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Carta apostólica
2001-01-10 23:36:26

Do Sumo Pontífice João Paulo II, ao episcopado, ao clero e aos fiéis, no termo do grande jubileu do ano 2000.

Aos Irmãos no Episcopado,
aos sacerdotes e diáconos,
aos religiosos e religiosas,
a todos os fiéis leigos.

1. No início do novo milénio quando se encerra o Grande Jubileu, em que celebrámos os dois mil anos do nascimento de Jesus, e um novo percurso de estrada se abre para a Igreja, ressoam no nosso coração as palavras com que um dia Jesus, depois de ter falado às multidões a partir da barca de Simão, convidou o Apóstolo a « fazer-se ao largo » para a pesca: « Duc in altum » (Lc 5,4). Pedro e os primeiros companheiros confiaram na palavra de Cristo e lançaram as redes. « Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe » (Lc 5,6).
Duc in altum! Estas palavras ressoam hoje aos nossos ouvidos, convidando-nos a lembrar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente, abrir-se com confiança ao futuro: « Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre » (Heb 13, 8).
Ao longo do ano jubilar, grande foi a alegria da Igreja, que se dedicou a contemplar o rosto do seu Esposo e Senhor. Ela tornou-se mais intensamente povo peregrino, guiado por Aquele que é « o grande Pastor das ovelhas » (Heb 13,20). O povo de Deus, com um dinamismo extraordinário que envolveu muitos dos seus membros, seja aqui em Roma, seja em Jerusalém e em cada uma das Igrejas locais, passou pela « Porta Santa » que é Cristo. A Ele, meta da história e único Salvador do mundo, a Igreja e o Espírito gritaram: « Maranatha — Vem, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22,17.20; 1 Cor 16,22).
É impossível medir o sucesso de graça que, ao longo do ano, tocou as consciências. Mas certamente um « rio de água viva », o mesmo que jorra incessantemente « do trono de Deus e do Cordeiro » (Ap 22,1), inundou a Igreja. É a água do Espírito que sacia e renova (cf. Jo 4,14). É o amor misericordioso do Pai que uma vez mais nos foi manifestado e oferecido em Cristo. No termo deste ano, podemos repetir, com renovado júbilo, aquele antigo refrão de acção de graças: « Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia » (Sal 118117,1).

2. Sinto, por isso, a necessidade de me dirigir a vós, irmãos muito amados, para partilhar convosco o cântico de louvor. A este ano santo 2000, tinha eu pensado como uma data importante, desde o princípio do meu pontificado. Tinha entrevisto esta celebração como um momento providencial em que, trinta e cinco anos depois do Concílio Ecuménico Vaticano II, a Igreja seria convidada a interrogar-se sobre a sua renovação para assumir com novo impulso a sua missão evangelizadora.
O Jubileu terá conseguido realizar este desígnio? O nosso empenho, com seus generosos esforços e inevitáveis fragilidades, Deus o conhece. Mas não podemos subtrair-nos ao dever de agradecer « as maravilhas » que Deus fez por nós. « Misericordias Domini in aeternum cantabo » (Sal 8988,2).
Ao mesmo tempo, tudo o que aconteceu sob os nossos olhos merece ser ponderado e de certo modo decifrado, para ouvir aquilo que, ao longo deste ano tão intenso, o Espírito disse à Igreja (cf. Ap 2,7.11.17 etc.).

3. Mas sobretudo é nossa obrigação, amados irmãos e irmãs, lançar-nos para o futuro que nos espera. Nestes meses, olhámos frequentemente para o novo milénio que começa, vivendo o Jubileu não só como lembrança do passado, mas também como profecia do futuro. Agora é preciso guardar o tesouro da graça recebida, traduzindo-a em ardentes propósitos e directrizes concretas de acção. A esta tarefa, desejo convidar todas as Igrejas locais. Em cada uma delas, reunida à volta do seu Bispo na escuta da Palavra, na união fraterna e na « fracção do pão » (cf. Act 2,42), « está e opera a Igreja de Cristo una, santa, católica e apostólica ».1 É principalmente na realidade concreta de cada Igreja que o mistério do único povo de Deus assume aquela configuração particular que o torna aderente aos diversos contextos e culturas.
Este enraizamento da Igreja no tempo e no espaço reflecte, em última análise, o movimento mesmo da encarnação. É hora, pois, de cada Igreja reflectir sobre o que o Espírito disse ao povo de Deus neste especial ano de graça e também no arco mais amplo de tempo desde o Concílio Vaticano II até ao Grande Jubileu, medindo o seu fervor e ganhando novo impulso para os seus compromissos espirituais e pastorais. Com tal finalidade, desejo oferecer nesta Carta, no encerramento do ano jubilar, o contributo do meu ministério petrino, para que a Igreja resplandeça cada vez mais na variedade dos seus dons e na unidade do seu caminho.

I
O ENCONTRO COM CRISTO,
LEGADO DO GRANDE JUBILEU
4. « Graças Te damos, Senhor, Deus Todo-poderoso » (Ap 11,17). Na Bula de proclamação do Jubileu, fazia votos de que a celebração bimilenária do mistério da encarnação fosse vivida como « um único e incessante cântico de louvor à Trindade » 2 e, ao mesmo tempo, « como caminho de reconciliação e como sinal de genuína esperança para todos os que levantam seu olhar para Cristo e para a sua Igreja ».3 A experiência do ano jubilar modelou-se precisamente segundo estas dimensões vitais, atingindo momentos de tal intensidade que nos fizeram quase palpar sensivelmente a presença misericordiosa de Deus, do Qual provém « toda a boa dádiva e todo o dom perfeito » (Tg 1,17).
Penso, antes de mais, à dimensão do louvor. Realmente é daqui que parte toda a autêntica resposta de fé à revelação de Deus em Cristo. O cristianismo é graça, é a surpresa de um Deus que, não satisfeito com criar o mundo e o homem, saiu ao encontro da sua criatura e, depois de ter falado muitas vezes e de diversos modos pelos profetas, « falou-nos agora, nestes últimos tempos, pelo Filho » (Heb 1,1-2).
Agora! Sim, o Jubileu fez-nos sentir que passaram dois mil anos de história sem se atenuar a pujança daquele « hoje » referido pelos anjos, quando anunciaram aos pastores o acontecimento maravilhoso do nascimento de Jesus em Belém: « Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2,11). Passaram dois mil anos, mas permanece viva como nunca a proclamação que Jesus fez da sua missão aos conterrâneos na sinagoga de Nazaré, deixando-os atónitos ao aplicar a Si próprio a profecia de Isaías: « Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir » (Lc 4,21). Passaram dois mil anos, mas volta sempre, cheio de consolação para os pecadores necessitados de misericórdia — e quem não o é? –, aquele « hoje » da salvação que, na Cruz, abriu as portas do Reino de Deus ao ladrão arrependido: « Em verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso » (Lc 23,43).

A plenitude dos tempos
5. A coincidência deste Jubileu com a entrada num novo milénio favoreceu seguramente, sem cair em fantasias milenaristas, a percepção do mistério de Cristo no grande horizonte da história da salvação. O cristianismo é religião entranhada na história. Com efeito, foi no terreno da história que Deus quis estabelecer com Israel uma aliança e, deste modo, preparar o nascimento do Filho no ventre de Maria, « na plenitude dos tempos » (Gal 4,4). Visto no seu mistério divino e humano, Cristo é o fundamento e o centro, o sentido e a meta última da história. De facto, foi por Ele, Verbo e imagem do Pai, que « tudo começou a existir » (Jo 1,3; cf. Col 1,15). A sua encarnação, que culminou no mistério pascal e no dom do Espírito, constitui o coração pulsátil do tempo, a hora misteriosa em que o Reino de Deus passou a estar ao nosso alcance (cf. Mc 1,15), antes lançou raízes na nossa história como semente destinada a ser uma grande árvore (cf. Mc 4,30-32).
« Cristo ontem, Cristo hoje, Cristo sempre, meu Salvador... »: com este cântico, milhares de vezes repetido, contemplámos ao longo deste ano Cristo tal como no-Lo apresenta o Apocalipse: « O Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim » (Ap 22,13). E, ao mesmo tempo que contemplámos Cristo, adorámos o Pai e o Espírito, a Trindade única e indivisível, mistério inefável no qual tudo tem a sua origem e perfeição.

Purificação da memória
6. Para que os nossos olhos pudessem ficar mais puros para contemplarem o mistério, este ano jubilar caracterizou-se intensamente pelo pedido de perdão. Isto verificou-se nos indivíduos, que se interrogaram sobre a sua própria vida para implorar misericórdia e obter o dom especial da indulgência, mas também com a Igreja inteira, que quis recordar as infidelidades de muitos dos seus filhos que ao longo da história obscureceram o seu rosto de Esposa de Cristo.
Há muito que nos predispúnhamos para este exame de consciência, cientes de que a Igreja, contendo pecadores no seu seio, é « simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação ».4 Congressos científicos ajudaram-nos a focalizar os aspectos onde nem sempre brilhou o espírito evangélico, no arco dos primeiros dois milénios. Como esquecer a comovente Liturgia de 12 de Março de 2000 na basílica de S. Pedro, durante a qual, com os olhos fixos no Crucifixo, fiz-me porta-voz da Igreja, pedindo perdão pelo pecado de todos os seus filhos? Esta « purificação da memória » reforçou os nossos passos no caminho para o futuro, tornando-nos ao mesmo tempo mais humildes e vigilantes na nossa adesão ao Evangelho.

As testemunhas da fé
7. A consciência penitencial mais viva não nos impediu, porém, de dar glória ao Senhor por tudo o que Ele fez ao longo dos séculos, de modo particular neste último que deixámos para trás, assegurando à sua Igreja uma longa série de santos e de mártires. Para alguns deles, este ano jubilar foi o ano da beatificação ou canonização. Quer atribuída a Pontífices bem conhecidos da história quer a figuras humildes de leigos e religiosos, a santidade apareceu mais claramente, dum extremo ao outro do globo, como a dimensão que melhor exprime o mistério da Igreja. Mensagem eloquente que não precisa de palavras, aquela representa ao vivo o rosto de Cristo.
Muito se fez também, por ocasião do ano santo, para recolher as memórias preciosas das Testemunhas da fé do século XX. No dia 7 de Maio de 2000, juntamente com os representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, fizemos a sua comemoração no sugestivo cenário do Coliseu, símbolo das perseguições antigas. É uma herança que não se deve perder, mas fazer frutificar num perene dever de gratidão e num renovado propósito de imitação.

Igreja peregrina
8. Seguindo de algum modo as pegadas dos Santos, foram-se alternando aqui em Roma, junto do túmulo dos Apóstolos, inumeráveis filhos da Igreja, desejosos de professar a própria fé, confessar os seus pecados e receber a misericórdia que salva. Neste ano, o meu olhar não se deixou impressionar apenas pelas multidões que encheram a Praça de S. Pedro durante muitas celebrações, pois não era raro deter-me a contemplar também as longas filas de peregrinos que esperavam pacientemente a sua vez de atravessar a Porta Santa. Em cada um deles, eu procurava imaginar uma história de vida, feita de alegrias, ansiedades, sofrimentos; uma história acolhida por Cristo, e que, no diálogo com Ele, retomava o seu caminho de esperança.
Naquele fluxo contínuo dos grupos, deparava-se-me quase uma imagem palpável da Igreja peregrina, daquela Igreja que vive, como diz S. Agostinho, « no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus ».5 A nós, é-nos concedido apenas observar a face mais exterior deste acontecimento singular. Quem pode calcular as maravilhas da graça, que se realizaram nos corações? O melhor é calar e adorar, confiando humildemente na acção misteriosa de Deus e cantando o seu amor sem fim: « Misericordias Domini in aeternum cantabo »!

Os jovens
9. Os numerosos encontros jubilares permitiram congregar-se as mais diversas categorias de pessoas, com uma participação verdadeiramente impressionante, que às vezes chegou a pôr duramente à prova os esforços dos organizadores e animadores, tanto eclesiais como civis. Desejo aproveitar esta Carta para exprimir a todos o meu agradecimento mais cordial. Mas, para além do número, aquilo que muitas vezes me tocou foi verificar a seriedade do compromisso de oração, reflexão, comunhão, que quase sempre se manifestava nestes encontros.
De modo especial, como não recordar o encontro jubiloso e estimulante dos jovens? Se há uma imagem do Jubileu do ano 2000 que ficará mais do que outras viva na memória, é seguramente a daquela multidão oceânica de jovens com quem pude estabelecer uma espécie de diálogo privilegiado, ditado por uma recíproca simpatia e uma sintonia profunda. Verificou-se isto logo desde o momento das boas-vindas, que lhes dei na Praça de S. João de Latrão e na Praça de S. Pedro. Depois vi-os moverem-se pela cidade, alegres como devem ser os jovens, mas também pensativos, ávidos de oração, de « sentido », de amizade verdadeira. Tanto para eles mesmos como para aqueles que os contemplaram, não será fácil apagar da memória aquela semana em que Roma se fez « jovem com os jovens ». Não será possível esquecer a celebração eucarística de Tor Vergata.
Os jovens revelaram-se uma vez mais, para Roma e para a Igreja, um dom especial do Espírito de Deus. Às vezes encontra-se na análise que fazem dos jovens, com todos os problemas e fragilidades que os caracterizam na sociedade contemporânea, uma tendência ao pessimismo. Ora, o Jubileu dos Jovens fez-nos ver que não é caso disso, ao deixar a mensagem contrária duma juventude que, não obstante possíveis ambiguidades, sente um anseio profundo daqueles valores autênticos que têm em Cristo a sua plenitude. Porventura não é Cristo o segredo da verdadeira liberdade e da alegria profunda do coração? Não é Cristo o maior amigo e, simultaneamente, o educador de toda a amizade autêntica? Se Cristo lhes for apresentado com o seu verdadeiro rosto, os jovens reconhecem-No como resposta convincente e conseguem acolher a sua mensagem, mesmo se exigente e marcada pela Cruz. Por isso, vibrando com o seu entusiasmo, não hesitei em pedir-lhes uma opção radical de fé e de vida, apontando-lhes uma missão estupenda: fazerem-se « sentinelas da manhã » (cf. Is 21,11-12) nesta aurora do novo milénio.

Peregrinos das várias categorias
10. Não posso, por razões óbvias, concentrar-me detalhadamente sobre os diversos eventos jubilares. Cada um deles teve o seu carácter próprio e deixou a sua mensagem não só para os participantes directos, mas também para quantos ouviram falar ou tomaram parte à distância através dos mass-media. Mas, como não recordar o tom festivo do primeiro grande encontro, dedicado às crianças? O facto de se começar com elas significava, de algum modo, acolher a advertência de Jesus: « Deixai vir a Mim as criancinhas » (Mc 10,14). E significava talvez ainda mais repetir o gesto praticado por Ele, quando « colocou no meio » um menino e fez dele o próprio símbolo do comportamento que se tem de assumir, se se quiser entrar no Reino de Deus (cf. Mt 18,2-4).
Assim, em determinado sentido, foi seguindo os passos das crianças que vieram pedir a misericórdia jubilar as mais variadas categorias de adultos: dos idosos aos doentes e inválidos, dos trabalhadores das fábricas e dos campos aos desportistas, dos artistas aos docentes universitários, dos Bispos e presbíteros às pessoas de vida consagrada, dos políticos aos jornalistas e até aos militares, que vieram reafirmar o sentido da sua missão como um serviço à paz.
Grande significado teve a concentração dos trabalhadores, realizada no dia tradicional da sua festa — o primeiro de Maio. Pedi-lhes para viverem a espiritualidade do trabalho, imitando S. José e o próprio Jesus. Além disso, aquele jubileu deu-me ocasião para lançar um forte apelo a fim de se sanarem os desequilíbrios económicos e sociais que existem no mundo do trabalho e pautarem decididamente os processos da globalização económica em função da solidariedade e do respeito devido a cada pessoa humana.
As crianças voltaram, com a sua alegria incontida, no Jubileu das Famílias, tendo-as então apontado ao mundo como « primavera da família e da sociedade ». Foi verdadeiramente expressivo este encontro jubilar com tantas famílias das mais diversas regiões do mundo, que vieram receber, com novo fervor, a luz de Cristo sobre o desígnio originário de Deus para elas (cf. Mc 10,6-8; Mt 19,4-6). Comprometeram-se a irradiá-la sobre uma cultura que, de forma sempre mais preocupante, corre o risco de perder o sentido do matrimónio e da instituição familiar.
Entre os momentos mais tocantes que tive, conta-se o encontro com os presos do Estabelecimento Prisional Regina Cœli. Nos seus olhos, vi amargura, mas também o arrependimento e a esperança. Para eles, o Jubileu foi a título absolutamente especial um « ano de misericórdia ».
Por fim, nos últimos dias do ano, teve lugar o encontro com o mundo do espectáculo, que tanta simpatia e encanto desperta no coração das pessoas. A quantos trabalham neste sector, recordei a grande responsabilidade de propor, através do divertimento jovial, mensagens positivas, moralmente sãs, capazes de infundir confiança e amor à vida.

O Congresso Eucarístico Internacional
11. No desenvolvimento deste ano jubilar, esperava-se que tivesse um significado qualificante o Congresso Eucarístico Internacional; e teve-o. Se a Eucaristia é o sacrifício de Cristo que Se torna presente entre nós, poderia a sua presença real não estar no centro deste ano santo dedicado à encarnação do Verbo? Por isso mesmo, foi previsto como ano « intensamente eucarístico » 6 e assim procurámos vivê-lo. Ao mesmo tempo, como podia faltar a menção da Mãe, ao recordarmos o nascimento do seu Filho? Maria esteve presente na celebração jubilar mediante oportunos e qualificados Congressos, mas sobretudo através do grande Acto de Entrega com que, ladeado por boa parte do Episcopado mundial, confiei à sua solicitude materna a vida dos homens e mulheres do novo milénio.

A dimensão ecuménica
12. É compreensível que me venha mais espontâneo falar do Jubileu visto da Sede de Pedro. Todavia não esqueço que fui eu mesmo a desejar que a sua celebração se realizasse, a pleno título, também nas Igrejas particulares; e foi lá que a maior parte dos fiéis pôde obter as graças especiais conexas com o ano jubilar, e de modo particular a indulgência. Mas não deixa de ser significativo que muitas dioceses tenham sentido o desejo de fazer-se presente, com grupos numerosos de fiéis, também aqui em Roma. Assim, a Cidade Eterna manifestou uma vez mais o seu papel providencial de lugar onde as riquezas e os dons de cada Igreja, e mesmo de cada nação e cultura, se harmonizam na « catolicidade », para que a única Igreja de Cristo revele de modo cada vez mais eloquente o seu mistério de sacramento de unidade.7
No âmbito do programa do ano jubilar, tinha pedido que se desse uma atenção especial também à dimensão ecuménica. Que ocasião mais propícia poderia haver, para encorajar o caminho para a plena comunhão, do que a celebração comum do nascimento de Cristo? Muitos esforços se realizaram com tal finalidade, sobressaindo pelo seu significado o encontro ecuménico na basílica de S. Paulo, no dia 18 de Janeiro de 2000: pela primeira vez na história, uma Porta Santa foi aberta conjuntamente pelo Sucessor de Pedro, o Primaz Anglicano e o Metropolita do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, na presença de representantes de Igrejas e Comunidades eclesiais de todo o mundo. Nesta linha, contam-se também alguns encontros importantes com Patriarcas Ortodoxos e chefes doutras confissões cristãs; recordo, em particular, a recente visita de Sua Santidade Karekin II, Patriarca Supremo e Catholicos de todos os Arménios. Houve também muitos fiéis doutras Igrejas e Comunidades eclesiais que tomaram parte nos encontros jubilares das diversas categorias. O caminho ecuménico continua certamente fatigoso, e talvez longo, mas anima-nos a esperança de sermos guiados pela presença do Ressuscitado e pela força inexaurível do seu Espírito, capaz de surpresas sempre novas.

A peregrinação na Terra Santa
13. E como não recordar ainda o meu Jubileu pessoal pelas estradas da Terra Santa? O meu desejo era tê-lo iniciado em Ur dos Caldeus para percorrer quase sensivelmente os passos de Abraão, « nosso pai na fé » (cf. Rom 4,11-16); mas tive de contentar-me com uma paragem apenas espiritual através da sugestiva « Liturgia da Palavra », que foi celebrada a 23 de Fevereiro na Aula Paulo VI. Logo a seguir começou a peregrinação em sentido próprio, seguindo o itinerário da história da salvação. Tive a alegria de parar no Monte Sinai, no cenário do dom do Decálogo e da primeira Aliança. Um mês depois retomei o caminho que me levou até ao Monte Nebo e, em seguida, aos lugares habitados e santificados pelo Redentor. É difícil exprimir a emoção que senti ao poder venerar os lugares do nascimento e da vida de Cristo em Belém e Nazaré, ao celebrar a Eucaristia no Cenáculo lugar da sua instituição, e ao meditar o mistério da Cruz no Gólgota onde Ele deu a vida por nós. Naqueles lugares, ainda muito atribulados e recentemente funestados também pela violência, pude experimentar um acolhimento extraordinário não só dos filhos da Igreja mas também por parte das comunidades israelita e palestinense. Com intensa emoção, vivi a oração junto do Muro das Lamentações e a visita ao Mausoléu de Yad Vashem, memorial chocante das vítimas dos campos de extermínio nazistas. Aquela peregrinação foi um momento de fraternidade e de paz que me apraz registar como um dos mais belos dons do evento jubilar. Recordando o clima vivido naqueles dias, não posso deixar de exprimir sentidos votos duma solução solícita e justa para os problemas ainda inconclusos naqueles lugares santos, amados simultaneamente por judeus, cristãos e muçulmanos.

A dívida internacional
14. Além disso, o Jubileu foi um grande acontecimento de caridade; e não podia ser de outro modo. Já desde os anos preparatórios, tinha lançado o apelo para uma atenção maior e mais efectiva aos problemas da pobreza que ainda afligem o mundo. Neste cenário, assumiu particular significado o problema da dívida internacional dos países pobres. Um gesto de generosidade para com tais países estava inscrito logicamente no próprio Jubileu, sabendo nós que este, na sua primordial configuração bíblica, era precisamente o tempo em que a comunidade se comprometia a restaurar a justiça e a solidariedade nas relações entre as pessoas, restituindo-lhes inclusivamente os bens de que tinham sido privadas. Com satisfação, vejo que recentemente os Parlamentos de muitos dos Estados credores votaram um substancioso perdão da dívida bilateral que pesava sobre países mais pobres e endividados. Faço votos de que os respectivos Governos dêem, em breve, cumprimento a tais decisões parlamentares. Já se apresentou mais problemática a questão da dívida multilateral, ou seja, a dívida contraída pelos países mais pobres junto dos organismos financeiros internacionais. Espero que os Estados membros destes organismos, sobretudo aqueles com maior peso decisório, consigam reunir os consensos necessários para se chegar à rápida solução duma questão que mantém suspenso o caminho do progresso de muitos países, com pesadas consequências sobre a condição económica e existencial de tantas pessoas.

Um novo dinamismo
15. Estas são apenas algumas das linhas resultantes da experiência jubilar. Desta ficam-nos gravadas tantas recordações; se quiséssemos circunscrever o núcleo essencial do grande legado que ela nos deixa, não hesitaria em vê-lo na contemplação do rosto de Cristo: considerando-O nos seus traços históricos e no seu mistério, acolhendo-O com a sua multiforme presença na Igreja e no mundo, confessando-O como sentido da história e luz do nosso caminho.
Agora, devemos olhar para a frente, temos de « fazer-nos ao largo » confiados na palavra de Cristo: Duc in altum! O que realizámos neste ano jubilar não pode justificar uma sensação de saciedade nem induzir-nos a uma atitude de relaxamento. Pelo contrário, as experiências vividas devem suscitar em nós um dinamismo novo, que nos leve a investir em iniciativas concretas aquele entusiasmo que sentimos. O próprio Jesus nos adverte: « Quem, depois de deitar a mão ao arado, olha para trás, não é apto para o Reino de Deus » (Lc 9,62). Na causa do Reino, não há tempo para olhar para trás, menos ainda para dar-se à preguiça. Há muito trabalho à nossa espera; por isso, devemos pôr mãos a uma eficaz programação pastoral pós-jubilar.
Mas é muito importante que tudo o que com a ajuda de Deus nos propusermos, esteja profundamente radicado na contemplação e na oração. O nosso tempo é vivido em contínuo movimento que muitas vezes chega à agitação, caindo-se facilmente no risco de « fazer por fazer ». Há que resistir a esta tentação, procurando o « ser » acima do « fazer ». A tal propósito, recordemos a censura de Jesus a Marta: « Andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária » (Lc 10,41-42). Com este espírito desejo, antes de propor à vossa consideração algumas linhas de acção, partilhar qualquer tópico de meditação sobre o mistério de Cristo, fundamento absoluto de toda a nossa acção pastoral.

II
UM ROSTO A CONTEMPLAR
16. « Queríamos ver a Jesus » (Jo 12,21). Este pedido, feito ao apóstolo Filipe por alguns gregos que tinham ido em peregrinação a Jerusalém por ocasião da Páscoa, ecoou espiritualmente também aos nossos ouvidos ao longo deste ano jubilar. Como aqueles peregrinos de há dois mil anos os homens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes « falem » de Cristo, mas também que de certa forma lh'O façam « ver ». E não é porventura a missão da Igreja reflectir a luz de Cristo em cada época da história, e por conseguinte fazer resplandecer o seu rosto também diante das gerações do novo milénio?
Mas, o nosso testemunho seria excessivamente pobre, se não fôssemos primeiro contemplativos do seu rosto; por certo o Grande Jubileu ajudou-nos a sê-lo mais profundamente. Concluído o Jubileu, ao retomarmos o caminho de sempre, conservando na alma a riqueza das experiências vividas neste período muito especial, o olhar permanece mais intensamente fixo no rosto do Senhor.

O testemunho dos Evangelhos
17. A contemplação do rosto de Cristo não pode inspirar-se senão àquilo que se diz d'Ele na Sagrada Escritura, que está, do princípio ao fim, permeada pelo seu mistério; este aparece obscuramente esboçado no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo, de tal maneira que S. Jerónimo afirma sem hesitar: « A ignorância das Escrituras é ignorância do próprio Cristo ».8 Permanecendo ancorados na Sagrada Escritura, abrimo-nos à acção do Espírito (cf. Jo 15,26), que está na origem dos seus livros, e simultaneamente ao testemunho dos Apóstolos (cf. Jo 15,27), que fizeram a experiência viva de Cristo, o Verbo da vida: viram-No com os seus olhos, escutaram-No com os seus ouvidos, tocaram-No com as suas mãos (cf. 1 Jo 1,1).
Por seu intermédio, chega-nos uma visão de fé, sustentada por um testemunho histórico concreto: um testemunho verdadeiro que os Evangelhos, apesar da sua redacção complexa e finalidade primariamente catequética, nos oferecem de forma plenamente atendível.9

18. De facto, os Evangelhos não pretendem ser uma biografia completa de Jesus, segundo os cânones da ciência histórica moderna. No entanto, neles aparece, com fundamento histórico seguro, o rosto do Nazareno, visto que foi preocupação dos Evangelistas delineá-lo, recolhendo testemunhos fidedignos (cf. Lc 1,3) e trabalhando sobre documentos sujeitos a cuidadoso discernimento eclesial. Foi com base nestes testemunhos da primeira hora que eles, sob a acção iluminadora do Espírito Santo, souberam do facto — humanamente desconcertante — de Jesus ter nascido virginalmente de Maria, esposa de José. Daqueles que O tinham conhecido durante os trinta anos aproximadamente que vivera em Nazaré (cf. Lc 3,23), recolheram os dados sobre a sua vida de « filho do carpinteiro » (Mt 13,55) e d'Ele mesmo « carpinteiro », com o quadro da sua parentela bem especificado (cf. Mc 6,3). E registaram a sua grande religiosidade que O levava a ir em peregrinação anual, juntamente com os seus, ao templo de Jerusalém (cf. Lc 2,41) e sobretudo fazia d'Ele um frequentador habitual da sinagoga da sua cidade (cf. Lc 4,16).
As notícias tornam-se mais abundantes, embora não cheguem a ser um relato orgânico e detalhado, no período do ministério público, a começar do momento em que o jovem Galileu Se fez baptizar por João Baptista no Jordão; animado pelo testemunho do Alto e com a consciência de ser o « Filho predilecto » (Lc 3,22), dá início à sua pregação anunciando a chegada do Reino de Deus, ilustrando as suas exigências e a sua força através de palavras e sinais de graça e misericórdia. Os Evangelhos apresentam-no-Lo caminhando por cidades e aldeias, acompanhado por doze Apóstolos que Ele escolhera (cf. Mc 3,13-19), por um grupo de mulheres que O servem com os seus bens (cf. Lc 8,2-3), por multidões que O procuram e seguem, por doentes que esperam no seu poder de cura, por interlocutores que ouvem, com variado proveito, as suas palavras.
A narração dos Evangelhos concorda também no facto de mostrar a tensão que foi crescendo entre Jesus e os grupos dominantes da sociedade religiosa de então até à crise final, que teve o seu epílogo dramático no Gólgota. É a hora das trevas, à qual se segue uma aurora nova, radiante e definitiva. De facto, os relatos evangélicos terminam mostrando o Nazareno vitorioso sobre a morte: assinalam o seu túmulo vazio e acompanham-No no ciclo das aparições, durante as quais os discípulos, primeiro perplexos e atónitos e depois cheios de inefável alegria, O experimentam vivo e glorioso, tendo recebido d'Ele o dom do Espírito (cf. Jo 20,22) e o mandato de anunciar o Evangelho a « todas as nações » (Mt 28,19).
O caminho da fé

19. « Alegraram-se os discípulos, ao verem o Senhor » (Jo 20,20). O rosto, que os Apóstolos contemplaram depois da ressurreição, era o mesmo daquele Jesus com quem tinham convivido cerca de três anos e que agora os convencia da verdade incrível da sua nova vida, mostrando-lhes « as mãos e o lado » (Jo 20,20). Certamente não foi fácil acreditar. Os discípulos de Emaús só acreditaram no fim dum penoso itinerário do espírito (cf. Lc 24,13-35). O apóstolo Tomé acreditou apenas depois de ter constatado o prodígio (cf. Jo 20,24-29). Na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o seu corpo só a fé podia penetrar plenamente no mistério daquele rosto. Esta experiência, deviam já tê-la feito os discípulos na vida histórica de Cristo, sempre que se levantavam questões na sua mente ao sentirem-se interpelados pelos seus gestos e palavras. A Jesus só se chega verdadeiramente pelo caminho da fé, um caminho cujas etapas o próprio Evangelho parece delinear na famosa cena de Cesareia de Filipe (cf. Mt 16,13-20). Fazendo de certo modo um primeiro balanço da sua missão, Jesus pergunta aos discípulos o que pensam « os homens » acerca d'Ele, tendo ouvido como resposta: « Uns [dizem] que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas » (Mt 16,14). Uma consideração certamente elevada, mas ainda distante — e muito! — da verdade. O povo chega a pressentir a dimensão religiosa, absolutamente excepcional, deste Rabbi, cujas palavras o deixa fascinado, mas ainda não consegue colocá-Lo acima dos homens de Deus que apareceram ao longo da história de Israel. Ora, Jesus é realmente muito mais. É precisamente este passo sucessivo de conhecimento, que diz respeito ao nível profundo da sua pessoa, que Ele espera dos « seus »: « Vós, quem dizeis que Eu sou? » (Mt 16,15). Só a fé professada por Pedro — e, com ele, pela Igreja de todos os tempos — atinge o coração do mistério, a sua profundidade: « Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo » (Mt 16,16).

20. Como chegou Pedro a esta fé? E o que se requer de nós, se quisermos seguir de forma cada vez mais convicta as suas pegadas? Mateus dá-nos um indício esclarecedor nas palavras com que Jesus acolhe a confissão de Pedro: « Não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meu Pai que está nos céus » (Mt 16,17). A expressão « carne e sangue » evoca o homem e o seu modo comum de conhecer que, no caso de Jesus, não basta. É necessária uma graça de « revelação » que vem do Pai (cf. Mt 16,17). Lucas oferece-nos uma indicação, que aponta na mesma direcção, ao observar que este diálogo com os discípulos teve lugar « quando [Jesus] orava em particular, estando com Ele apenas os discípulos » (Lc 9,18). As duas anotações levam-nos a tomar consciência de que, à plena contemplação do rosto do Senhor, não chegamos pelas nossas simples forças, mas deixando a graça conduzir-nos pela sua mão. Só a experiência do silêncio e da oração oferece o ambiente adequado para maturar e desenvolver-se um conhecimento mais verdadeiro, aderente e coerente daquele mistério cuja expressão culminante aparece na solene proclamação do evangelista João: « E o Verbo fez-Se carne e habitou no meio de nós; e nós vimos a glória d'Ele, glória que Lhe vem do Pai como a Filho único, cheio de graça e de verdade » (Jo 1,14).

A profundidade do mistério
21. O Verbo e a carne, a glória divina e a sua tenda no meio dos homens! É na união íntima e indivisível destes dois pólos que está a identidade de Cristo, segundo a formulação clássica do Concílio de Calcedónia (ano 451): « uma pessoa em duas naturezas ». A pessoa é unicamente a do Verbo eterno, o Filho de Deus. As duas naturezas, sem qualquer confusão mas também sem possível separação, são a divina e a humana.10
Temos consciência do carácter limitado dos nossos conceitos e palavras. Embora sempre humana, a fórmula está calibrada cuidadosamente no seu conteúdo doutrinal, permitindo em certa medida de nos debruçarmos sobre o abismo do mistério. Sim! Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem! Como sucedeu com o apóstolo Tomé, a Igreja é continuamente convidada por Cristo a tocar as suas chagas, ou seja, a reconhecer a plena humanidade d'Ele, assumida de Maria, entregue à morte, transfigurada pela ressurreição: « Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado » (Jo 20,27). Como Tomé, a Igreja prostra-se em adoração diante do Ressuscitado, na plenitude do seu esplendor divino, e perenemente exclama: « Meu Senhor e meu Deus! » (Jo 20,28).

22. « O Verbo fez-Se carne » (Jo 1,14). Esta sublime apresentação joanina do mistério de Cristo é confirmada por todo o Novo Testamento. Assim, S. Paulo afirma que o Filho de Deus nasceu « da descendência de David segundo a carne » (Rom 1,3; cf. 9,5). Se hoje, com o racionalismo que grassa em muitos sectores da cultura contemporânea, é a fé na divindade de Cristo a encontrar mais problemas, também já houve contextos históricos e culturais em que predominou a tendência a reduzir ou diluir o carácter histórico concreto da humanidade de Jesus. Mas, para a fé da Igreja, é essencial e irrenunciável afirmar que verdadeiramente o Verbo « Se fez carne » e assumiu todas as dimensões do ser humano, excepto o pecado (cf. Heb 4,15). Nesta perspectiva, a encarnação é verdadeiramente um « despojar-se » (kenosis), por parte do Filho de Deus, da glória que Ele possui desde toda a eternidade (cf. Fil 2,6-8; 1 Ped 3,18).
Por outro lado, esta humilhação do Filho de Deus não é fim em si mesma, mas visa a plena glorificação de Cristo, inclusivamente na sua humanidade: « Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos céus, na terra e nos abismos, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor para glória de Deus Pai » (Fil 2,9-11).

23. « É o teu rosto, Senhor, que eu procuro » (Sal 2726,8). Este antigo anseio do Salmista não podia ter recebido resposta melhor e mais surpreendente que a contemplação do rosto de Cristo. N'Ele, Deus nos abençoou verdadeiramente, fazendo « resplandecer sobre nós a luz do seu rosto » (Sal 6766,2). Sendo ao mesmo tempo Deus e homem, Ele revela-nos também o rosto autêntico do homem, « revela o homem a si mesmo ».11
Jesus é o « homem novo » (cf. Ef 4,24; Col 3,10), que convida a humanidade redimida a participar da sua vida divina. No mistério da encarnação encontram-se as bases para uma antropologia capaz de ultrapassar os seus próprios limites e contradições, caminhando para o próprio Deus, antes, para a meta da « divinização », pela inserção em Cristo do homem resgatado, admitido à intimidade da vida trinitária. Os Santos Padres insistiram muito sobre esta dimensão soteriológica do mistério da encarnação: só porque Se fez verdadeiramente homem o Filho de Deus, é que o homem pode, n'Ele e por Ele, tornar-se realmente filho de Deus.12

Rosto do Filho
24. Esta sua identidade divino-humana manifesta-se intensamente nos Evangelhos; estes dão-nos uma série de elementos que nos permitem penetrar naquela « área reservada » do mistério que é a autoconsciência de Cristo. A Igreja não tem dúvidas de que, narrando inspirados pelo Alto, os Evangelistas captaram correctamente, nas palavras pronunciadas por Jesus, a verdade da sua pessoa e a consciência que Ele tinha da mesma. Não é precisamente isto que exprime Lucas quando refere as primeiras palavras de Jesus, com doze anos apenas, no templo de Jerusalém? Já então Ele está consciente de possuir uma relação única com Deus, própria de « filho ». De facto, quando a Mãe Lhe faz saber a aflição com que Ela e José O procuraram, Jesus responde sem hesitar: « Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai? » (Lc 2,49). Por isso, não admira que, uma vez homem feito, a sua linguagem exprima decididamente a profundidade do seu próprio mistério, como largamente o sublinham quer os evangelhos sinópticos (cf. Mt 11,27; Lc 10,22), quer sobretudo o evangelista João. Na consciência que tem de Si mesmo, Jesus não nutre qualquer dúvida: « O Pai está em Mim e Eu n'Ele » (Jo 10,38).
Embora seja lícito pensar que, no respeito da condição humana que O fazia crescer « em sabedoria, em estatura e em graça » (Lc 2,52), também a consciência humana do seu mistério tenha crescido até à expressão plena da sua humanidade glorificada, não há dúvida de que Jesus, já nos dias da sua existência histórica, tinha consciência da sua identidade de Filho de Deus. João sublinha-o tanto que chega a afirmar que, em última análise, foi esse o motivo por que O rejeitaram e condenaram: na realidade procuravam matá-Lo « não só por violar o sábado, mas também porque dizia que Deus era seu Pai, fazendo-Se igual a Deus » (Jo 5,18). No cenário do Getsémani e do Gólgota, a consciência humana de Jesus será submetida a dura prova; mas nem sequer o drama da sua paixão e morte conseguirá turbar a sua serena certeza de ser o Filho do Pai celeste.

Rosto doloroso
25. E assim a nossa contemplação do rosto de Cristo trouxe-nos até ao aspecto mais paradoxal do seu mistério, que se manifesta na hora extrema — a hora da Cruz. Mistério no mistério, diante do qual o ser humano pode apenas prostrar-se em adoração.
Passa diante dos nossos olhos, em toda a sua intensidade, a cena da agonia no Horto das Oliveiras. Oprimido ao pressentir a prova que O espera, Jesus, sozinho com Deus, invoca-O com a sua habitual e terna expressão de confidência: « Abba, Pai ». Pede-Lhe para que, se for possível, afaste d'Ele o cálice do sofrimento (cf. Mc 14,36); mas, o Pai parece não querer atender a voz do Filho. Para transmitir ao homem o rosto do Pai, Jesus teve não apenas de assumir o rosto do homem, mas de tomar inclusivamente o « rosto » do pecado: « Aquele que não havia conhecido pecado, Deus O fez pecado por nós para que nos tornássemos n'Ele justiça de Deus » (2 Cor 5,21).
Jamais acabaremos de sondar o abismo deste mistério. Este paradoxo surge, em toda a sua rudeza, no grito de dor aparentemente desesperado que Jesus eleva na cruz: « Eloí, Eloí, lamá sabachthani?, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? » (Mc 15,34). Será possível imaginar um tormento maior, uma escuridão mais densa? Na realidade, aquele « porque », cheio de angústia, dirigido ao Pai com as palavras iniciais do Salmo 22, apesar de conservar todo o realismo dum sofrimento inexprimível, é esclarecido pelo sentido geral da oração: o Salmista, num misto impressionante de sentimentos, une lado a lado o sofrimento e a confiança. Com efeito, o Salmo prossegue dizendo: « Em Vós confiaram os nossos pais; confiaram e Vós os livrastes. [...] Não Vos afasteis para longe de mim, porque estou atribulado; não há quem me ajude » (2221,5.12).

26. O grito de Jesus na cruz, amados irmãos e irmãs, não traduz a angústia dum desesperado, mas a oração do Filho que, por amor, oferece a sua vida ao Pai pela salvação de todos. Enquanto Se identifica com o nosso pecado, « abandonado » pelo Pai, Ele « abandona-Se » nas mãos do Pai. Os seus olhos permanecem fixos no Pai. Precisamente pelo conhecimento e experiência que só Ele tem de Deus, mesmo neste momento de obscuridade Jesus vê claramente a gravidade do pecado e isso mesmo fá-Lo sofrer. Só Ele, que vê o Pai e por isso rejubila plenamente, avalia até ao fundo o que significa resistir com o pecado ao seu amor. A paixão é sofrimento atroz na alma, antes de o ser e bem mais intensamente que no corpo. A tradição teológica não deixou de interrogar-se como pôde Jesus viver simultaneamente a união profunda com o Pai, por sua natureza fonte de alegria e beatitude, e a agonia até ao grito do abandono. Na realidade, a presença conjunta destas duas dimensões, aparentemente inconciliáveis, está radicada na profundidade insondável da união hipostática.

27. Para penetrarmos neste mistério, a par da pesquisa teológica pode-nos vir uma ajuda relevante também daquele grande património que é a « teologia vivida » dos Santos. Estes dão-nos preciosas indicações que nos permitem acolher mais facilmente a intuição da fé; e fazem-no mercê das luzes particulares que alguns deles receberam do Espírito Santo, ou mesmo da experiência que eles próprios tiveram daqueles terríveis estados de provação que a tradição mística designa por « noite escura ». Não é raro terem vivido os Santos algo que se assemelha à experiência de Jesus na cruz, num misto paradoxal de beatitude e dor. Na obra Diálogo da Divina Providência, temos Deus Pai que mostra a Catarina de Sena como é possível estar presente, nas almas santas, simultaneamente a felicidade e o sofrimento: « A alma sente-se feliz e atormentada: atormentada pelos pecados do próximo, feliz pela união e afecto da caridade que a invadiu. Essas [almas santas] imitam o Cordeiro imaculado, o meu Filho Unigénito, que na cruz Se sentia feliz e atormentado ».13 Da mesma forma, Teresa de Lisieux vive a sua agonia em comunhão com a de Jesus, verificando em si própria precisamente o paradoxo de Jesus feliz e angustiado: « Nosso Senhor, no Horto das Oliveiras, gozava de todas as alegrias da Trindade, e todavia a sua agonia não era menos atroz. É um mistério; mas posso assegurar-lhe — escreve ela à Superiora — que compreendo alguma coisa desse mistério a partir do que sinto em mim mesma ».14 É um testemunho esclarecedor! Aliás, esta percepção eclesial da consciência de Cristo encontra fundamento na própria narração dos Evangelistas, quando referem que, mesmo no seu abismo de sofrimento, Ele morre implorando perdão para os seus carrascos (cf. Lc 23,34) e manifestando ao Pai o seu extremo abandono filial: « Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23,46).

Rosto do Ressuscitado
28. Como em Sexta-feira e Sábado Santo, a Igreja não cessa de contemplar este rosto ensanguentado, no qual se esconde a vida de Deus e se oferece a salvação do mundo. Mas a sua contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do Crucificado. Ele é o Ressuscitado! Se assim não fosse, seria vã a nossa pregação e a nossa fé (cf. 1 Cor 15,14). A ressurreição foi a resposta do Pai à sua obediência, como recorda a Carta aos Hebreus: « Quando vivia na carne, [Cristo] ofereceu, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas Àquele que O podia salvar da morte, e foi atendido pela sua piedade. Apesar de Filho de Deus, aprendeu a obedecer, sofrendo, e, uma vez atingida a perfeição, tornou-Se para todos os que Lhe obedecem fonte de salvação eterna » (5,7-9).
Agora é para Cristo ressuscitado que a Igreja olha. Fá-lo, seguindo os passos de Pedro que chorou por tê-Lo negado e retomou o seu caminho confessando, com compreensível tremor, o seu amor a Cristo: « Tu sabes que Te amo » (Jo 21,15-17). A Igreja fá-lo, seguindo Paulo que ficou fascinado por Ele depois de O ter encontrado no caminho de Damasco: « Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro » (Fil 1,21).
Passados dois mil anos destes acontecimentos, a Igreja revive-os como se tivessem sucedido hoje. No rosto de Cristo, ela — a Esposa — contempla o seu tesouro, a sua alegria. « Dulcis Iesu memoria, dans vera cordis gaudia »: « Como é doce a recordação de Jesus, fonte de verdadeira alegria do coração! ». Confortada por esta experiência revigoradora, a Igreja retoma agora o seu caminho para anunciar Cristo ao mundo ao início do terceiro milénio: Ele « é o mesmo ontem, hoje e sempre » (Heb 13,8).

III
PARTIR DE CRISTO
29. « Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo » (Mt 28,20). Esta certeza, amados irmãos e irmãs, acompanhou a Igreja durante dois milénios e foi agora reavivada em nossos corações com a celebração do Jubileu; dela devemos auferir um novo impulso para a vida cristã, melhor, fazer dela a força inspiradora do nosso caminho. É com a consciência desta presença do Ressuscitado entre nós que hoje nos pomos a pergunta feita a Pedro no fim do seu discurso de Pentecostes, em Jerusalém: « Que havemos de fazer? » (Act 2,37).
Interrogamo-nos animados de confiante optimismo, embora sem subestimar os problemas. Certamente não nos move a esperança ingénua de que possa haver uma fórmula mágica para os grandes desafios do nosso tempo; não será uma fórmula a salvar-nos, mas uma Pessoa, e a certeza que Ela nos infunde: Eu estarei convosco!
Sendo assim, não se trata de inventar um « programa novo ». O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz. Este programa de sempre é o nosso programa para o terceiro milénio.
Mas, é necessário traduzi-lo em orientações pastorais ajustadas às condições de cada comunidade. O Jubileu proporcionou-nos a oportunidade extraordinária de nos empenharmos, durante alguns anos, num caminho comum da Igreja inteira, um caminho de catequese articulada sobre o tema trinitário e acompanhada por específicos compromissos pastorais em ordem a uma experiência jubilar fecunda. Agradeço a adesão ampla e cordial reservada à proposta que fiz na Carta apostólica Tertio millennio adveniente. Agora, já não é uma meta imediata que se apresenta diante de nós, mas o horizonte mais vasto e empenhativo da pastoral ordinária. No respeito das coordenadas universais e irrenunciáveis, é necessário fazer com que o único programa do Evangelho continue a penetrar, como sempre aconteceu, na história de cada realidade eclesial. É nas Igrejas locais que se podem estabelecer as linhas programáticas concretas — objectivos e métodos de trabalho, formação e valorização dos agentes, busca dos meios necessários — que permitam levar o anúncio de Cristo às pessoas, plasmar as comunidades, permear em profundidade a sociedade e a cultura através do testemunho dos valores evangélicos.
Por isso, exorto vivamente os Pastores das Igrejas particulares, valendo-se do contributo das diversas componentes do povo de Deus, a delinear confiadamente as etapas do caminho futuro, sintonizando as opções de cada Comunidade diocesana com as das Igrejas limítrofes e as da Igreja universal.
Tal sintonia será certamente facilitada pelo trabalho colegial, que já é habitual, realizado pelos Bispos nas Conferências Episcopais e nos Sínodos. Porventura não foi este também o motivo das Assembleias continentais do Sínodo dos Bispos que marcaram a preparação do Jubileu, elaborando válidas directrizes para o anúncio actual do Evangelho nos múltiplos contextos e nas diversas culturas? Este rico património de reflexão não deve ser esquecido, mas levado à acção concreta.
Espera-nos, portanto, uma entusiasmante obra de relançamento pastoral; uma obra que nos toca a todos. Entretanto, como incitamento e orientação comum, desejo apontar algumas prioridades pastorais que a experiência do Grande Jubileu me fez ver com particular intensidade.

A santidade
30. Em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para que deve tender todo o caminho pastoral é a santidade. Não era isso também o objectivo último da indulgência jubilar, enquanto graça especial oferecida por Cristo para que a vida de cada baptizado pudesse purificar-se e renovar-se profundamente?
Espero que tenham sido tantos, dentre os que participaram no Jubileu, aqueles que gozaram de tal graça, com plena consciência do seu carácter exigente. Terminado o Jubileu, volta-se ao caminho ordinário, mas apontar a santidade permanece de forma mais evidente uma urgência da pastoral.
Assim, é preciso redescobrir, em todo o seu valor programático, o capítulo V da Constituição dogmática Lumen gentium, intitulado « vocação universal à santidade ». Se os padres conciliares deram tanto relevo a esta temática, não foi para conferir um toque de espiritualidade à eclesiologia, mas para fazer sobressair a sua dinâmica intrínseca e qualificativa. A redescoberta da Igreja como « mistério », ou seja, como « um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo »,15 não podia deixar de implicar um reencontro com a sua « santidade », entendida no seu sentido fundamental de pertença Àquele que é o Santo por autonomásia, o « três vezes Santo » (cf. Is 6,3). Professar a Igreja como santa significa apontar o seu rosto de Esposa de Cristo, que a amou entregando-Se por ela precisamente para a santificar (cf. Ef 5,25-26). Este dom de santidade, por assim dizer, objectiva é oferecido a cada baptizado.
Mas, o dom gera, por sua vez, um dever, que há-de moldar a existência cristã inteira: « Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação » (1 Tes 4,3). É um compromisso que diz respeito não apenas a alguns, mas « os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade ».16

31. A recordação desta verdade elementar, para fazer dela o fundamento da programação pastoral que nos ocupa ao início do novo milénio, poderia parecer, à primeira vista, algo de pouco operativo. Pode-se porventura « programar » a santidade? Que pode significar esta realidade na lógica dum plano pastoral?
Na verdade, colocar a programação pastoral sob o signo da santidade é uma opção carregada de consequências. Significa exprimir a convicção de que, se o Baptismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do seu Espírito, seria um contra-senso contentar-se com uma vida medíocre, pautada por uma ética minimalista e uma religiosidade superficial. Perguntar a um catecúmeno: « Queres receber o Baptismo? » significa ao mesmo tempo pedir-lhe: « Queres fazer-te santo? » Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermão da Montanha: « Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste » (Mt 5,48).
Como explicou o Concílio, este ideal de perfeição não deve ser objecto de equívoco vendo nele um caminho extraordinário, percorrível apenas por algum « génio » da santidade. Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. Agradeço ao Senhor por me ter concedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristãos, entre os quais numerosos leigos que se santificaram nas condições ordinárias da vida. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta « medida alta » da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direcção. Mas é claro também que os percursos da santidade são pessoais e exigem uma verdadeira e própria pedagogia da santidade, capaz de se adaptar ao ritmo dos indivíduos; deverá integrar as riquezas da proposta lançada a todos com as formas tradicionais de ajuda pessoal e de grupo e as formas mais recentes oferecidas pelas associações e movimentos reconhecidos pela Igreja.
A oração

32. Para esta pedagogia da santidade, há necessidade dum cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração. O ano jubilar foi um ano de oração, pessoal e comunitária, mais intensa. Mas a oração, como bem sabemos, não se pode dar por suposta; é necessário aprender a rezar, voltando sempre de novo a conhecer esta arte dos próprios lábios do divino Mestre, como os primeiros discípulos: « Senhor, ensina-nos a orar » (Lc 11,1). Na oração, desenrola-se aquele diálogo com Jesus que faz de nós seus amigos íntimos: « Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15,4). Esta reciprocidade constitui precisamente a substância, a alma da vida cristã, e é condição de toda a vida pastoral autêntica. Obra do Espírito Santo em nós, a oração abre-nos, por Cristo e em Cristo, à contemplação do rosto do Pai. Aprender esta lógica trinitária da oração cristã, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial,17 mas também na experiência pessoal, é o segredo dum cristianismo verdadeiramente vital, sem motivos para temer o futuro porque volta continuamente às fontes e aí se regenera.

33. Não será porventura um « sinal dos tempos » que se verifique hoje, não obstante os vastos processos de secularização, uma generalizada exigência de espiritualidade, que em grande parte se exprime precisamente numa renovada carência de oração? Também as outras religiões, já largamente presentes nos países de antiga cristianização, oferecem as suas respostas a tal necessidade, chegando às vezes a fazê-lo com modalidades cativantes. Nós que temos a graça de acreditar em Cristo, revelador do Pai e Salvador do mundo, temos obrigação de mostrar a profundidade a que pode levar o relacionamento com Ele.
A grande tradição mística da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, é bem elucidativa a tal respeito, mostrando como a oração pode progredir, sob a forma dum verdadeiro e próprio diálogo de amor, até tornar a pessoa humana totalmente possuída pelo Amante divino, sensível ao toque do Espírito, abandonada filialmente no coração do Pai. Experimenta-se então ao vivo a promessa de Cristo: « Aquele que Me ama será amado por meu Pai, e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele » (Jo 14,21). Trata-se dum caminho sustentado completamente pela graça, que no entanto requer grande empenhamento espiritual e conhece também dolorosas purificações (a já referida « noite escura »), mas desemboca, de diversas formas possíveis, na alegria inexprimível vivida pelos místicos como « união esponsal ». Como não mencionar aqui, entre tantos testemunhos luminosos, a doutrina de S. João da Cruz e de S. Teresa de Ávila?
As nossas comunidades, amados irmãos e irmãs, devem tornar-se autênticas « escolas » de oração, onde o encontro com Cristo não se exprima apenas em pedidos de ajuda, mas também em acção de graças, louvor, adoração, contemplação, escuta, afectos de alma, até se chegar a um coração verdadeiramente « apaixonado ». Uma oração intensa, mas sem afastar do compromisso na história: ao abrir o coração ao amor de Deus, aquela abre-o também ao amor dos irmãos, tornando-nos capazes de construir a história segundo o desígnio de Deus.18

34. Sem dúvida que são chamados de modo particular à oração os fiéis que tiveram o dom da vocação a uma vida de especial consagração: esta, por sua natureza, torna-os mais disponíveis para a experiência contemplativa, sendo importante que eles a cultivem com generoso empenho. Mas seria errado pensar que o comum dos cristãos possa contentar-se com uma oração superficial, incapaz de encher a sua vida. Sobretudo perante as numerosas provas que o mundo actual põe à fé, eles seriam não apenas cristãos medíocres, mas « cristãos em perigo »: com a sua fé cada vez mais debilitada, correriam o risco de acabar cedendo ao fascínio de sucedâneos, aceitando propostas religiosas alternativas e acomodando-se até às formas mais extravagantes de superstição.
Por isso, é preciso que a educação para a oração se torne de qualquer modo um ponto qualificativo de toda a programação pastoral. Eu mesmo propus-me dedicar as próximas catequeses das quartas-feiras à reflexão sobre os Salmos, começando pelos salmos das Laudes, a oração pública com que a Igreja nos convida a consagrar e dar sentido aos nossos dias.
Seria de grande proveito que se diligenciasse com maior empenho nas comunidades não só religiosas mas também paroquiais para que o clima fosse permeado de oração, valorizando com o devido discernimento as formas populares, e sobretudo educando para as formas litúrgicas. A ideia de um dia da comunidade cristã, em que se conjuguem, os múltiplos compromissos pastorais e de testemunho no mundo, com a celebração eucarística e mesmo com a reza de Laudes e Vésperas, é talvez mais « pensável » do que se crê. Demonstra-o a experiência de tantos grupos cristãmente empenhados, mesmo com forte presença laical.

A Eucaristia dominical
35. Há-de-se pôr o máximo empenho na liturgia, « a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte donde promana toda a sua força ».19 No século XX, sobretudo depois do Concílio, a comunidade cristã cresceu muito no modo de celebrar os Sacramentos, sobretudo a Eucaristia. É preciso prosseguir nesta direcção, dando particular relevo à Eucaristia dominical e ao próprio domingo, considerado um dia especial de festa, dia do Senhor ressuscitado e do dom do Espírito, verdadeira Páscoa da semana.20 Há dois mil anos que o tempo cristão é marcado pela recordação daquele « primeiro dia depois do sábado » (Mc 16,2.9; Lc 24, 1; Jo 20,1), quando Cristo ressuscitado trouxe aos Apóstolos o dom da paz e do Espírito (cf. Jo 20,19-23). A verdade da ressurreição de Cristo é o dado primordial, sobre o qual se apoia a fé cristã (cf. 1 Cor 15,14), um facto que está situado no centro do mistério do tempo, e prefigura o último dia em que Jesus voltará glorioso. Não sabemos os acontecimentos que nos reserva o milénio que está a começar, mas temos a certeza de que este permanecerá firmemente nas mãos de Cristo, o « Rei dos reis e Senhor dos senhores » (Ap 19,16); e, celebrando precisamente a sua Páscoa não só uma vez por ano mas todos os domingos, a Igreja continuará a indicar a cada geração « o eixo fundamental da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino final do mundo ».21

36. Por isso, desejo insistir, na linha do que disse na Carta apostólica Dies Domini, em que a participação na Eucaristia seja verdadeiramente, para cada baptizado, o coração do domingo: um compromisso irrenunciável, abraçado não só para obedecer a um preceito mas como necessidade para uma vida cristã verdadeiramente consciente e coerente. Estamos a entrar num milénio que se anuncia caracterizado por uma profunda amálgama de culturas e religiões mesmo nos países de antiga cristianização. Em muitas regiões, os cristãos são — ou vão-se tornando — um « pequenino rebanho » (Lc 12,32). Isto coloca-os perante o desafio de testemunharem com mais força, muitas vezes em condições de solidão e hostilidade, os aspectos específicos que os identificam. Um deles é a obrigação de participar todos os domingos na celebração eucarística. Ao congregar semanalmente os cristãos como família de Deus à volta da mesa da Palavra e do Pão de vida, a Eucaristia dominical é também o antídoto mais natural contra o isolamento; é o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada. Precisamente através da participação eucarística, o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja,22 a qual poderá assim desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade.

O sacramento da Reconciliação
37. Solicito ainda uma renovada coragem pastoral para, na pedagogia quotidiana das comunidades cristãs, se propor de forma persuasiva e eficaz a prática do sacramento da Reconciliação. Em 1984, como recordareis, intervim sobre este tema através da Exortação pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia, na qual foram recolhidos os frutos da reflexão duma Assembleia do Sínodo dos Bispos dedicada a esta problemática. Lá, convidava a que se fizesse todo o esforço para superar a crise do « sentido do pecado », que se verifica na cultura contemporânea,23 e, mais ainda, que se voltasse a descobrir Cristo como mysterium pietatis, no qual Deus nos mostra o seu coração compassivo e nos reconcilia plenamente Consigo. Tal é o rosto de Cristo que importa fazer redescobrir também através do sacramento da Penitência, que constitui, para um cristão, « a via ordinária para obter o perdão e a remissão dos seus pecados graves cometidos depois do Baptismo ».24 Quando o referido Sínodo se debruçou sobre o tema, estava à vista de todos a crise deste Sacramento, sobretudo nalgumas regiões do mundo. E os motivos que a originaram, não desapareceram neste breve espaço de tempo. Mas o ano jubilar, que foi caracterizado particularmente pelo recurso à Penitência sacramental, ofereceu-nos uma estimulante mensagem que não deve ser perdida: se tantos fiéis — jovens muitos deles — se aproximaram frutuosamente deste Sacramento, provavelmente é necessário que os Pastores se armem de maior confiança, criatividade e perseverança para o apresentarem e fazerem-no valorizar. Não devemos render-nos, queridos Irmãos no sacerdócio, diante de crises temporâneas! Os dons do Senhor — e os Sacramentos contam-se entre os mais preciosos deles — vêm d'Aquele que bem conhece o coração do homem e é o Senhor da história.

O primado da graça
38. No âmbito da programação que nos espera, apostar com a maior confiança numa pastoral que contemple o devido espaço para a oração pessoal e comunitária significa respeitar um princípio essencial da visão cristã da vida: o primado da graça. Há uma tentação que sempre insidia qualquer caminho espiritual e também a acção pastoral: pensar que os resultados dependem da nossa capacidade de agir e programar. É certo que Deus nos pede uma real colaboração com a sua graça, convidando-nos por conseguinte a investir, no serviço pela causa do Reino, todos os nossos recursos de inteligência e de acção; mas ai de nós, se esquecermos que, « sem Cristo, nada podemos fazer » (cf. Jo 15,5).
É a oração que nos faz viver nesta verdade, recordando-nos constantemente o primado de Cristo e, consequentemente, o primado da vida interior e da santidade. Quando não se respeita este primado, não há que maravilhar-se se os projectos pastorais se destinam ao falimento e deixam na alma um deprimente sentido de frustração. Repete-se então connosco aquela experiência dos discípulos narrada no episódio evangélico da pesca miraculosa: « Trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos » (Lc 5,5). Esse é o momento da fé, da oração, do diálogo com Deus, para abrir o coração à onda da graça e deixar a palavra de Cristo passar por nós com toda a sua força: Duc in altum! Na pesca de então, foi Pedro que disse a palavra de fé: « À tua palavra, lançarei as redes » (Lc 5,5). Neste início de milénio, seja permitido ao Sucessor de Pedro convidar toda a Igreja a este acto de fé, que se exprime num renovado compromisso de oração.

Escuta da Palavra
39. Não há dúvida que este primado da santidade e da oração só é concebível a partir duma renovada escuta da palavra de Deus. Desde o Concílio Vaticano II, que assinalou o papel proeminente da palavra divina na vida da Igreja, muito se avançou certamente na escuta assídua e na leitura atenta da Sagrada Escritura. Foi-lhe garantido o lugar de honra que merece na oração pública da Igreja. A ela recorrem já em larga medida os indivíduos e as comunidades, e há muitos entre os próprios fiéis leigos que dela se ocupam, habilitados com a ajuda preciosa de estudos teológicos e bíblicos. E sobretudo há a obra da evangelização e da catequese que se tem revitalizado precisamente pela atenção à palavra de Deus. É preciso, amados irmãos e irmãs, consolidar e a

Fonte Ecclesia

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