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Não podemos perder o sentido da Profecia
2003-01-20 20:10:56

Foi em Barcelona, no primeiro simpósio dos ‘cristãos para a Europa’ que isto aconteceu: estava a assembleia a estudar e a votar o ‘manifesto’, quando, a certo passo em que se acentuava a aposta dos cristãos na família, como célula fundamental da Igreja e da Sociedade, alguém pediu a palavra e teceu algumas considerações sobre a situação actual de crise, de desorientação, de vazio, de tal modo que o conceito de ‘família’ se tem alargado, esbatido, esvaziado, sendo então necessário clarificar o que no manifesto se entendia por ‘família’.

O debate acendeu-se durante alguns instantes, tendo então sido muitas as vozes que, concordando, aliás, que o conceito e a realidade da ‘família’ se encontram hoje em crise e haja muitas acepções sobre a ‘família’ neste crepuscular tempo actual, do ponto de vista cristão, porém, há um conceito claro acerca da família, na medida em que o ‘projecto’ de Deus acerca do homem, entendido aqui como a totalidade do ‘género humano’, mas também na particularidade do ‘homem’ e da ‘mulher’, do seu lugar, do seu papel, da sua diversidade, se encontra inalterábel no ‘hoje’ de Deus que perpassa e que se cruza com o ‘hoje’ do homem, mesmo nestas actuais circunstâncias. Por outras palavras, queria sublinhar-se, e assim ficou escrito, que o conceito cristão de família esse não está em crise, mesmo se são poucos, um pequeno ‘resto’, aqueles que hoje o acolhem e o vivem.
Eu próprio tenho falado, já há alguns anos, de crise e de crepúsculo de civilização, e devo confessar que nessa altura o meu discurso soava isolado. Tenho sido considerado por muitos como ‘pessimista’, quando na realidade o que tenho procurado fazer é ler com atenção alguns sintomas de uma viragem de mentalidades que acabam por esbater, por abafar, por dar cabo do humano enquanto tal, do Homem, e, por conseguinte, de subverter as relações intersubjectivas, por minar as bases da própria sociedade. E reporto-me precisamente ao filósofo M. Heidegger, cujas consequências devastadoras da sua ideologia hoje começam a sentir-se, o qual num dos seus escritos propõe que se risque o termo, e por conseguinte, o conceito e a realidade do Homem (Mensch, em alemão), e que se substitua, como ele faz, por um genérico ‘estar aí’ (Dasein), que tanto pode aplicar-se aos humanos, como aos outros entes, e isto em defesa de um aparentemente muito inofensivo projecto de uma ontologia fundamental que pretende denunciar o esquecimento do ser, porque o pensamento ocidental, de tradição judaica e cristã, se fixara nos entes como instâncias epifânicas do ser, mas esquecera o ser. Daí a sua tese, na linha de F. Nietzsche, da desconstrução da metafísica ocidental, e que ocupa superiores reflexões filosóficas do nosso tempo e que encanta os noviços do saber filosófico desde os primeiros dias de entrada na Universidade. Ora isto é tudo menos inocente! Porque tem muito que se lhe diga esta insistente afirmação quer na desconstrução quer na crise da civilização e na era do vazio, à G. Vattimo ou à G. Lipovetsky, porque no fundo se trata de uma outra ideologia, de um mal disfarçado pensamento forte, que induz os incautos a aceitar e a beber seja o que for, para preencher este vazio, de ideias, de projectos, de ideais, uma vez desconstruídos e superados e arrumados os restos da tradição metafísica judeo-cristã.
Paciência, que é preciso tê-la muita nestes tempos complexos. Mas o pior é que isto tem penetrado também em vastos espaços cristãos. Em muitos textos teológicos, e mesmo em fórmulas de oração, no seguimento, mesmo sem o saberem, da proposta heideggeriana, o termo Homem já está riscado! Tradutores da Bíblia, em versões pós-modernas, a passagem de S. João do Ecce Homo, logo se apressam zelosamente a substituir por Eis o ser humano, Eis a pessoa, ou qualquer coisa do género, conceito este que adquiriu direito de cidadania para esbater as diferenças, as distinções, para quedar-se numa genérica ontologia do vazio ou do não ser.
Não, não pode ser. Não podemos perder o sentido da profecia. Mesmo que tudo esteja em crise – há um salmo que diz que mesmo que caiam mil à minha esquerda e dez mil à minha direita, eu permaneço de pé porque Deus está comigo -, na Sagrada Escritura a fé diz-se como sólido fundamento, na pedra angular, que é Cristo, então como talvez hoje pedra rejeitada!... É preciso não esquecer e corajosamente proclamar que Deus tem um projecto para o Homem, um projecto para o homem e para a mulher, para a sociedade, para o futuro, e que tudo está nas suas mãos, mas também que é necessário vivermos no temor de Deus, naquele respeito marcado pelo receio, quase medo, de O ofender, porque é d’ Ele e do seu Ungido que, na força do Espírito, devemos dar testemunho. Somos chamados a ser sentinelas da manhã, profetas da fidelidade, bússulas e não cataventos à mercê das novidades e das ideologias do momento.

José Jacinto Ferreira de Farias, scj
Joseffarias@netcabo.pt

Fonte Ecclesia

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