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Homilia do Cardeal-Patriarca na Missa de abertura do Ano Judicial
2003-01-21 21:54:29

1. Mais uma vez, vós, Magistrados, Advogados e Funcionários Judiciais quisestes assinalar a abertura de mais um Ano Judicial com um acto religioso, oferecendo a Deus, por Jesus Cristo, todo o vosso trabalho em prol da justiça e invocando as suas luzes para a administrardes com verdade e rectidão.

A justiça é um valor constitutivo da humanização da sociedade. Ela é a base da harmonia e da paz, garante do verdadeiro exercício da liberdade, condição para que a pluralidade dos direitos e dos projectos dos indivíduos possam convergir na harmonia de uma sociedade digna do homem. Na perspectiva cristã da história, a sociedade definitivamente perfeita será decidida no juízo definitivo de Deus, que porá a claro toda a verdade dos comportamentos humanos. A administração da justiça, porque supõe um julgamento, é o acto humano e social que mais se aproxima desse direito de Deus: de ser o último e definitivo Juiz. Como o de Deus, todo o julgamento justo supõe o discernimento da verdade: a verdade dos factos e a verdade das intenções, tantas vezes escondidas no íntimo da consciência de cada um.
Segundo a doutrina da Sagrada Escritura, que escutámos agora nas leituras proclamadas, a administração da justiça supõe o conhecimento da ordem estabelecida por Deus para o Povo de Israel e para a humanidade, ordem que emana do Seu desígnio, isto é, do Seu plano para a construção dessa sociedade cada vez mais perfeita, a que Jesus chamará o Reino de Deus. Inspiram essa ordem atitudes e valores que são participação da perfeição divina: o reconhecimento da dignidade do homem, mesmo quando ele é inimigo. David poupa Saul, porque ele é o “ungido do Senhor”; todo o homem é criatura de Deus. E Jesus recomenda aos discípulos o amor dos inimigos, pois assim se comportarão como filhos do Pai que está nos Céus. Trata-se de não identificar a pessoa com o seu crime, de o tratar como inocente, até que o seu crime seja provado e julgado; trata-se de lhe reconhecer a sua dignidade como pessoa humana e de guardar na confidencialidade do segredo tudo o que a exigência da justiça não obrigue a tornar público.
Há uma generosidade e nobreza de atitude em quem julga; a administração da justiça não pode ser motivada pela desforra ou pela violência, antes deve ser reposição da verdade. Ela supõe e exige o dom da sabedoria e não apenas a competência dos conhecimentos. Diz o Apóstolo Paulo na Carta aos Efésios: “Peço a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e digno de todo o louvor, que vos dê o espírito de sabedoria e vos mostre a melhor maneira de O conhecerem. Que Ele ilumine o vosso entendimento para poderem descobrir a grande esperança… a riqueza maravilhosa da herança que destinou aos seus escolhidos”. Façamos nossa esta prece, neste momento e nesta circunstância.

2. A promoção da justiça, na nossa sociedade contemporânea, exige, cada vez mais, esta sabedoria. Aquilo a que a Bíblia chama o desígnio de Deus tem de significar o quadro de valores que inspira a vida em sociedade, que têm de ser promovidos e defendidos. A administração da justiça numa sociedade sem ideal e sem projecto, torna-se uma simples repressão do crime e defesa de uns contra os outros. A administração da justiça tem de ser, ela própria, uma promoção de valores, o sublinhar de um ideal; é uma expressão cultural de primeira grandeza, o que nos leva a relacionar a administração da justiça com a promoção da cultura e com os factores que mais poderosamente influem na mutação cultural.
Neste aspecto do discernimento da justiça num determinado quadro cultural, ganha relevo crescente a importância da “opinião pública” e da sua influência na definição da justiça. Já lá vai o tempo em que o quadro de valores de referência, base das leis e da administração da justiça, era definido e promovido por uma elite cultural. Hoje a “opinião pública” envolve, progressivamente, o todo da sociedade, que é o verdadeiro sujeito da cultura e da mutação cultural. Esse é o objectivo das sociedades democráticas, em que cada pessoa é cidadão, participante no destino da comunidade, sujeito de direitos e deveres. A definição de um quadro cultural de referência tornou-se mais complexo e o discernimento mais exigente. Quanto mais a sociedade se tornar o verdadeiro sujeito da “opinião”, mais ela é sujeita a novas influências de grupos e instituições. Num contexto societário em que uma “elite” definia o quadro cultural, as influências provindas de fora desse grupo eram pouco significativas. Quando essa “elite” deu o lugar à sociedade como um todo, as influencias podem tornar-se decisivas, isto é, a “opinião pública” é mutável e mesmo manipulável. É importante, nesse quadro, que os veículos de influência, pessoas ou instituições, veiculem propostas e não imposições, se assumam como serviço, no respeito pela liberdade e pela dignidade das pessoas.
Nesta transformação qualitativa da “opinião pública”, a comunicação tem um papel importante. A mediatização da sociedade, servida por poderosos meios tecnológicos, ganhou uma importância crescente na definição e mutação do quadro de valores de referência.
O seu impacto no discernimento e na administração da justiça está patente a todos nós. Geram-se conflitos entre a confidencialidade exigida pela dignidade da pessoa humana e o desejo de dar publicidade aos acontecimento e problemas. Assistimos a verdadeiras investigações paralelas à investigação judicial, na ânsia de apurar os factos e chegar aos acontecimentos, que são à partida julgados e interpretados.
Não sou daqueles que acham que a Comunicação Social é responsável por todos os problemas da sociedade. Muitos dos seus agentes são fortes promotores de valores e contribuem para um sentido de justiça na sociedade, importante para criar um ambiente positivo que não proporciona o crime e enquadra a aplicação da justiça. Quanto mais forte é o poder de uma força de intervenção social, mais necessária é a referência ética da sua acção. E no caso concreto da Comunicação Social, a exigência ética não se limita ao quadro específico da deontologia profissional; é o próprio quadro de valores de referência da sociedade que fundamenta os parâmetros da exigência ética.
No caso da Comunicação Social esta exigência é particularmente delicada, pois os seus agentes têm poder para intervir na alteração do quadro ético de valores que os deveria enquadrar e julgar a eles. Quem define o quadro de valores, referência para a construção da sociedade, referência para o juízo dos comportamentos? O legislador que faz as Leis? Os tribunais que julgam comportamentos, no âmbito restrito da aplicação da Lei? Os meios de comunicação, que atingem, como ninguém, a consciência das massas? Os cientistas? Os agentes culturais? A Igreja, na sua proposta de ideal evangélico? É evidente que a resposta só pode ser uma: todos, desde que convirjam no “bem comum”. E para que esta convergência seja real, só vejo um caminho sólido, radicado no próprio dinamismo da história humana: a fidelidade à nossa tradição cultural. A vida dos indivíduos é apenas um momento na longa história de uma comunidade; e só esta é o lugar da cultura de um povo. A tradição cultural é como um rio que, a partir da sua nascente, busca a foz que o integrará na imensidão do Oceano. O presente é apenas um momento de afirmação dessa corrente, com água fresca que a fortalece, mas que só será rio se este não se cortar da nascente. Nesta corrente da história o passado é tão importante como o futuro, na edificação de um presente digno da nossa identidade cultural. A largueza de horizontes enquadra a generosidade dos nossos comportamentos. Se é verdade que não há cultura sem justiça, é igualmente verdade que não há justiça sem cultura. E o ponto de referência de uma e de outra, é o homem, dignificado em Nosso Senhor Jesus Cristo. Reconhecê-lo é a própria sabedoria.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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