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Em nome da fraternidade
2002-12-01 09:52:22

Glória ainda se recorda do dia em que uma vizinha cabo-verdiana, a Eugénia, lhe gritou à porta da barraca: «Irmãzinha, depressa, venha depressa que estão a cortar a luz.» Ciclicamente, os funcionários da EDP aproveitavam o facto de, pela manhã, a maioria dos moradores da Quinta da Serra estarem a trabalhar, para cortarem milhares de cabos eléctricos de ligação clandestina que, como uma teia, cruzavam os telhados escapulindo-se pelo interior das precárias habitações.

Há dois anos, uma semana depois de ter regressado do Níger, a irmã Glória via-se assim envolvida em mais uma luta das pessoas daquele bairro clandestino no Prior Velho, situado às portas de Lisboa, junto à auto-estrada do Norte, e que já havia sido sobressaltado pelas máquinas da Câmara de Loures, que derrubavam casas ao acaso, sem contemplações pelos pertences pessoais e mobílias. Não era, pois, a primeira vez que a fraternidade - é assim que as Irmãzinhas de Jesus designam as suas comunidades - partilhava os mesmos problemas daquela população, maioritariamente africana. «Mas desta vez os vizinhos decidiram não deixar para trás o que já vinham reivindicando há muito tempo à Câmara, a colocação legal da electricidade nas suas casas», lembra a freira que, na tarde daquele dia, já integrava uma comissão espontânea junto da EDP e do município, «iniciando assim um processo que conduziu à instalação da luz no bairro», no qual ainda vivem cerca de duas mil pessoas que desesperam por um realojamento, prometido há mais seis anos, mas logo interrompido após a Expo-98.

Não muito longe dali, na Quinta da Flamenga, um dos imensos bairros municipais de Chelas, a algazarra das brincadeiras das crianças invade o silêncio da capela onde Maria do Carmo se recolhe depois de um dia de trabalho nas limpezas. Esta antiga professora primária só vive ali há um ano, mas o ambiente não lhe é estranho. Em Lisboa, já conheceu a Curraleira e o Bairro Alto. Maria do Carmo mora agora no apartamento de um prédio de quatro andares com outras três irmãzinhas - Aida Maria e a francesa Ivette, que estão reformadas, e Casimira, que, aos 56 anos, está à procura de emprego, depois de ter trabalhado numa pastelaria em Lisboa. «A nossa presença passa por aquilo a que eu chamo a opção pelos «gestos banais». Visitamos as pessoas, ajudando-as nas mais diversas dificuldades, como tratar de um documento ou apoiar alguém na consulta num hospital. Há muita solidão, idosos abandonados, famílias africanas desenraizadas e muitos conflitos resultantes de vidas desfeitas devido à toxicodependência.» As palavras de Maria do Carmo pretendem tão-só trazer à tona um quotidiano a que estas quatro freiras se dedicam a acudir. Muitas vezes são elas quem estabelece redes de solidariedade, como aconteceu com uma mulher acamada, «totalmente incapacitada, que vive sem ninguém», e cuja existência a própria vizinhança desconhecia. «Avisámos uma vizinha da situação, que depois foi passando a palavra a outras, e a partir daí a senhora nunca mais ficou sozinha», anota, sublinhando contudo que ao escolherem viver nestes meios «as irmãzinhas não pretendem transformar-se nuns pobres a mais». «A nossa vocação só tem sentido pelo facto de, ao assumirmos a vida dos mais desprezados, pretendermos lutar com eles pelo reconhecimento da sua própria dignidade, sem nunca assumirmos uma função assistencialista», diz, para evocar com satisfação a presença no bairro de um grupo de universitários que, através do conhecimento da fraternidade, decidiu apoiar crianças com dificuldades escolares, fazer limpezas em casa de doentes ou simplesmente visitar algumas famílias.

Há cinquenta anos em Portugal, as Irmãzinhas de Jesus já deixaram o rasto da sua presença em algumas das zonas mais problemáticas de Lisboa - Casal Ventoso, Bairro Alto, Curraleira, onde chegaram a participar na fundação de uma cooperativa de habitação - e ainda no Alentejo e na Beira Baixa, em S. Romão, junto do operariado têxtil. Não habitam em conventos nem têm clausura nas suas fraternidades. Nem possuem bens. E o seu sustento é apenas garantido pelo trabalho de cada uma das irmãzinhas. «O nosso modelo de vida é a experiência feita por Jesus em Nazaré - trabalhando como um qualquer operário, optou pelos menos considerados da sociedade», diz Viviane, antiga operária têxtil em S. Romão durante dezoito anos, agora a exercer as funções de coordenadora das quinze irmãzinhas em Portugal, das quais a mais nova tem quarenta anos. Mas este pequeno número não preocupa esta italiana de Milão. «O apelo de uma vida simples e despojada pode ser seguido por todos os cristãos. E se a Igreja conseguisse assumir este espírito, seria bem mais importante do que o facto de termos muitas vocações.» Viviane sabe do que fala. Viveu em 1978 e 1996 os mesmos problemas das mil e trezentas colegas de uma fábrica têxtil. «Estive sempre ao lado de cada luta. Fui uma desilusão para a entidade patronal, que julgava que uma freira iria sempre tomar partido ao lado do mais forte».


Mas com ela isso não aconteceu. Tomou parte em todas as greves - «primeiro por salários justos e mais tarde pela defesa de direitos, como o pagamento de salários que chegaram a estar nove meses atrasados». Estava sindicalizada e ainda foiconvidada para delegada sindical, mas não aceitou. «A nossa atitude nunca é a de tomarmos lugares de liderança. Não se recusam as causas justas, mas agimos sempre entre os que são desconsiderados». Inicialmente, a opção desta freira não foi bem vista pela comunidade católica local. «Apenas conheciam uma Igreja que estava sempre do lado dos que «estavam bem», anota, para reconhecer que o tempo conseguiu inverter a atitude dos cristãos de S. Romão. Agora, em Fátima, onde Viviane reside com mais cinco companheiras, o dia é inteiramente dedicado à olaria, «sem naturalmente deixar de acolher quem nos procura, a exemplo do que fazemos nos bairros onde vivemos», acentua Viviane. Durante o dia, uma mesa de trabalho enche-se de moldes de figuras inéditas, e só aqui produzidas, representando Jesus-bebé, presépios e uma simpática figura de Maria, como o Menino nas mãos em jeito de entrega. Pacientemente, o barro é alisado, os pormenores de cada uma destas imagens de «design» único são acentuados, para depois secarem e serem metidas no forno.


Viviane reconhece a esta olaria um apoio económico às fraternidades. Tanto mais que muitas das irmãzinhas estão impedidas de trabalhar por deveres familiares, «que nunca deixam de assumir», como é o caso de Glória, que tem de prestar assistência à mãe, durante um mês em cada trimestre. Mas esta irmãzinha, a quem o encargo da mãe obrigou a abandonar o trabalho de limpezas, também se dedica a fazer presépios em miniatura, decorados com troncos de árvore e seixos da praia. A profissão de enfermeira nunca mais a exerceu, desde que entrou em 1980 para a fraternidade, já com 34 anos. «Se vivesse num país onde não existisse qualquer resposta pública de saúde, nada me impediria de exercer, mas em Portugal não se torna necessário», diz Glória, para explicar as implicações da «preferência pela vida igual à dos mais pobres», mesmo ao nível da opção profissional.

Uma opção que ela e outras duas irmãzinhas - uma francesa, Mónica, e uma espanhola, Monserrate -, assumem na Quinta da Serra, e que nem passa sequer por ensinar a catequese, como habitualmente outras freiras o fazem. A presença da fraternidade é sentida em cada momento da vida dos seus moradores. «Quando as pessoas fazem uma festa, como por ocasião de um casamento, estamos presentes para apoiar no que for necessário, do mesmo modo que vamos ajudar alguém que, um dia, se viu perdido num hospital com uma doença grave.» Estes exemplos dados pela freira não esgotam a sua acção perante os imensos problemas de um bairro clandestino. A luta contra os esgotos a céu aberto, a exigência de colocação de caixotes e de recolha de lixo pelo município, ou ainda a distribuição do correio, que os moradores eram obrigados a levantar noutras moradas, foram algumas das lutas em que as irmãzinhas estiveram presentes. E, ao longo dos anos, apoiaram os moradores na criação de uma associação e conseguiram que um grupo de uma dezena de cristãos se empenhasse na alfabetização de adultos e no apoio escolar às crianças, no processo de legalização de imigrantes africanos ou ainda no apoio jurídico a alguns trabalhadores.

Mas o dia-a-dia da fraternidade não se esgota nestas acções. «É muito importante escutar as pessoas, que muitas vezes apenas querem confidenciar como são mal tratadas nos empregos, nos serviços públicos, ou então simplesmente desabafar problemas familiares», salienta a irmãzinha Glória, para quem «somente quando se partilha a mesma condição dos menos considerados é que não se consegue ficar indiferente perante as injustiças. Todas as injustiças».



A história das Irmãzinhas de Jesus confunde-se com o fracasso da ideia de um homem, Charles de Foucauld, que durante quase duas décadas (entre 1901 e 1916) sonhou fundar, com outros companheiros, um eremitério onde se praticasse «uma caridade fraterna e universal» e todo o ser humano fosse recebido «como um irmão muito amado».

Foucauld era um antigo oficial francês, expulso do Exército por insubordinação, por ter insistido em manter uma ligação com uma mulher que apresentava como sendo sua esposa, enquanto prestava serviço em Sétif, na Argélia. Em 1880, com apenas 23 anos de idade, desiste da carreira militar e da amante, Mas o contacto com o Islão perturbara-o - «Ver a fé daquelas almas, vivendo na contínua presença de Deus, fez-me pressentir qualquer coisa de maior e de mais verdadeiro do que as ocupações mundanas», escreverá mais tarde numa carta. Empreende, então, entre 1883 e 1884, uma exploração geográfica a Marrocos, muito considerada pela Sociedade de Geografia de Paris. Mas a interrogação sobre a existência e a vontade de Deus continuava a levá-lo a refugiar-se nas igrejas...

Acabará por ser ordenado padre em Junho de 1901, após ter feito uma experiência na Terra Santa, onde descobre «a existência humilde e obscura do operário divino de Nazaré». E quatro meses depois da ordenação sacerdotal já está no Sara argelino, em Beni-Abbès. Paralelamente a uma verdadeira aproximação ecuménica às tribos tuaregues, empreende uma acção humanitária que culmina com o resgate de alguns escravos. A sua acção não é bem vista, tanto pelo poder colonial francês, como pela própria Igreja Católica. Todavia, não receia acusar os governantes do seu país por condenarem às galeras os falsificadores de notas mas permitirem a escravatura. À hierarquia da Igreja, que lhe exigia prudência, escreve a lamentar «que os representantes de Jesus se contentem em defender «às escondidas», e não «por cima dos telhados», uma causa que é a da justiça e da caridade».

No dia 1 de Dezembro de 1916 é assassinado em Tamanraset, sem que algum dia tivesse conseguido algum companheiro de missão, conforme desde o início imaginou. É uma mulher, também francesa, Madgdeleine Hutin, que vinte anos mais tarde descobre, na mensagem deixada pelo padre Foucauld, «o ideal com que sonhava: o Evangelho vivido, a pobreza total, a inserção no meio de populações abandonadas» - um atrevimento percursor no interior da Igreja, quase meio século antes do Vaticano II.

Hutin funda em 1939 a Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus, hoje constituída por 1300 mulheres de 66 nacionalidades - a Portugal chegaram em 30 de Novembro de 1952 -, que perseguem o ideário que a fundadora lhes deixou: «O Mundo já está farto das «grandes caridades», tem-se muita necessidade de amizade, de ternura, e se não a encontramos na religião de Cristo, nos amigos íntimos de Cristo, procurá-la-emos noutros lados...»

Fonte Expresso

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