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Os desafios da Educação em 2003
2003-01-09 21:17:01

“Consciente da sua missão educativa, a Igreja Católica continuará a proporcionar à pessoa a visão cristã do mundo, do homem e de Deus e não se demitirá de continuar a oferecer, com total liberdade, propostas educativas. Assim, ela própria tem consciência de que realiza, de múltiplas formas, uma função educativa relevante na sociedade portuguesa” (Conferência Episcopal Portuguesa, Carta Pastoral, Educação, direito e dever – missão nobre ao serviço de todos, 6 de Janeiro de 2002 - citada, a seguir, como CP - nº 28, p. 32).

Continuam actualíssimas, neste início de 2003, as análises, as reflexões, as propostas e os desafios contidos no documento acima citado, publicado há precisamente um ano. Este documento, para além de situar as análises numa linha de acção concreta, reporta-se aos grandes princípios orientadores da educação, aliando a universalidade à circunstancialidade da realidade portuguesa. Reconhecendo que “a educação em Portugal passa por uma situação de crise” (CP, nº 1, p. 4), e porque a Igreja Católica, em Portugal, prestou sempre uma particular atenção à questão educativa, são assinalados, como pontos de séria preocupação, os seguintes aspectos: “a pobreza dos valores nos projectos educativos; as dificuldades da família; a relação da comunidade educativa familiar com os outros parceiros educativos; a situação crítica de muitas escolas que dificilmente podem responder às exigências do sistema educativo; a problemática ligada à liberdade de ensino e de escolha livre em igualdade de circunstâncias, das escolas e dos projectos educativos desejados; a moderação e complementaridade, pelo Estado, de terceiros intervenientes no processo educativo; a tentação de estatização do ensino; as novas tecnologias da comunicação com a sua capacidade de influenciar a vida das pessoas” (CP, nº 1, pp. 3-4).

Estas preocupações da Igreja, dado que “o momento actual é marcado por transformações profundas na área da educação” (CP, nº 2, p. 4), centram-se na urgência, cada vez mais forte e incontornável, da defesa da pessoa humana, da sua dignidade e dos seus direitos fundamentais, em tudo o que diz respeito à educação, já que “´o homem é o caminho da Igreja´ e a pessoa humana a razão de ser da sua missão” (CP, nº 2, p. 5). Por isso, tem de ser denunciado e recusado, liminarmente, qualquer projecto educativo que afecte “a dignidade extraordinária e inalienável da pessoa como fundamento dos valores” (CP, nº 2, p. 5). Na verdade, a relação pedagógica é um acto ontológico de descentração, mas que se constitui através da centração no homem como pessoa. A acção educativa, como processo intersubjectivo e como acção comunicativa, é das acções humanas mais difíceis, que não deriva de demonstrações, mas, sobretudo, de um despertar e de uma sensibilização. Os educadores têm o dever de mostrar (e não de demonstrar) que toda a acção, individual ou colectiva, supõe compromissos éticos, mesmo quando não se tem consciência disso. A autonomia dos educadores e dos educandos impõe que se distinga (e se manifeste a distinção) entre aquilo que se sabe e os valores em que se acredita. Há, por isso, neste domínio, um caminho essencial a percorrer: desenvolver, no homem, a aspiração a ser pessoa com as outras pessoas, na construção de vínculos de convivência social, em ordem a que todos obtenham a sua realização (“A escola desempenha, hoje, um papel decisivo na transformação dos indivíduos e das suas atitudes” – CP, nº 18, p.20); ao nível da história, a vida humana tem sempre qualquer coisa de sonho e de utopia, como actividade evolutiva e de efervescência criadora para metas sempre renovadas. Educar consiste em oferecer e transmitir um modo de viver e de entender a vida; esta tarefa implica a existência de um projecto de educação e de escola, orientador e congregador dos esforços, da colaboração e da participação de toda a comunidade social, mas em que “a primeira responsabilidade educativa dos pais é irrenunciável e inalienável” (CP, nº 16, p. 18). Por outro lado, “o dever de educar, que pertence primariamente à família, precisa da ajuda de toda a sociedade” (C. Vaticano II, Declaração Gravissimum Educationis, nº 3). Mas, “sozinha, sobretudo hoje, a família não pode realizar uma tarefa tão complexa como é a educação. Para não se demitir e não transferir para outros uma missão que é sua, a família deve ter consciência viva desta realidade, preparar-se e formar-se convenientemente, e ser ajudada neste propósito” (CP, nº 28, p. 31).

Situados num momento precário da História, em que as relações de submissão, de sofrimento, de desprezo para com a dignidade humana e a inviolabilidade da vida estão no centro da existência social e em que o transtorno emocional, a enfermidade moral e o desamparo individual ficam como traços obscuros do nosso tempo, em que a nossa forma de democracia vem sendo subvertida, sendo cada vez mais as vozes daqueles que estão sujeitos à opressão, ficando a acção humana absorvida pelos jogos sociais do mercado, da globalização, da competição, da produção e do consumo, compete à Igreja apostar em propostas de construção de um novo modelo de escola, diferente da do século XX, que valorize a cultura, o esforço, a exigência e a autoridade, apontando estratégias inovadoras através do envolvimento e da participação efectiva das famílias como primeiros responsáveis pela educação dos seus filhos; uma escola como comunidade, onde se construam os saberes, se pratique a amizade, se vivam e descubram os valores a partir do respeito mútuo que a dignidade da pessoa exige, em aprofundamento e integração ante a “proliferação do real”; uma escola eminentemente formativa e não competitiva que evite o flagelo da violência, recusando a objectivação do outro, a visão do homem massificado, como a civilização actual o vem construindo, nas respostas às tensões do desejo e aos antagonismos miméticos instalados nas relações intersubjectivas, reagindo contra a imitação e a indiferenciação; mas uma escola em diálogo com o tempo que passa.

As práticas educativas devem ser capazes de conferir um sentido à existência; é, por isso, inconsciente um projecto educativo que não prepare o cidadão para a complexidade do fenómeno religioso; a importância deste fenómeno e a sua influência na cultura dizem respeito a todos, quer crentes, quer descrentes; neste sentido, no que concerne ao enquadramento curricular de uma disciplina de Educação Moral e Religiosa (cujo objectivo é abrir espaços de comunhão humana em que os alunos se encontrem consigo próprios, numa dimensão de interioridade, em ordem a acolher a proposta da fé como dom, numa abertura à Transcendência – cf. CP, nº 27, p. 30), merece repúdio o tratamento e a consideração que lhe são dados nos desenhos curriculares vigentes, em Portugal, concebidos e estruturados numa perspectiva de massificação cultural e de unidimensionalidade do homem, pois torna-se necessária, em qualquer sistema educativo, uma reflexão séria sobre a dimensão ética do homem e sobre o dinamismo que o envolve no fenómeno religioso. O processo da contingência, o compromisso da liberdade, no seio da experiência do homem no mundo, afirma o homem como tal; e a afirmação da singularidade cristã como realidade que tem e dá sentido, opera-se ao ritmo de uma história que não revela senão progressivamente a sua significação verdadeira. O sentido do Evangelho é o de uma autêntica libertação; através dela, o homem obtém um novo rosto perante o universal, construindo o sentido do Absoluto, num mundo que rompeu com os absolutos.

Compete à educação fazer surgir no espírito dos homens uma atitude nova, de preocupação intelectual e moral, de modo a que construam critérios que permitam que a ignorância não se tome por ciência, na recusa em identificar a entropia com a história humana, numa visão marcadamente existencial. Pois, “só uma visão global do ser do homem, retrospectiva e prospectiva, passada e antecipada, permitirá a organização de um sistema educativo digno desse nome” (M. Antunes, Educação e sociedade, Sampedro, Lisboa, 1973, p. 43).

Por outro lado, o Estado democrático moderno, constituído a partir do Iluminismo, aspira a controlar o sistema educativo, provocando um choque entre o monopólio que quer imprimir ao processo educativo e o pluralismo que caracteriza a sociedade civil; para isso, tem de se ligar a um determinado sistema de valores, atraiçoando, deste modo, a neutralidade em que afirma colocar-se em relação aos próprios valores; um Estado que afirma a sua neutralidade axiológica, em nome de princípios democráticos, põe, ele próprio, em questão um dos supostos básicos da convivência democrática. Por isso, em nome do fundamental direito das liberdades de educar e de aprender e da livre escolha de escola, por parte das famílias, para os seus filhos, “a bem da educação e dos seus objectivos, numa comunidade organizada, participativa e responsável, está vedado ao Estado o monopólio da educação” (Constituição da República Portuguesa, 1976, artº 43º). Deste modo, “a pretensão de uma educação neutra torna-se um dirigismo educativo, inadmissível numa sociedade democrática. Não pode aceitar-se a justificação da neutralidade para satisfazer o pluralismo cultural” (CP, nº 22, p. 23). Na situação actual, é inconcebível que o Estado aproveite o sistema educativo para, através dele, legitimar a ordem moral e o regime político vigente, utilizando-o como instrumento ao serviço da sua estabilidade e desenvolvimento.

Em suma:
1. É consciência universal que a harmonia pessoal e social, necessária a um progresso estável e harmonioso, para todos os homens, exige a educação; esta, constituindo uma tarefa contínua, persistente e englobante, tem como objectivo primordial promover a maturidade humana, na sua multiplicidade de dimensões, através do árduo trabalho de descobrir e orientar as capacidades de cada homem a educar, enquanto ser em construção, numa sociedade multicultural.
2. A Igreja, no decurso da sua história, sempre constituiu um factor de progresso para a sociedade e sempre contribuiu para a causa da educação, empenhando-se, de forma eficaz, na reflexão, na promoção e na participação efectiva em projectos educativos. A escola católica sempre se afirmou como uma escola de qualidade, dotada de um projecto educativo concreto, sustentado nos valores do Evangelho (“um projecto educativo, concebido na perspectiva da síntese entre fé e cultura e entre fé e vida” – CP, nº 23, p. 25 – “A escola católica propõe aos seus educandos um desenvolvimento pessoal, uma intervenção social e uma participação activa e qualificada na construção do mundo e na ordenação da sociedade, segundo o projecto de Deus” – CP, nº 23, p. 25). A escola católica sempre lutou contra a redução da verdade e da visão do homem e do mundo ao horizonte restrito da ciência, com consequências inevitáveis para a identificação do sentido da vida e para o universo ético da ordem dos valores que dinamizam a existência.

3. A evolução complexa da nossa sociedade, caracterizada por lógicas globais e por problemáticas culturais que afectam dimensões fundamentais da existência humana, com repercussões no campo educativo, reclama, em vez do subjectivismo cultural de cada educador, do pragmatismo e de uma monopolista filosofia educativa do estado, novos paradigmas educacionais. De facto, encontramos na sociedade actual, a par de uma onda gigantesca de anomia, de violência, de uma mentalidade de destruição, quer da natureza, quer do homem, um forte dinamismo que reclama que, na identificação da nossa matriz cultural, se busquem caminhos que permitam o encontro de paradigmas de valores estruturantes de projectos de vida, para todos os homens, abertos à pluralidade e contemplando a diversidade das dimensões da pessoa humana, em articulação com a natureza e numa sociedade verdadeiramente democrática, onde exista uma autêntica e responsável liberdade de educação e uma efectiva livre escolha de escola e de projecto educativo, por parte das famílias. Este paradigma educacional constitui um desafio para os educadores contemporâneos, para a sociedade civil, para a Igreja e para o Estado.
4. A Igreja Católica Portuguesa, inserida numa tradição cultural participativa, em comunhão e solidariedade com todos os educadores que, na família, na escola, nas comunidades paroquiais, nos grupos, nas associações, nos movimentos, têm como objectivo construir o homem, à luz do verdadeiro Homem, Jesus Cristo, continua, neste momento histórico, empenhada com o vasto mundo da educação e preocupada com os seus problemas, aporias, insucessos (aumento das desigualdades sociais e frustração de expectativas), globalização e pragmatismo económico, relativização dos valores e, sobretudo, com as suas visões redutoras da pessoa humana, reafirma a validade dos valores evangélicos para a construção de projectos de vida verdadeiramente humanos. Sublinhando os valores da autonomia e da autoridade, da identidade e da solidariedade, do testemunho e da espontaneidade, da transmissão e da apropriação, da continuidade e da ruptura, do tradicional e da novidade, na educação, a Igreja sente, como um serviço, a obrigação de contribuir para a construção não de consumidores passivos de esquemas sociais, mas de autênticos cidadãos, isto é, de homens capazes de comunicar e de comungar com os outros homens, de fazer aceder à cultura e de fazer com que as culturas possam comunicar entre si.

5. A Igreja Católica Portuguesa, em 2003, a partir da sua centração na defesa da pessoa humana e da sua dignidade, no que à educação diz respeito, para além das temáticas e dos problemas acima referidos a que terá de dar resposta, está confrontada com desafios de índole estruturante:
a) a presença da sua mensagem nos meios de comunicação social, enquanto veículos primordiais de educação;
b) a condução das famílias na assunção do seu papel essencial de responsáveis pela educação dos filhos, de modo a que, a partir do seu seio, numa atitude de educação permanente, seja possível, a cada um dos membros que as integram, a descoberta e o cumprimento da sua missão, empenhando-se, numa atitude de participação na vida das escolas, na constituição de Associações de Pais, que se destinem a servir e não a que alguém se sirva delas para alcançar propósitos distantes do projecto educativo escolhido para os filhos;
c) a defesa do direito, legítimo, da presença do ensino religioso na escola pública; a sociedade civil, os valores e a tradição da cultura portuguesa reclamam essa presença e o seu acolhimento com a dignidade adequada;
d) o desenvolvimento e a afirmação da escola católica, empenhada na construção de um projecto educativo próprio, sustentado nos valores do Evangelho, através do qual se dê um claro testemunho da fé, num autêntico compromisso para com a verdade e para com o respeito pela pessoa humana. Exerce, aqui, um lugar de relevo a Universidade Católica que, dotada de identidade própria, vem marcando a cultura superior, em Portugal, constituindo um espaço de elevada qualidade em diálogo com o mundo universitário (português e estrangeiro), na procura de que a formação cultural e a investigação científica estejam ao serviço do bem comum e da pessoa humana, que recusa, liminarmente, ser considerada como simples objecto de investigação; ao compreender que o seu trabalho de investigação é uma parte da história humana que, por seu turno, é uma história de salvação, a Universidade Católica está consciente das suas obrigações especiais em contribuir para a solução dos problemas urgentes com que o mundo se defronta;
e) a promoção da educação da fé, na vida das comunidades e, de um modo especial, nas novas gerações de jovens, através da dinamização de projectos alicerçados em valores espirituais e humanos, em abertura ao que é novo, mas em fidelidade ao que é perene; nesta conformidade, os jovens devem consciencializar-se de que têm na sua mão o seu próprio destino e de que não são meros seres da natureza, nem meros seres sociais, nem uma amálgama destes dois elementos, mas seres espirituais e pessoas, sujeitos livres, realizando, de modo concreto, o carácter de unicidade da existência que os caracteriza.


Lisboa, 3 de Janeiro de 2003
Cassiano Reimão
Representante da CEP no Conselho Nacional de Educação

Fonte Ecclesia

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