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Herança cristã da Europa
2002-12-12 19:59:24

A «Europa cristã» é um facto, mais do que evidente, incontestável. Porém, as resistências a esta identificação resultam, em parte, de uma percepção sobre o papel que as instituições religiosas exerceram de domínio, considerado como esmagador. O que também é inquestionável, ainda que não seja só a estas que se possa fazer tal reparo.

De qualquer modo, essa herança pode-se aperceber na existência de uma grande pluralidade, numa fortíssima diferenciação que as vicissitudes da própria experiência cristã possibilitaram.

Contudo, será sempre difícil querer forçar institucionalmente aquilo que as identidades mais íntimas de cada um não conseguem formular e assumir. Isto é, a herança cristã do universo europeu não é uma simples questão de património cultural ou, mesmo, religioso. Não é só pelo número dos que hoje se identificam objectivamente como cristãos que depende a matriz cultural e religiosa da Europa. A herança cristã depende em grande medida da capacidade que as pessoas e os grupos têm de olhar para a realidade e de lidar com ela.

Colocando a questão de outro modo: em que é que as pessoas se revêem como cristãos na sociedade em que participam e que ajudam a construir?
Podem-se sublinhar alguns aspectos que, amplificando a própria concepção do religioso, apontam para a realização espiritual e material de uma sociedade onde, mais do que o papel das dinâmicas institucionais, contam o horizonte de realização pessoal e social.
No universo europeu, apesar de todas as lutas fratricidas, foi possível afirmar-se paulatinamente, mas com legitimidade, uma pluralidade confessional, no interior da mesma realidade social, não só étnica mas individualizada. Este pluralismo não resultou só de uma dinâmica exterior, mas da capacidade que as diversas comunidades têm desenvolvido no lidar com o outro não como o herege ou o infiel, mas como aquele que transporta parte da verdade. Apesar da lentidão da reacção e evolução das instituições religiosas, estas deram muitas vezes também importante contributo a este percurso, na medida em que assumiram este mesmo desiderato vivido como abertura ecuménica.

Esta dimensão não será propriedade de ninguém, mas uma hipótese em devir, fornecendo à Europa uma exigência que resulta da fidelidade ao seu próprio percurso civilizacional.
É, neste contexto, que podem ser equacionadas duas outras dimensões fundamentais: a pessoa e a democracia, fundamentais para a vivência da experiência cristã.
O entendimento da pessoa como a individualidade em relação assenta na percepção trinitária, em que a perspectiva crística (ao modo de Jesus) da vivência de Deus conduz à valorização da relação humana. Nenhum homem ou mulher, velho ou criança é prescindível. O outro não é só uma necessidade, mas imprescindível a existência de cada um.

É este ser em relação que constitui o fundamento antropológico, mais do que qualquer ideologia, da democracia. Esta corresponde ao entendimento da sociedade como expressão do desejo de comunhão humana, entendida esta como relação entre cidadãos iguais e como relação com Deus-Pai, que torna uns e outros irmãos e desafia à fraternidade.
Se o funcionamento democrático se baseia no exercício do poder por maiorias, estas são sempre relativas. A pluralidade anteriormente referida remete para a transitoriedade destas maiorias, pois são sempre compostas por múltiplas minorias que, estas sim, legitimam o exercício do poder dos que se juntam para exercer tarefas comuns - perspectiva evangélica do poder como serviço, e serviço aos outros. Por isto mesmo, a participação política dos cristãos é tão determinante.

Contudo, não basta exercer funções, está sempre em jogo o modo como são exercidas, sobretudo como percurso e como busca de aperfeiçoamento pessoal e social.
Qualquer um destes horizontes de realização pessoal e social são parte dessa herança cristã, reactualizada e permanentemente recriada por muitos cristãos que no seu quotidiano tornam patente a mensagem cristã, não tanto por esta ser uma doutrina, mas como encarnação de um «viver em Deus».

Se a beleza estética de monumentos de pedra, de literatura ou de música avivam um passado dessas comunidades e dessas experiências de fé cristã, o futuro, em grande medida, surge como um horizonte aberto de novas possibilidades. A maior herança cristã da Europa joga-se na capacidade desta ser uma terra de acolhimento, de atenção e de cuidado para com o resto do mundo, preocupada com a justiça e a paz, não confinada a barreiras ideológica mas dinamizando uma cultura capaz de dialogar com as possibilidades do viver humano.

António Matos Ferreira
Professor de História da Igreja
Lisboa, 09 de Dezembro de 2002

Fonte Ecclesia

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