paroquias.org
 

Notícias






Liberdade Religiosa e Direitos Humanos
2002-12-03 21:33:25

1. Com a Declaração “Dignitatis Humanae” o Concílio Vaticano II reconheceu o direito à liberdade religiosa, colocando um marco determinante para o pensamento e a prática católicos nesta matéria. Se a Encíclica “Pacem in Terris”, cujos quarenta anos nos preparamos para celebrar, traduziu a aquisição irreversível para a consciência católica do significado nuclear de direitos fundamentais decorrentes da dignidade humana, a Declaração Conciliar não só confirma essa visão, como vai mesmo à raiz mais funda desses mesmos direitos, pondo no centro a pessoa humana e o seu carácter inviolável.

Com efeito, ao reconhecer o direito social e civil a não ser coagido em matéria religiosa, quer isso vá no sentido da adesão crente quer se exprima na recusa de qualquer opção de ordem religiosa, o Vaticano II colocou o acento na consciência inviolável da pessoa humana. O Concílio foi assim capaz de distinguir entre o erro, que é sempre de rejeitar, e a pessoa que erra, mas cuja consciência deve ser respeitada até ao fim. Ao mesmo tempo apontou como critério orientador de todo o agir nesta matéria a convicção básica de que a verdade só se pode impor pela sua própria força (DH 1). Sobretudo afirmou inequivocamente que a busca da verdade deve ser feita de modo correspondente à dignidade humana (DH 2), envolvendo por isso mesmo uma decisão livre em consciência, esse lugar inviolável em que a pessoa humana está só diante do Mistério que chamamos Deus.
Com isso o Concílio colocou parâmetros elevados (ainda não completamente assimilados!) para o próprio agir interno eclesial em termos de afirmação da verdade. Lançou também bases novas para o diálogo ecuménico e para o diálogo inter-religioso. Sobretudo apontou o horizonte no qual a afirmação e a busca de realização cada vez mais plena dos direitos humanos encontra o seu fundamento mais sólido e irreversível.

2. Sem dúvida que a afirmação moderna de direitos humanos fundamentais assenta em princípios de racionalidade, de percepção racional daquilo que constitui a dignidade humana. Ainda que seja legítimo ver nos direitos humanos uma linguagem secularizada relativa a valores decorrentes de princípios cristãos, não há dúvida, porém, que a afirmação de direitos humanos não constitui património exclusivo cristão. Estamos, na verdade, diante de um processo de consciencialização do viver humano que, a pouco e pouco e não obstante muitas contradições teóricas e práticas, assenta em bases de simples humanidade e é (pretende-se que seja!) património o mais universal possível.
Todavia, não é difícil admitir também como é (continua a ser) frágil a afirmação de direitos humanos tanto a nível do próprio reconhecimento formal como sobretudo em termos práticos. O reconhecimento de uma dignidade humana inviolável, a respeitar em todas as situações e circunstâncias, pode apresentar-se com uma certa evidência, mas isso não significa que seja algo sentido e praticado como critério incondicional e irrenunciável em todos os comportamentos humanos.
Doutro modo, como seria possível continuarmos a viver num mundo que tanto fala de direitos humanos e que ao mesmo tempo manifesta, mesmo na sua parte dita mais civilizada, tantas formas grosseiras de desrespeito pela dignidade humana e tanta insensibilidade perante as situações de milhões de pessoas, a quem é negado o direito elementar às condições mínimas de vida? Será que a simples racionalidade chega para questionar os pressupostos desta situação, para pôr em causa os critérios dominantes de vida, para perceber a desumanidade que se continua a praticar? E porquê se há-de respeitar incondicionalmente, sempre e em todas as circunstâncias, a pessoa e seus direitos inalienáveis, quando a vida humana parece inútil, quando o ser humano surge com graves deficiências, quando a pessoa se torna um grande peso social, quando os conflitos desembocam em inimizade mortal?

3. Não será difícil reconhecer que, neste ponto, são manifestamente insuficientes os simples imperativos éticos ou os meros apelos de racionalidade humana. É preciso ir mais fundo: sem uma pergunta pelo sentido último do viver e do morrer, sem uma abertura ao Mistério que suporta o viver humano, será difícil, senão mesmo impossível, respeitar incondicionalmente e até ao fim a dignidade humana em todos os seus pressupostos e consequências. Só na atitude profunda de reconhecimento de que o outro, em qualquer situação que se encontre, é uma pessoa amada por Deus, é sempre “filho de Deus”, é que há um fundamento absoluto para a afirmação incondicional da dignidade da pessoa humana e sua inviolabilidade. Encontra-se aqui, como apontou João Paulo II, algo de essencial na identidade e na missão cristãs : “Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui a tarefa essencial, diria mesmo em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, é chamada a prestar à família dos homens (Christifideles Laici, 37).

4. A questão dos direitos humanos não é, pois, deslindável do sentido último que queremos dar ao nosso viver pessoal e colectivo como pessoas humanas, o que evidencia como há uma relação estreita entre liberdade religiosa e direitos humanos. A afirmação autêntica da liberdade religiosa pressupõe uma abertura à profundidade e à totalidade do Humano, constituindo-se no grande pressuposto que permite compreender e respeitar até ao fim a pessoa no que ela é, em todas as dimensões do seu viver.

Pode dizer-se assim que, onde não se respeita a liberdade religiosa, onde não se dá espaço a essa busca e decisão de consciência em matéria religiosa, outros direitos fundamentais também não são respeitados plenamente e até ao fim. A forma como se fomenta o respeito pela liberdade religiosa é um bom barómetro para se avaliar, numa sociedade em concreto e também em termos de autoridades políticas, como vão o reconhecimento e a prática dos direitos humanos numa determinada situação.
Mas para que isso seja mesmo verdade em todos os seus aspectos, é preciso também que a Igreja (as Igrejas) e os cristãos cumpram com fidelidade as suas responsabilidades. Desde logo percebendo que educar para o sentido da liberdade religiosa é educar para uma consciência apurada de todos e de cada um dos direitos humanos fundamentais. Depois, tomando consciência de que a sua legítima exigência de respeito pela liberdade religiosa não se pode situar como algo isolado, mas se insere na afirmação dos direitos humanos na sua totalidade. A Igreja só tem credibilidade na afirmação do direito à liberdade religiosa quando se apresenta como a primeira defensora de todos os direitos humanos fundamentais. E, nunca se pode esquecer, toda a defesa da liberdade religiosa não pode deixar de colocar com honestidade a pergunta pelo respeito integral dos direitos humanos no seio da própria Igreja.
A recepção no Concílio nesta matéria da liberdade religiosa e do que significa o seu reconhecimento em todas as consequências encontra-se ainda muito longe de estar concluída. E isso tanto na vida interna da Igreja como no testemunho que os cristãos são chamados a dar no mundo em que vivemos.

José Eduardo Borges de Pinho
Professor UCP

Fonte Ecclesia

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia