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A clonagem Humana
2002-12-29 11:31:53

1 - O número de 27/02/1997 da revista Nature teve uma repercussão notável nos meios de investigação biológica. Wilmut e Campbell, do Roslin Institute, de Edimburgo, publicaram a metodologia que permitiu o desenvolvimento de um ovo de ovelha transformado por clonagem (1).

A ovocitos de ovelha, as células que são percursoras dos óvulos (células sexuais femininas), foram retirados os seus núcleos naturais contendo apenas a metade materna dos cromossomas. Naquelas células foram introduzidos outros núcleos provenientes de células de glândula mamária de um animal adulto da mesma espécie. A ovelha dadora dos núcleos tinha o conjunto de cromossomas (o genoma) modificado no sentido da produção de um leite com uma proteína muito importante para tratar certas doenças da coagulação na espécie humana. O objectivo último era o da obtenção por clonagem de réplicas de animais excretores no leite daquela proteína no sentido da sua produção industrial, visto que a preparação daquela substância pelos métodos clássicos é cara e pouco rentável. Nessa ocasião foram feitas centenas de tentativas análogas no sentido da criação de embriões modificados com características genéticas idênticas às da ovelha clonante, os quais, criados em úteros preparados para os receber, poderiam originar animais produtores da preciosa proteína. Apenas a mediática Dolly atingiu a idade adulta; todos os outros embriões conseguidos por clonagem não lograram animais viáveis. A própria Dolly precocemente envelheceu e já não existe.

A finalidade era, portanto, a produção industrial de um certo tipo de leite a partir de animais geneticamente idênticos obtidos por clonagem. Muitas outras experiências paralelas têm sido feitas em animais de espécies inferiores com sucesso, confirmando o facto, há longos anos demonstrado no mundo vegetal e nos organismos animais simples, da existência de reprodução assexuada. De facto, este tipo de reprodução existe universalmente na natureza em muitos níveis: é o único mecanismo de reprodução nas bactérias; existe, frequentemente de um modo intermitente e descontínuo, nos animais inferiores uni e pluricelulares; existe natural e artificialmente induzida em múltiplos domínios da botânica; e nos mamíferos superiores ficou reduzida à situação excepcional da origem dos gémeos verdadeiros. O objectivo perseguido obcecadamente pelos investigadores é o da produção eficaz e regular de um ou de múltiplos exemplares de um animal superior com a mesma informação genética no núcleo de todas as suas células (2).

A utilização de métodos semelhantes nos mamíferos exige uma tecnologia muito evoluída e uma cuidadosa reflexão científica e filosófica. Estão a dar-se os primeiros passos na interferência intencional nos processos primordiais da transmissão da vida nos organismos vivos das espécies superiores, cujo aperfeiçoamento durou muitas centenas de milhões de anos, certamente através de mecanismos de adaptação por selecção natural semelhantes aos que designamos por “tentativa e erro“, gerando linhas de seres vivos inviáveis ou escassamente adaptados ao seu meio. O estudo da evolução da vida na terra demonstra que a reprodução assexuada (a clonagem) é uma forma primitiva de multiplicação dos seres vivos que foi sistematicamente substituída pela reprodução sexuada a qual permitiu a diversificação e diferenciação das espécies e a criação da enorme variedade genética das populações. Os mecanismos da reprodução sexuada, extraordinariamente complexos, constituem a principal garantia da evolução e da sobrevivência das espécies.

Provavelmente foi-se aperfeiçoando ao longo de centenas de milhões de gerações até se atingirem os processos de transmissão da vida próprios dos mamíferos actuais.
2 – O termo clonagem é um neologismo adaptado da palavra grega “klôn”, que designa “rebento”, “gomo”,
“alporque”, significando o processo de criação e desenvolvimento de seres vivos geneticamente iguais (3).

Estes seres vivos podem ter um organismo com uma única célula; podem mesmo ser apenas material genético que necessita de um suporte biológico permanente de outras células para se manter (vírus); e podem ser organismos do topo superior da escala animal. É do conhecimento geral o facto de, desde tempos imemoriais nos domínios da Botânica, se conseguirem facilmente plantas semelhantes às de um modelo original dotado de certas características particulares. Nestes casos, os mecanismos naturais da reprodução sexuada não permitiriam a conservação dos caracteres favoráveis. Estes apenas podem persistir através de artifícios nas gerações subsequentes.

Os organismos dos animais superiores são constituídos por biliões ou triliões de células que se desenvolveram a partir de uma única célula original, designada por ovo ou zigoto, cujo património genético foi transmitido em igual proporção pelas duas linhas progenitoras. O ovo e as células resultantes das primeiras divisões celulares que irão gerar o embrião, são células totipotentes, isto é, com capacidades de diferenciação em todas as centenas de linhas celulares constituintes dos órgãos dos indivíduos adultos. À medida que se processa o desenvolvimento, as células vão-se diferenciando em cada tecido a seu modo para constituírem os múltiplos órgãos do organismo.

Diferenciando-se, vão perdendo a capacidade de se transformar noutras linhas celulares, em parte por alterações cromossómicas ainda incompletamente esclarecidas. Algumas linhas de evolução celular durante a formação dos organismos perdem mesmo precocemente a capacidade de se multiplicar, como a maior parte das células do sistema nervoso.

Nalguns animais, as células geradoras das células sexuais femininas – os ovocitos ou oocitos – portadoras apenas da metade materna dos cromossomas dos indivíduos adultos, são susceptíveis de permitir a viabilidade de um ser vivo obtido por clonagem, substituindo-se o seu núcleo (dito haplóide por apenas conter metade dos cromossomas do indivíduo adulto), por um núcleo com a carga genética completa (dito diplóide) obtido a partir de uma célula de um organismo constituído (embrião ou adulto). Foi o que foi tentado com êxito no Roslin Institute, gerando a Dolly.
A clonagem exige a substituição ou a inactivação do núcleo de uma célula totipotente (de um ovocito, de um ovo ou de outras células com estas características) e a transnucleação de uma célula de um ser da mesma espécie contendo material genético completo que faculte a sua viabilidade. Cada ser vivo da escala superior da diferenciação possui um património genético único impresso no núcleo de cada célula. Excepcionalmente, os gémeos homozigóticos, derivados de um único ovo e diferenciando-se em dois ou mais seres a partir de células criadas nas primeiras divisões, possuem os mesmos genes. Os seres vivos derivados de reprodução assexuada conservam quase íntegros os seus caracteres genéticos em sucessivas gerações, mantendo, no entanto, certas formas de adaptação de outro tipo. Os animais obtidos por clonagem têm também, por artificio, os mesmos genes dos seres que lhes serviram de modelo no núcleo de cada célula. O desenvolvimento de um embrião de mamífero deste modo originado exigirá também as condições ambientais características de cada espécie. Nos mamíferos superiores exigirá, pelo menos, um útero e um meio interno próprios.

3 – As células que resultam das primeiras divisões do ovo são, como se deixou dito, totipotenciais, também designadas por células do tronco comum. Isto é, têm a capacidade de se dividir originando outras que se podem diferenciar nos múltiplos tecidos dos órgãos que constituem o indivíduo adulto. A designação científica é a de células estaminais embrionárias. O isolamento e a preparação de culturas destas células na espécie humana implica necessariamente a produção artificial de embriões humanos ou a utilização de embriões crioconservados excedentários de tentativas de fertilização in vitro. Envolve também indução do desenvolvimento das primeiras fases dos embriões até às fases de blastocito, a separação das massas celulares que contêm as células totipotenciais (o que significa necessariamente a destruição dos embriões), a cultura de tecidos dessas células em ambiente nutritivo adequado e o desenvolvimento das linhas celulares capazes de se multiplicarem indefinidamente conservando por longos períodos as características de células com capacidades de diferenciação. Estas podem ser objecto de clonagem com material genético obtido de células de organismos humanos adultos.

A publicação das informações relativas a estes domínios científicos inflamou o mundo tecnológico biomédico, farmacêutico e certa indústria; e começa a ter repercussão nos media. Estão criadas expectativas para a utilização desta tecnologia na terapêutica de muitas doenças que implicam a substituição de órgãos doentes e na cura de doenças genéticas através do desenvolvimento de linhas celulares e de tecidos diferenciados obtidos por clonagem ou por manipulação genética, partindo de células estaminais embrionárias humanas, tornando-as, por várias técnicas, compatíveis com organismos humanos plenamente desenvolvidos.

Noutras linhas de investigação, ao longo dos últimos trinta anos, foram descritos em vários órgãos de indivíduos adultos, células que mantêm capacidades de diferenciação, isto é, células estaminais com capacidades de reproduzirem tecidos dos órgãos maduros onde foram identificadas. Em anos mais recentes foram mesmo isoladas células estaminais multipotentes capazes de se diferenciarem segundo linhas celulares diferentes das dos órgãos originais. Foram descobertas células viáveis com estas características no sangue do cordão umbilical e na placenta, na medula óssea, no sistema nervoso e no tecido conjuntivo de certos órgãos (mesentério). Estas células foram isoladas e foram desenvolvidas em cultura de tecidos; foram mesmo descritas e utilizadas algumas das substâncias reguladoras do seu crescimento e da sua diferenciação em certas linhas celulares. Através de técnicas semelhantes, é comum no nosso país a reconstrução de todas as células do sangue após a destruição da medula original em doentes atingidos por certas doenças hematológicas. Noutros domínios existem algumas indicações de que é possível guiar o desenvolvimento de células estaminais obtidas a partir de organismos humanos adultos no sentido da sua diferenciação em células do sistema nervoso – em células nervosas e em células da glia (células de sustentação das células nervosas) - bem assim como em células de outros tecidos constitutivos da pele, do músculo periférico, do coração, do pâncreas e do rim.

4 – As informações provenientes destes domínios científicos devem suscitar debates aprofundados porque abordam os mecanismos mais íntimos da transmissão da vida. Aplicadas à vida humana colocam questões que exigem uma reflexão ética suplementar. Desde logo se identificam duas áreas onde a clonagem de células humanas é susceptível de utilização.
Uma primeira área é a da “clonagem reprodutora”, isto é, a clonagem de células humanas totipotenciais com material genético clonante proveniente de outro ser humano com o objectivo de produzir um embrião viável através da utilização de um útero de uma mãe hospedeira. Existe o consenso generalizado que este tipo de intervenção não tem interesse científico e não tem nenhum suporte ético. Foi explicitamente banida da legislação da maior parte dos países com capacidade cientifica para esta proeza (4,5,6), apesar de algumas vozes publicamente se declararem com capacidade para ultrapassar a condenação de tal prática. No nosso país, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida manifestou-se formalmente contra a clonagem reprodutora humana e a Assembleia da República acolheu o seu parecer. A clonagem reprodutora exigiria a destruição deliberada de embriões humanos (visto ser muito pouco provável que células multipotentes com outra origem possam originar embriões viáveis) e representaria a máxima instrumentalização de um ser humano(7).

Na verdade, que maior limitação da dignidade de um ser humano poderá existir do que a estigmatização deliberada e artificial do material genético de todas as suas células, mesmo antes da sua concepção? São enormes as probabilidades de criação de embriões inviáveis por clonagem. Como também a probabilidade de malformações que viessem a manifestar-se durante a vida embrionária ou durante a vida adulta. E, ainda que o embrião fosse viável, como seria a sua vida privada, necessariamente condicionada, observada, manipulada e distorcida mesmo antes da sua concepção? E haveria qualquer espécie de legitimidade para limitar a vida e as gerações futuras desse ser humano portador de material genético manipulado, dado que nestas intervenções necessariamente existiriam fortes possibilidades de alterações fortuitas do genoma ou de inibição de certos mecanismos protectores do património genético?

Muitos argumentos existem a favor da “clonagem terapêutica”. Há um enorme potencial terapêutico na utilização de células pluripotenciais humanas adultas. Prevê-se a sua transformação em múltiplos tecidos, através da identificação e utilização dos factores de crescimento e de diferenciação específicos de cada órgão. Existem actualmente muitas doenças mortais nas quais a utilização de células pluripotenciais humanas pode permitir uma terapêutica definitiva. Num futuro próximo é possível que intervenções semelhantes possam salvar doentes com lesões hoje tidas como irreversíveis no sistema nervoso central, no coração, no fígado e no rim.

Em muitas circunstâncias não será possível a utilização de células multipotenciais dos próprios doentes para reconstrução dos seus órgãos. A clonagem de células multipotenciais humanas permitirá o desenvolvimento de tecidos compatíveis com o dador do material genético. As células multipotenciais humanas existentes no cordão umbilical, no sangue placentário e eventualmente noutros territórios são susceptíveis de desenvolvimento em cultura de tecidos; são susceptíveis de clonagem ou de modificação das proteínas das suas membranas exteriores com o objectivo da criação de tecidos imunologicamente compatíveis com os organismos adultos.

As células embrionárias são neste momento do desenvolvimento científico as que mantêm a maior capacidade de diferenciação. Não é lícita, porém, a utilização de células totipotenciais originárias de embriões humanos dadores porque esta atitude implica necessariamente a sua destruição. O embrião humano é titular de um destino específico que se irá expressando ao longo da sua evolução segundo um processo contínuo desde a sua concepção até à morte. Cada embrião merece a mesma protecção e o mesmo respeito que uma pessoa humana: toda a investigação a que for submetido deve ser feita em seu favor e não pode ser instrumentalizado segundo interesses alheios. Outra atitude representa um atentado à dignidade dos seres humanos. Se em alguém persistir a dúvida sobre a natureza última do embrião humano, ainda assim, tem que considerar o princípio ético da ilicitude de uma intervenção destruidora numa entidade sobre cuja natureza e titularidade de direitos subsistem dúvidas.

É urgente que se debatam publicamente os aspectos éticos e legais relativos à clonagem de células humanas. A sociedade tem obrigação de prever as consequências úteis e as eventuais consequências perversas que possam resultar das aplicações impróprias do progresso científico em todos os domínios, nomeadamente nos que se referem à protecção da vida humana. Nestes domínios não pode aceitar-se passivamente o afrontamento com factos consumados.

Alexandere Laureano Santos
Membro da Comissão de Consultores da Comissão Episcopal das Comunicações Sociais

Bibliografia
1 – Wilmut I et al. Viable offspring derived from fetal ans adult mammalian cells. Nature 1997; 385: 810-13.
2 – Archer L. Clonagem – verdade científica ou sonho mítico. Brotéria Genética 1999; XX (XCV): 101-24.
3 – Domingues, B. Clonagem e algumas perspectivas éticas. Acção Médica 2000; LXIV: 15-23.
4 – Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Parecer 21/CNECV/97 sobre “Implicações Éticas da Clonagem”. in Documentação IV, Lisboa. 1998, pp 37-38.
5 – Comité Consultif National d’Éthique pour les Sciences de la Vie et de la Santé. Réponse au Président de la Republique au sujet du clonage reproductif. Paris 1997.
6 – Group de Advisers on the Ethical Implications of Biotechnology to the European Comission. Opinion number 9 on the ethical aspects of cloning techniques. Bruxelas, 1997.
7 – Osswald W. Hallo, Dolly, Hans Jonas e seis caveats. Brotéria 1997; 144: 581-5.

Fonte Ecclesia

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