perda da fé primitiva, cedência à lógica do mundo. Não é raro ver as comunidades já sem o amor de outrora (cf. Ap 2, 4).

É fácil constatar fraquezas, cansaços, contradições com que se debatem as nossas comunidades eclesiais. Também elas têm necessidade de ouvir de novo a voz do Esposo, que as convida à conversão, desafia-as a ousarem coisas novas e chama-as a comprometerem-se na grande obra da « nova evangelização ». A Igreja deve submeter-se constantemente ao julgamento da palavra de Cristo e viver a sua dimensão humana num estado de purificação para tornar-se cada vez mais e melhor a Esposa sem mancha nem rugas, adornada com uma veste de linho puro e resplandecente (cf. Ef 5, 27; Ap 19, 7-8).

Deste modo Jesus Cristo chama as nossas Igrejas na Europa à conversão e estas, com o seu Senhor e a força da sua presença, tornam-se fonte de esperança para a humanidade.

A acção do Evangelho ao longo da história

24. A Europa foi ampla e profundamente penetrada pelo cristianismo. « Não há dúvida que, na complexa história europeia, o cristianismo representa um elemento central e qualificador, consolidado sobre a base firme da herança clássica e das numerosas contribuições fornecidas pelos diversos fluxos étnico-culturais verificados ao longo dos séculos. A fé cristã plasmou a cultura do continente e entrelaçou-se inextricavelmente com a sua história, de tal forma que esta não seria compreensível se não se referisse aos acontecimentos que caracterizaram primeiro o grande período da evangelização e, depois, os longos séculos em que o cristianismo, apesar da dolorosa divisão entre Oriente e Ocidente, se confirmou como religião dos próprios europeus. Mesmo no período moderno e contemporâneo em que a unidade religiosa se fragmentou ainda mais, tanto pelas novas divisões havidas entre os cristãos como pelos processos que levaram a cultura a separar-se do horizonte da fé, o papel desta última continuou a ser de grande relevo ».45

25. O interesse que a Igreja nutre pela Europa nasce da sua própria natureza e missão. Ao longo dos séculos, de facto, a Igreja manteve laços muito estreitos com o nosso continente, de tal modo que o rosto espiritual da Europa se foi formando graças aos esforços de grandes missionários, ao testemunho de santos e mártires e ao trabalho incansável de monges, religiosos e pastores. Da concepção bíblica do homem, a Europa tirou o melhor da sua cultura humanista, recebeu inspiração para as suas criações intelectuais e artísticas, elaborou normas de direito e, não menos importante, promoveu a dignidade da pessoa, fonte de direitos inalienáveis.46 Deste modo a Igreja, enquanto depositária do Evangelho, concorreu para difundir e consolidar aqueles valores que tornaram universal a cultura europeia.

Consciente disso, a Igreja actual sente, com renovada responsabilidade, a urgência de não dissipar este precioso património mas ajudar a Europa a construir-se a si mesma revitalizando as raízes cristãs que lhe deram origem.47

Para realizar um verdadeiro rosto de Igreja

26. Que a Igreja inteira da Europa sinta dirigida a si mesma este mandamento e convite do Senhor: arrepende-te, converte-te, « desperta e reanima o resto que está para morrer » (Ap 3, 2)! É uma exigência que nasce também da observação do tempo actual: « A grave situação de indiferença religiosa de tantos europeus, a presença de muitos que, mesmo no nosso continente, ainda não conhecem Jesus Cristo e a sua Igreja nem são baptizados, o secularismo que contagia uma ampla faixa de cristãos que habitualmente pensam, decidem e vivem “como se Cristo não existisse”, longe de extinguirem a nossa esperança, tornam-na mais humilde e mais capaz de confiar só em Deus. Da sua misericórdia recebemos a graça e o empenho da conversão ».48

27. Apesar de poder parecer às vezes, como sucedeu no episódio evangélico da tempestade acalmada (cf. Mc 4, 35-41; Lc 8, 22-25), que Cristo dorme e deixa a sua barca à mercê das ondas impetuosas, é pedido à Igreja da Europa que cultive a certeza de que o Senhor, através do dom do seu Espírito, está sempre presente e activo nela e na história da humanidade. Ele prolonga no tempo a sua missão, fazendo da Igreja uma corrente de vida nova que flui dentro da vida da humanidade como sinal de esperança para todos.

Num contexto onde é fácil sentir a tentação do activismo mesmo a nível pastoral, é pedido aos cristãos da Europa que continuem a ser uma transparência real do Ressuscitado, vivendo em comunhão íntima com Ele. Há necessidade de comunidades que, contemplando e imitando a Virgem Maria, figura e modelo da Igreja na fé e na santidade,49 preservem o sentido da vida litúrgica e da vida interior. Deverão antes de mais nada e sobretudo louvar o Senhor, invocá-Lo, adorá-Lo e escutar a sua Palavra. Só assim poderão assimilar o seu mistério, vivendo totalmente orientadas para Ele, como membros da sua Esposa fiel.

28. Perante os repetidos incitamentos à divisão e hostilidade, as várias Igrejas particulares da Europa, fortalecidas nomeadamente pela sua união com o Sucessor de Pedro, devem esforçar-se por ser um verdadeiro espaço e instrumento de comunhão de todo o povo de Deus na fé e no amor.50 Por isso, cultivem um clima de caridade fraterna, vivida na sua radicalidade evangélica em nome de Jesus e no seu amor; criem um ambiente impregnado de relações amigas, intercomunicação, corresponsabilidade, solidariedade, consciência missionária, atenção e serviço; sejam animadas por atitudes de estima, acolhimento e correcção mútua (cf. Rm 12, 10; 15, 7-14), e atitudes também de serviço e apoio recíproco (cf. Gl 5, 13; 6, 2), de perdão (cf. Col 3, 13) e edificação mútua (cf. 1 Ts 5, 11); empenhem-se na realização duma pastoral que, valorizando todas as legítimas diversidades, promova também uma cordial colaboração entre todos os fiéis e as suas associações; relancem os organismos de participação enquanto preciosos instrumentos de comunhão para uma harmónica acção missionária, suscitando a presença de agentes pastorais adequadamente preparados e qualificados. Deste modo as próprias Igrejas, animadas pela comunhão que é manifestação do amor de Deus, fundamento e razão da esperança que não desilude (cf. Rm 5, 5), serão reflexo mais esplendoroso da Santíssima Trindade e também sinal que interpela e convida a crer (cf. Jo 17, 21).

29. Para que a comunhão da Igreja possa ser vivida mais plenamente, é preciso valorizar a variedade dos carismas e das vocações de modo que convirjam cada vez mais para a unidade e possam enriquecê-la (cf. 1 Cor 12). Nesta perspectiva, é necessário por um lado que os novos movimentos e as novas comunidades eclesiais, « pondo de parte toda a tentação de reivindicar direitos de primogenitura e toda a incompreensão mútua », avancem pelo caminho duma comunhão mais autêntica entre si e com todas as outras realidades eclesiais e « vivam com amor e em plena obediência aos Bispos »; e por outro lado que os Bispos, « manifestando-lhes aquela paternidade e aquele amor que são próprios dos pastores »,51 saibam reconhecer, valorizar e coordenar os seus carismas e a sua presença em ordem à edificação da única Igreja.

De facto, com o crescimento da colaboração entre as diversas realidades eclesiais sob a guia amorosa dos pastores, a Igreja inteira poderá apresentar a todos um rosto mais belo e credível, transparência mais clara do rosto do Senhor, e assim contribuir para dar esperança e consolação quer àqueles que a procuram quer a quantos, mesmo não a buscando, carecem dela.

Para poder responder ao apelo do Evangelho à conversão, « é necessário que todos juntos façamos um humilde e corajoso exame de consciência para reconhecer os nossos temores e os nossos erros, para confessar com sinceridade as nossas lentidões, omissões, infidelidades e culpas ».52 Longe de favorecer atitudes abdicadoras que levam ao desânimo, o reconhecimento evangélico das próprias culpas não poderá deixar de suscitar na comunidade a mesma experiência que sente o indivíduo baptizado: a alegria duma profunda libertação e a graça dum recomeço, que permite prosseguir com maior vigor no caminho da evangelização.

Para avançar rumo à unidade dos cristãos

30. O Evangelho da esperança é também estímulo e apelo à conversão no âmbito ecuménico. Na certeza de que a unidade dos cristãos corresponde à vontade do Senhor, tendo Ele rezado « para que todos sejam um só » (cf. Jo 17, 11), e de que aquela aparece actualmente como uma necessidade para haver maior credibilidade na evangelização e um contributo para a unidade da Europa, é preciso que todas as Igrejas e Comunidades eclesiais « sejam ajudadas e estimuladas a considerar o caminho ecuménico como um “caminhar juntos” para Cristo » 53 e para a unidade visível por Ele desejada, de tal modo que a unidade na diversidade brilhe na Igreja como dom do Espírito Santo, artífice de comunhão.

Para que isto se torne realidade, é preciso um esforço paciente e constante de todos, animado por uma esperança autêntica e simultaneamente um sóbrio realismo, tendente à « valorização do que já nos une, à sincera estima recíproca, à eliminação dos preconceitos, ao conhecimento e amor mútuos ».54 Nesta linha, para que o trabalho pela unidade esteja apoiado em alicerces sólidos, há-de incluir a busca apaixonada da verdade, através de um diálogo e confronto que, reconhecendo os resultados alcançados até agora, saiba valorizá-los como estímulo para prosseguir na superação das divergências que ainda dividem os cristãos.

31. Impõe-se continuar com determinação o diálogo, sem render-se às dificuldades e cansaços: o diálogo seja realizado « sob vários aspectos (doutrinal, espiritual e prático) e segundo a lógica de intercâmbio dos dons que o Espírito suscita em cada Igreja, educando as comunidades e os fiéis, principalmente os jovens, a viverem momentos de encontro e a fazerem do ecumenismo, rectamente entendido, uma dimensão ordinária da vida e da acção eclesial ».55

Este diálogo constitui uma das principais preocupações da Igreja, sobretudo nesta Europa que, depois de ter visto nascer demasiadas divisões entre os cristãos no passado milénio, se encaminha hoje para uma maior unidade. Não podemos deter-nos neste caminho, nem voltar para trás! Temos de continuar o diálogo e vivê-lo com confiança porque a estima recíproca, a busca da verdade, a colaboração na caridade e sobretudo o ecumenismo da santidade não poderão deixar de dar, com a ajuda de Deus, os seus frutos.

32. Apesar das inevitáveis dificuldades, convido todos a reconhecerem e valorizarem, com amor e fraternidade, o contributo que as Igrejas Católicas Orientais podem oferecer para uma efectiva edificação da unidade pelo simples facto da sua presença, a riqueza da sua tradição, o testemunho da sua « unidade na diversidade », a inculturação por elas realizada no anúncio do Evangelho, a diversidade dos seus ritos.56 Ao mesmo tempo, desejo uma vez mais asseverar aos pastores, aos irmãos e irmãs das Igrejas Ortodoxas que a nova evangelização não deve de modo algum ser confundida com o proselitismo, sem com isto negar o dever do respeito da verdade, liberdade e dignidade de cada pessoa.

II. A Igreja inteira enviada em missão

33. Servir o Evangelho da esperança com uma caridade que evangeliza é obrigação e responsabilidade de todos. De facto, seja qual for o carisma e o ministério de cada um, a caridade é a estrada mestra apontada a todos e que todos podem percorrer: é a estrada que toda a comunidade eclesial é chamada a percorrer seguindo as pegadas do seu Mestre.

O empenho dos ministros ordenados

34. Em virtude do seu ministério, os sacerdotes são chamados de um modo especial a celebrar, ensinar e servir o Evangelho da esperança. Graças ao sacramento da Ordem que os configura com Cristo, Cabeça e Pastor, os Bispos e os sacerdotes devem conformar toda a sua vida e actividade com Jesus; mediante a pregação da Palavra, a celebração dos sacramentos e a condução da comunidade cristã, tornam presente o mistério de Cristo e, através do próprio exercício do seu ministério, « são chamados a prolongar a presença de Cristo, único e sumo Pastor, actualizando o seu estilo de vida e tornando-se como que a sua transparência no meio do rebanho a eles confiado ».57

Inseridos « no » mundo mas não sendo « do » mundo (cf. Jo 17, 15-16), os sacerdotes são chamados, na actual situação cultural e espiritual do continente europeu, a ser sinal de contradição e de esperança para uma sociedade que sofre de horizontalismo e necessita de abrir-se ao Transcendente.

35. Neste quadro, adquire importância também o celibato sacerdotal, sinal de uma esperança deposta totalmente no Senhor. Não se trata de simples disciplina eclesiástica imposta pela autoridade; pelo contrário, aquele é primariamente uma graça, um dom inestimável de Deus à Igreja, valor profético para o mundo actual, fonte de intensa vida espiritual e de fecundidade pastoral, testemunho do Reino escatológico, sinal do amor de Deus por este mundo e ainda do amor indiviso do sacerdote para com Deus e o seu povo.58 Vivido como resposta ao dom de Deus e superação das tentações duma sociedade hedonista, o celibato não só favorece a realização humana de quem é chamado, mas revela-se um factor de crescimento também para os outros.

Considerado em toda a Igreja como conveniente ao sacerdócio,59 exigido como obrigação pela Igreja Latina,60 sumamente respeitado pelas Igrejas Orientais,61 o celibato revela-se, no âmbito da cultura actual, um sinal eloquente que deve ser preservado como bem precioso para a Igreja. Uma revisão da disciplina actual em tal matéria não permitiria resolver a crise de vocações ao presbiterado que se verifica em muitas partes da Europa.62 Um empenho ao serviço do Evangelho da esperança requer também que, na Igreja, se tenha a peito apresentar o celibato em toda a sua riqueza bíblica, teológica e espiritual.

36. Não podemos ignorar que actualmente o exercício do ministério sagrado encontra não poucas dificuldades, devidas quer à cultura reinante quer à diminuição numérica dos próprios presbíteros com o aumento de encargos pastorais e o cansaço que isso pode comportar. Consequentemente, são ainda mais dignos de estima, gratidão e solidariedade os sacerdotes que vivem, com dedicação e fidelidade admirável, o ministério que lhes foi confiado.63

Retomando as palavras escritas pelos padres sinodais, desejo fazer-lhes chegar, com confiança e gratidão, o meu encorajamento: « Não desanimeis, nem vos deixeis dominar pelo cansaço; em plena comunhão connosco, os Bispos, em jubilosa fraternidade com os outros presbíteros, em cordial corresponsabilidade com os consagrados e todos os fiéis-leigos, continuai a vossa obra preciosa e insubstituível ».64

Com os presbíteros, desejo recordar também os diáconos, que, embora em grau diverso, participam do mesmo sacramento da Ordem. Colocados ao serviço da comunhão eclesial, exercem, sob a guia do Bispo e com o seu presbitério, a « diaconia » da liturgia, da palavra e da caridade.65 E desta forma que lhes é própria, também eles estão ao serviço do Evangelho da esperança.

O testemunho dos consagrados

37. Particularmente eloquente é o testemunho das pessoas consagradas. A este respeito, há que reconhecer antes de mais nada o papel fundamental que teve o monaquismo e a vida consagrada na evangelização da Europa e na construção da sua identidade cristã.66 O seu contributo não deve faltar hoje, num tempo em que é urgente uma « nova evangelização » do continente e em que a edificação de estruturas e laços mais complexos o obriga a uma viragem delicada. A Europa tem sempre necessidade da santidade, da profecia, da actividade de evangelização e serviço das pessoas consagradas. É de assinalar também o contributo específico que os Institutos Seculares e as Sociedades de Vida Apostólica podem oferecer na sua aspiração de transformar o mundo a partir de dentro através da força das bem-aventuranças.

38. O contributo específico que as pessoas consagradas podem oferecer ao Evangelho da esperança tem como ponto de partida alguns aspectos que caracterizam a actual fisionomia cultural e social da Europa.67 Assim, a busca de novas formas de espiritualidade, que hoje surge na sociedade, deve encontrar uma resposta no reconhecimento do primado absoluto de Deus, vivido pelos consagrados através da sua doação total e da conversão permanente duma existência oferecida como verdadeiro culto espiritual. Num meio contaminado pelo secularismo e dominado pelo consumismo, a vida consagrada, dom do Espírito Santo à Igreja e pela Igreja, torna-se sinal de esperança na medida em que testemunha a dimensão transcendente da existência. Por outro lado, na situação pluricultural e plurirreligiosa de hoje, urge o testemunho da fraternidade evangélica que caracteriza a vida consagrada, fazendo dela um estímulo para a purificação e a integração de valores diversos através da superação dos contrastes. A presença de novas formas de pobreza e marginalização deve suscitar a criatividade no cuidado pelos mais necessitados, que caracterizou muitos fundadores de institutos religiosos. Por último, uma certa tendência a fechar-se sobre si mesmo precisa de encontrar um antídoto na disponibilidade das pessoas consagradas a continuarem a obra de evangelização noutros continentes, apesar da diminuição numérica que se verifica em vários Institutos.

O cuidado das vocações

39. Uma vez que é determinante o serviço dos ministros ordenados e dos consagrados, não se pode ignorar a carência inquietante de seminaristas e de aspirantes à vida religiosa, sobretudo na Europa ocidental. Esta situação requer o esforço de todos para uma adequada pastoral das vocações. Sabemos que, « quando é apresentada aos jovens a pessoa de Jesus Cristo em toda a sua plenitude, acende-se neles uma esperança que os impele a deixarem tudo para O seguir, respondendo à sua chamada, e dar testemunho d'Ele aos seus coetâneos » .68 Por isso, o cuidado das vocações é um problema vital para o futuro da fé cristã na Europa e, consequentemente, para o progresso espiritual dos próprios povos que nela habitam; é passagem obrigatória numa Igreja que deseje anunciar, celebrar e servir o Evangelho da esperança.69

40. Para desenvolver uma pastoral vocacional como é necessário, ocorre explicar aos fiéis a fé da Igreja sobre a natureza e a dignidade do sacerdócio ministerial; encorajar as famílias a viverem como verdadeiras « igrejas domésticas », para que nelas seja possível ouvir, acolher e seguir as diferentes vocações; realizar uma acção pastoral que ajude, sobretudo os jovens, a fazer opções por uma vida radicada em Cristo e totalmente dedicada à Igreja.70

Na certeza de que o Espírito Santo continua ainda hoje operante, não faltando os sinais da sua presença, trata-se antes de mais nada de introduzir o anúncio vocacional nos sulcos da pastoral ordinária. Por isso, é necessário « reavivar, sobretudo nos jovens, uma profunda nostalgia de Deus, criando assim o contexto adequado para o desabrochar de generosas respostas vocacionais »; é urgente que um grande movimento de oração atravesse as Comunidades eclesiais do continente europeu, porque « as novas condições históricas e culturais exigem que a pastoral das vocações seja vista como um dos objectivos primários de toda a comunidade cristã ».71 E é indispensável que os próprios sacerdotes vivam e actuem de forma coerente com a sua verdadeira identidade sacramental. De facto, se a imagem que dão de si mesmos for opaca ou esvaída, como poderão atrair os jovens ao mesmo estilo de vida?

A missão dos leigos

41. É imprescindível o contributo dos fiéis-leigos para a vida eclesial; têm na verdade um lugar insubstituível no anúncio e serviço do Evangelho da esperança, porque, « por meio deles, a Igreja de Cristo torna-se presente nos mais diversos sectores do mundo, como sinal e fonte de esperança e de amor ».72 Participantes de pleno direito na missão da Igreja no mundo, os fiéis-leigos são chamados a mostrar como a fé cristã constitui a única resposta cabal às questões que a vida põe a todo o homem e a cada sociedade, e a introduzir no mundo os valores do Reino de Deus, promessa e garantia duma esperança que não desilude.

A Europa de ontem e de hoje conhece presenças significativas e exemplos luminosos de tais figuras laicais. Como sublinharam os padres sinodais, hão-de ser recordados com gratidão, entre outros, os homens e mulheres que testemunharam e testemunham Cristo e o seu Evangelho através do serviço à vida pública e às responsabilidades que esta comporta. É de importância capital « suscitar e apoiar vocações específicas para o serviço do bem comum: pessoas que, a exemplo e com o estilo de quantos são chamados “pais da Europa”, saibam ser artífices da sociedade europeia de amanhã, fundamentando-a sobre as bases sólidas do espírito ».73

Apreço igual é devido à obra prestada por leigas e leigos cristãos, passando frequentemente despercebida na vida ordinária, em serviços humildes mas capazes de anunciar a misericórdia de Deus àqueles que sofrem a pobreza; devemos ser-lhes gratos pelo corajoso testemunho de caridade e perdão, valores estes que evangelizam os amplos horizontes da política, da realidade social, da economia, da cultura, da ecologia, da vida internacional, da família, da educação, das profissões liberais, do emprego e do sofrimento.74 Para isso, são precisos itinerários pedagógicos que tornem os fiéis-leigos idóneos a aplicarem a fé nas realidades temporais. Tais percursos baseados sobre tirocínios sérios de vida eclesial e de modo especial sobre o estudo da doutrina social, devem poder fornecer-lhes não apenas doutrina e motivações, mas também adequadas linhas de espiritualidade que animem o compromisso vital como autêntico caminho de santidade.

O papel da mulher

42. A Igreja está ciente do contributo específico da mulher para o serviço do Evangelho da esperança. A história da comunidade cristã atesta que as mulheres sempre tiveram um lugar de relevo no testemunho do Evangelho. Recorde-se tudo o que elas fizeram, muitas vezes em silêncio e sem dar nas vistas, para acolher e transmitir o dom de Deus, seja mediante a maternidade física e espiritual, a acção educativa, a catequese, a realização de grandes obras de caridade, seja através da vida de oração e contemplação, das experiências místicas e da redacção de escritos ricos de sabedoria evangélica.75

À luz dos valiosos testemunhos do passado, a Igreja exprime a sua confiança naquilo que as mulheres podem fazer hoje pelo crescimento da esperança a todos os níveis. Há aspectos da sociedade europeia contemporânea que constituem um desafio para a capacidade tenaz e desinteressada que as mulheres têm de acolher, partilhar e gerar no amor. Basta pensar, por exemplo, na generalizada mentalidade técnico

científica que deixa na sombra a dimensão afectiva e a função dos sentimentos, na carência de generosidade, no frequente receio de dar a vida a novas criaturas, na dificuldade de viver uma relação de reciprocidade com o outro e de acolher quem é diverso. É neste contexto que a Igreja espera das mulheres o contributo vivificante duma nova onda de esperança.

43. Mas para que isto se verifique, é necessário, a começar pela Igreja, que seja promovida a dignidade da mulher, porque são idênticas a dignidade da mulher e a do homem, criados ambos à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 27) e enriquecidos cada um de dons próprios e particulares.

Para favorecer a plena participação da mulher na vida e missão da Igreja, como foi sublinhado no Sínodo, é desejável que os seus dotes sejam mais intensamente valorizados nomeadamente pela assunção das funções eclesiais reservadas por direito aos leigos. Há-de ser valorizada adequadamente também a missão da mulher como esposa e mãe e a sua dedicação à vida familiar.76

A Igreja não deixa de levantar a sua voz para denunciar as injustiças e violências perpetradas contra as mulheres, sejam quais forem o lugar e as circunstâncias em que aconteçam. Pede que sejam realmente aplicadas as leis que protegem a mulher e sejam adoptadas medidas eficazes contra o uso humilhante de imagens femininas na publicidade e contra o flagelo da prostituição; espera que o serviço prestado pela mãe – e de igual forma o que presta o pai – na vida doméstica seja considerado como contributo para o bem comum, através mesmo de formas de retribuição económica.

CAPÍTULO III

ANUNCIAR O EVANGELHO DA ESPERANÇA

«Toma o livro aberto (...) e come-o» (Ap 10, 8. 9)

I. Proclamar o mistério de Cristo


A Revelação dá sentido à história

44. A visão do Apocalipse fala-nos de « um livro em forma de rolo, escrito por dentro e por fora, selado com sete selos », que estava « na mão direita d'Aquele que estava sentado sobre o trono » (Ap 5, 1). Este texto contém o plano criador e salvador de Deus, o seu projecto detalhado sobre a realidade inteira, sobre as pessoas, as coisas, os acontecimentos. Nenhum ser criado, terrestre ou celeste, é capaz de « abrir o livro e lê-lo » (Ap 5, 3), ou seja, de compreender o seu conteúdo. No meio da confusão dos acontecimentos humanos, ninguém sabe indicar a direcção e o sentido último das coisas.

Só Jesus Cristo entra na posse do livro selado (cf. Ap 5, 6-7); apenas Ele é « digno de tomar o livro e de abrir os seus selos » (Ap 5, 9). De facto, Jesus é o único capaz de revelar e actuar o projecto de Deus, lá encerrado. Abandonado a si mesmo, o esforço do homem não consegue dar um sentido à história e às suas vicissitudes: a vida fica sem esperança. Só o Filho de Deus é capaz de dissipar as trevas e indicar a estrada.

O livro aberto é entregue a João e, através dele, à Igreja inteira. João é convidado a tomar o livro e comê-lo: « Vai e toma o livro aberto da mão do anjo que está de pé sobre o mar e sobre a terra. (...) Toma, come-o » (Ap 10, 8-9). Só depois de o ter assimilado em profundidade, é que poderá comunicá-lo adequadamente aos outros, aos quais é enviado com a ordem de « profetizar outra vez a muitos povos, nações, línguas e reis » (Ap 10, 11).

Necessidade e urgência do anúncio

45. O Evangelho da esperança, entregue à Igreja e por ela assimilado, precisa de ser diariamente anunciado e testemunhado. Esta é a vocação própria da Igreja em todos os tempos e lugares. Esta é também a missão da Igreja hoje na Europa. « Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na Santa Missa, que é o memorial da sua Morte e gloriosa Ressurreição ».77

Igreja na Europa, a « nova evangelização » é a tarefa que te espera! Possas tu reaver o entusiasmo do anúncio! Sente dirigida a ti hoje, ao início do terceiro milénio, a súplica ouvida já nos alvores do primeiro milénio quando em visão apareceu a Paulo um macedónio que lhe pedia: « Passa à Macedónia e vem ajudar-nos! » (Act 16, 9). Mesmo não formulada ou até reprimida, esta é a súplica mais profunda e verdadeira que brota do coração dos europeus do nosso tempo, sedentos duma esperança que não desiluda. A ti, foi dado o dom desta esperança para que, por tua vez, a comuniques alegremente em todo o tempo e latitude. O anúncio de Jesus, que é o Evangelho da esperança, seja por conseguinte o teu título de glória e a tua razão de ser. Persevera, com renovado ardor, no mesmo espírito missionário que, a partir da pregação dos apóstolos Pedro e Paulo e ao longo destes vinte séculos, animou tantos santos e santas, autênticos evangelizadores do continente europeu.

João Paulo II pede referência à herança cristã europeia - 2ª Parte
João Paulo II pede referência à herança cristã europeia - 3ª Parte


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