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Homilia de D. José Policarpo na Solenidade de S. Vicente
2003-01-22 22:05:04

Sé Patriarcal, 22 de Janeiro de 2003

Senhores Bispos,
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Senhores Cónegos,
Senhores Autarcas,
Reverendos Padres e Diáconos,
Irmãos e Irmãs,

Celebramos a Solenidade de S. Vicente, Diácono e Mártir. Padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa, a Cidade sempre o invocou como seu particular protector.


Essa tradição crente é expressa pela tradicional participação dos Autarcas da Cidade nesta celebração e na veneração das relíquias do Santo Mártir. Saúdo o Senhor Presidente da Câmara e todos os Autarcas presentes; invocaremos para a nossa Cidade a protecção de S. Vicente e não podemos, hoje, deixar de dirigir uma prece muito particular pelo eterno descanso do Presidente da Assembleia Municipal, recentemente falecido. A luz de Deus já deu contornos definitivos aos ideais por que lutou.
Na celebração litúrgica de um Santo Padroeiro, podem ser três as fontes inspiradoras da nossa atitude espiritual: a Palavra de Deus, a exemplaridade da vida do Santo, e os acontecimentos presentes particularmente significativos.
A Palavra de Deus, que agora escutámos, lembra-nos a exigência inovadora da vida cristã, dificilmente compaginável com os critérios mundanos da cultura vigente, neste tempo e em todos os tempos. Unidos a Jesus Cristo, pelo nosso baptismo, aceitamos o seu conflito com a ordem vigente, aceitamos os Seus sofrimentos e a Sua morte, aceitamos sofrer e morrer com Ele, porque acreditamos que o Seu triunfo sobre a morte é garantia e promessa da nossa vitória.

O Santo Padre João Paulo II, falando aos jovens reunidos em Roma por ocasião do Grande Jubileu, disse-lhes que ser cristão e seguir Jesus Cristo é, no nosso tempo, aceitar remar contra a corrente, ter a coragem de ser diferente e ser, nessa novidade cristã, profeta de um mundo novo. Jesus avisou os primeiros discípulos: não poderiam esperar aplausos por parte do mundo e da sociedade; poderiam ser até perseguidos por causa da sua fidelidade ao Evangelho. É que em todos os tempos aqueles que corajosamente procuram viver segundo o espírito das bem-aventuranças, denunciam e põem em questão os costumes praticados, as cedências aceites, as ordens estabelecidas. Os cristãos autênticos sempre foram incómodos para a ordem estabelecida. Em Roma defenderam a dignidade dos escravos, enquanto pessoas, denunciaram a licenciosidade dos costumes, puseram em questão a religiosidade politeísta. Em todos os tempos foi a defesa dos pobres e dos oprimidos, a pureza dos costumes, a promoção da justiça que os puseram em confronto com os poderes estabelecidos.

Tantas vezes, ao longo da história, a reacção desses poderes estabelecidos foi a perseguição, dando cumprimento realista à profecia de Jesus. A dureza da perseguição pertence a um passado recente ou é ainda presente. Um recente livro “Os Mártires do Século XX”, escrito com o rigor de um historiador, mostra-nos a dimensão desse holocausto imenso desse século, o século do martírio.
Mas nas sociedades democráticas a perseguição não entra dentro dos parâmetros da tolerância e do respeito pela diferença. A reacção a esse “remar contra a corrente” por parte dos cristãos é cativá-los para que abandonem a exigência de vida, que mitiguem a diferença, e que aceitem como valores aqueles que são praticados pelo comum da sociedade. Esta continua a incomodar-se com a exigência do Evangelho; a sua reacção é a tentativa de converter os cristãos aos critérios do mundo. E é preciso reconhecê-lo, os estragos provocados por esta nova estratégia são mais devastadores do que os da mais feroz das perseguições. Nós os cristãos de hoje temos de ter a coragem dos mártires, não para aceitar a morte, mas para sermos fiéis à exigência do Evangelho que nos interpela à santidade. E como escrevia Paulo aos Coríntios, Cristo será a nossa força e a nossa consolação.

E aqui entra a exemplaridade de S. Vicente, nosso Padroeiro. A sua fidelidade a Jesus Cristo, concretizada no serviço da Igreja no ministério diaconal, teve a expressão máxima no martírio. O martírio só tem sentido no contexto de uma vida descoberta e transformada em união com Cristo morto e ressuscitado. “Para mim viver é Cristo”, confessava S. Paulo. Se encontrámos a vida em Cristo, a fidelidade a Ele é mais forte que a defesa da vida terrena. Os mártires morriam em nome da Vida, porque Cristo é a Vida. O martírio só é possível quando durante toda uma vida, se aceitou morrer para viver, se aceitou sofrer com Cristo, para que a vida seja a consolação que d’Ele brota. O martírio é um hino à vida e à sua dimensão de eternidade.
Peçamos a S. Vicente que interceda por nós, que nos abra o coração para essa dimensão superior da vida, que dê a todos os cristãos desta Diocese a coragem de serem fiéis ao Evangelho, de não terem medo de serem diferentes, a coragem de “remar contra a corrente”, num rio caudaloso que se afastou da sua foz.

E finalmente, a inspiração dos acontecimentos: entra hoje ao serviço da nossa Diocese um novo Bispo Auxiliar, o Senhor D. Manuel Felício, a quem saúdo fraternalmente. Todo o Bispo é um Sucessor dos Apóstolos, enviado por Jesus para anunciar o Evangelho e construir o Reino de Deus. Fa-lo-emos em conjunto, nós os Bispos que Deus enviou à Igreja de Lisboa, em comunhão com o nosso dedicado Presbitério e auxiliados por um já abundante corpo de Diáconos, que escolheram S. Vicente por seu especial patrono, e a quem hoje saúdo com muita amizade. Estamos ao serviço deste Povo, a quem fomos enviados e por quem daremos a vida, se necessário. E amamos esta Cidade. Seria hoje ocasião, se o tempo no-lo permitisse, reflectir sobre a relação do Bispo com a Cidade, uma Cidade de tão longas e arreigadas tradições cristãs, mas por vezes já tão distante do ideal do Evangelho. Estamos na Cidade como serviço e não como poder, embora sejamos instrumentos do verdadeiro poder que interessa respeitar: o de Cristo, Senhor do Tempo e da História. Tenho consciência de que, se valorizarmos as marcas cristãs desta Cidade, que vão desde o património artístico às expressões culturais e aos testemunhos dos seus grandes servidores, serviremos a Cidade como ninguém. Que S. Vicente inspire a quantos sonham uma nova Cidade, e nesses nos incluímos nós, para encontrarem os caminhos da beleza, da alegria, da ordem e da fraternidade.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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