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Portugal tão longe
2001-01-07 10:17:57

José Blanco, um dos administradores da Fundação Calouste Gulbenkian, escreve acerca da cerimónia, soleníssima, que marcou a reabertura da igreja do Santo Rosário, construída há 323 anos pelos missionários agostinhos portugueses em Daca, capital do Bangladesh. A festa, celebrada em Dezembro por cinco bispos e 20 padres, contou com a presença de 5500 fiéis. A reconstrução do monumento teve o patrocínio da própria fundação, cujo esforço de recuperação dos traços da presença de Portugal no mundo tem sido notável

No fim da cerimónia religiosa que marcou a reabertura da igreja do Santo Rosário, construída pelos missionários agostinhos portugueses em 1677 em Daca, capital do Bangladesh, e agora restaurada pela Fundação Gulbenkian, um participante anónimo dirigiu-se-me com uma pergunta: «As colunas da igreja são sólidas?» Respondi, sem hesitação: «Meu caro senhor, as colunas sustentam esta igreja há 323 - julgo que é prova bastante de solidez…» É, efectivamente, excepcional (e espectacular) a presença das 12 colunas que subdividem em três naves o corpo maior da igreja.

A cerimónia, soleníssima, decorreu no dia 17 de Dezembro passado. Cinco bispos. Vinte padres. Cinco mil e quinhentas pessoas. Alegria esfuziante e fervor religioso. Nestas poucas palavras poderá resumir-se uma das mais recentes manifestações de fé cristã em país muçulmano.

Sob a presidência do arcebispo de Daca, do patriarca de Lisboa e do núncio apostólico, a missa solene e procissão do Santíssimo que se lhe seguiu vieram culminar um projecto de quase seis anos, num país em que se sabia ter existido há muito uma importante presença portuguesa, mas de que estavam esquecidos os actuais vestígios.



Foi assim com surpresa que, num dia dos idos de 1995, Ferrer Correia, presidente do Conselho de Administração da Fundação Gulbenkian, recebeu a visita do então alto-comissário do Bangladesh em Londres e embaixador não residente daquele país em Portugal, A.F.M. Yusuf. O embaixador, acompanhado pelo cônsul-geral do Bangladesh no Porto, Axel Wolter (desde a primeira hora co-impulsionador entusiasta deste projecto), vinha solicitar o apoio da fundação para a realização de um levantamento do que ainda existia da presença portuguesa em Bengala Oriental, iniciada em 1517.

A iniciativa teve desde o início acolhimento favorável por parte da fundação, tendo sido solicitada informação fotográfica discriminada do que se sabia ainda existir. Recebida essa informação no início de 1997, foi enviada uma missão ao Bangladesh para tomar contacto directo com a realidade local. Foi grande a surpresa dos elementos da missão - o director do serviço internacional da fundação, João Pedro Garcia, e os consultores Maria Helena Mendes Pinto e João Campos.

Na verdade, quer em Daca quer em Chittagong (as duas principais cidades do país então visitadas), surgiram traços visíveis da presença portuguesa, ali deixada há mais de três séculos, tanto nos nomes dos mortos gravados nas pedras tumulares dos cemitérios, como nos dos vivos (todos os sete bispos do Bangladesh têm nome de família Rozário, Gomes ou Costa…). Por outro lado, há igrejas dos tempos dos portugueses nos arredores da capital - uma delas, a capela de Santo António de Panjorá, tem bem à vista, no alto da fachada, uma legenda: «Missões Portuguesas de Bengala», a data de 1906 e o escudo da monarquia portuguesa. Na cidade de Daca, a igreja do Santo Rosário mereceu a atenção prioritária da fundação pela sua importância histórica e religiosa, pois se trata do único edifício do tempo dos portugueses existente na capital da antiga província de Bengala Oriental, que a partir de 1947 foi o Paquistão Oriental e, desde 1971, o Bangladesh independente.



Recebido o pedido formal de apoio por parte do arcebispo de Daca, elaborado o projecto de restauro por João Campos e após negociações com M. Zakaria, o empreiteiro local responsável pelos trabalhos, as obras tiveram início em 22 de Março de 2000, tendo ficado concluídas alguns dias antes da inauguração, cumprindo-se à risca o plano traçado desde o início das intervenções. Tratando-se de um dos países mais carentes do chamado Terceiro Mundo, foi extraordinário (e consolador) verificar como tanto os orçamentos como os prazos de execução foram escrupulosamente cumpridos.

Os trabalhos de recuperação incluíram a substituição do telhado, o restauro de todos os estuques (realizado por artífices locais), a remoção das pedras tumulares do chão para as paredes laterais, a pintura interior e exterior (também feita por artistas locais). Foram repostas as 28 aberturas descobertas durante as obras - portas, janelas, escadas e nichos. Um dos trabalhos mais difíceis e mais onerosos foi a desinfestação global do edifício, indispensável para a sua conservação no futuro.

Embora o interior da igreja seja tipicamente português, o aspecto final do exterior é uma surpreendente mistura da arquitectura religiosa do Ocidente e do Oriente. Em muitos pormenores de ornamentação da fachada são nítidas as semelhanças com a mesquita de Shab Bez Khan, monumento mogol construído na mesma época, ali bem perto. Dir-se-ia uma peça arquitectónica pós-moderna, em cuja fachada restaurada os verdes, os amarelos, os azuis e os vermelhos formam uma girândola festiva de cores. Com influências cristãs e muçulmanas entrelaçadas, pode ser olhada como um símbolo de tolerância e de paz entre as duas comunidades. (A população do Bangladesh é calculada em 130 milhões de habitantes, dos quais 83% são muçulmanos. Apenas cerca de 600.000 almas - menos de meio por cento da população! - professam a religião católica).


Depois da missa inaugural, na igreja nova, na presença de toda a delegação portuguesa, os católicos de Daca, capital do Bangladesh, foram visitar a Igreja do Santo Rosário, cuja restauração começou em Maio de 1999 e terminou em Dezembro passado


Dezenas da pedras tumulares no chão da igreja (e agora incrustadas nas paredes laterais do templo) contam a história de famílias com nomes portugueses. A mais antiga data de 1714 e é bilingue, em arménio e em português, revelando a união de duas diásporas espalhadas por todo o mundo. Gravados na pedra, lêem-se nomes como os de Angelique d'Freitas, Clemente Francis dos Anjos, Pascoal dos Anjos, Virgínia Frances Dias, Manuel Alfonzo Dias, Elisabeth Cabral, Ritta Rebello, Constância Leal, Alexis Xavierius Gonçalves, Simão Soares, Padre Pio de Souza…

A inauguração foi uma verdadeira festa como já raramente se vê na Europa. Era domingo, dia útil no muçulmano Bangladesh, e mesmo assim mais de cinco mil pessoas vestidas a rigor se deslocaram à igreja não só para cumprir o preceito dominical mas também para participar, com alegria mesclada de orgulho, numa iniciativa que lhe era querida.

Foi impressionante testemunhar não apenas a devoção mas também a dignidade com que aquela multidão participou na missa e na procissão que se lhe seguiu. Nesta última, o patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, levou a Custódia, especialmente encomendada em Roma para a cerimónia pelo arcebispo de Daca.



A influência oriental fez-se sentir em muitos momentos. Um exemplo apenas: em vez de se utilizarem turíbulos à maneira ocidental, a incensação do altar, dos celebrantes e dos fiéis é feita com bandejas em que arde o incenso cercado por uma bordadura de flores. As bandejas são trazidas até ao altar por raparigas vestindo os seus mais belos saris e elas próprias enfeitadas de flores, que descem, em movimentos elegantes de dança oriental, a coxia central da igreja. A incensação pelo celebrante faz-se também em gestos lentos circulares com a bandeja, até formar o sinal da cruz.

Em nome da Igreja de Lisboa, o patriarca D. José Policarpo teve a feliz lembrança de fazer, na pessoa do arcebispo Michael Rozário, um generoso donativo à Igreja de Daca - «Igreja pobre e para os pobres», como sentidamente a definiu no discurso proferido na cerimónia de inauguração.

A restaurada igreja do Santo Rosário será utilizada não apenas para reuniões das associações de leigos da paróquia de Tejgaong, onde está inserida, mas também, e muito especialmente, para um acto de culto: a Adoração do Santíssimo Sacramento, que, conforme o núncio apostólico sublinhou no seu discurso, foi introduzida em Bengala Oriental pelos missionários portugueses no século XVII - ou seja, na mesma época em que a própria igreja foi construída. À recuperação material do edifício corresponde, assim, o reviver de uma tradição espiritual interrompida durante muitas dezenas de anos, por falta de espaço religioso apropriado.



O restauro da igreja do Santo Rosário foi o décimo primeiro projecto da série que, desde há alguns anos, a Fundação Gulbenkian vem realizando no domínio da recuperação do património histórico português construído no mundo (Marrocos, Benin, Quénia, Índia, Malásia, Tailândia, Brasil, Uruguai e Holanda). Por todos os motivos, foi um dos mais gratificantes.

Eduardo Lourenço escreveu há tempos: «Ninguém, a começar pelos próprios portugueses, poderá compreender a singularidade da cultura portuguesa, entre todas as outras da Europa, sem ter em conta esta 'aventura nos mares da China' que, para além dos seus efeitos políticos, guerreiros, económicos e religiosos, foi, num sentido novo, a primeira aventura da civilização europeia no mundo (…). O único e autêntico mito da cultura portuguesa é o do Império nascido dos Descobrimentos, hoje perdido, mas mais presente do que nunca no imaginário português.»

Com a realização deste projecto no Bangladesh, provou-se, mais uma vez, que ao nosso imaginário corresponde, efectivamente, uma realidade, por muito longínqua que seja. A recuperada igreja do Santo Rosário, edifício de pedra e cal construído há mais de 300 anos, é agora um elemento vivo do Quinto Império espiritual de que falava Fernando Pessoa e que ainda hoje nos une a tantos e tão diversos povos. Onde quer que esteja, o Poeta visionário certamente ficará satisfeito por, novamente, lhe termos dado razão.


Fonte Expresso

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