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Novidades de um jornal católico
2002-09-17 21:04:12

Um jornal católico deve produzir, processar e transmitir informação, escrita e diária, de forma a promover as bem-aventuranças: a justiça e a paz, a humildade e a misericórdia. O problema parece simples mas contém três saltos conceptuais pouco nítidos, associados a três mitos muito comuns no jornalismo: o mito da verdade dos factos, o mito da moralidade dos actos e o mito da inevitabilidade dos efeitos.

O mito da verdade dos factos assume que o relato jornalístico dos acontecimentos não só é neutro em termos das reacções e consequências que desencadeia, como não é enviesado pelos referenciais de leitura e de linguagem de um jornalista profissional. Ora sabemos que assim não é. A selecção dos acontecimentos e das fontes, a sensibilidade às diferentes facetas das ocorrências e a sua descrição mais ou menos adjectivada, condicionam a forma e o conteúdo do relato. Por outro lado as reacções e consequências dos silêncios e descrições são limitadas pela própria realidade e pelos quadros de referência, capacidades e objectivos dos receptores. A atitude mais comum da Igreja face a este primeiro mito jornalístico é de retracção. Primeiro seleccionando apenas os jornalistas que têm capacidade de discernimento. Depois limitando os receptores aos participantes de eucaristias e aulas, bem como aos assinantes de boletins e revistas. Não pode ser esta a postura de um jornal católico. Por um lado porque é complicado ajuizar e rotular a capacidade de discernimento dos jornalistas. Por outro lado é limitado condicionar o espaço de evangelização ao universo dos mais evangelizados.
O mito da moralidade dos actos justifica que o jornalista raramente ponha em causa o senso comum que, afinal de contas, está subjacente à orientação moralista dos seus leitores/clientes. No fundo trata-se de relatar propostas de actos futuros conferindo-lhes a carga positiva ou negativa que o senso comum assume ou parece assumir no momento. Realmente é uma questão de moda ou, se quiserem, de jornalisticamente correcto. E o jornalisticamente correcto está invariavelmente associado ao poder que é, ou àquele que julgam que será. A resposta mais comum da Igreja ao mito jornalístico da moralidade dos actos é hierárquica, cuidadosa e de difícil leitura e interpretação. O Papa e os Bispos condenam a guerra mas os cristãos alinham com um ou outro dos beligerantes. O Papa e os Bispos publicam cartas e encíclicas mas os jornais não as reflectem nas orientações moralizadoras mais marcadas pelo utilitarismo paroquial do senso comum.
Finalmente o mito da inevitabilidade dos efeitos alheia o jornalista de qualquer responsabilidade sobre a realidade que relata. Para ele os efeitos são apenas mais factos a reportar não se apercebendo que o próprio relato modifica e precipita os efeitos dos actos. É assim tentador pré - anunciar factos confundindo facilmente jornalismo com propaganda. É de alguma forma tentador colaborar com o inevitável, precipitando-o; o inevitável da guerra e dos muros, o inevitável do vencedor e do vencido. E o que faz a Igreja face ao inevitável jornalístico? Simplesmente muda de referencia temporal; alheia-se do comezinho da decisão política mensal e reporta-se para a importância das reformas institucionais de longo prazo. Que sentido faz assim um jornal diário católico?
Para formular o desígnio ou perfil de um jornal católico é necessário reformular estes mitos jornalísticos e reapreciar as relações entre a produção, processamento e transmissão de informação e a promoção efectiva da mensagem das bem-aventuranças. Para isso propomos sistematizar os conceitos de informação e comunicação; depois, com base nessa clarificação, sugerir um interpretação consequente dos objectivos do jornalismo; e, finalmente, apresentar alguns casos concretos associados à experiência de director de um jornal católico.
A informação é o objecto do trabalho jornalístico e a matéria prima da sua vocação. E informação é muita coisa: São os dados que transformamos em sinais através de códigos e de testes de veracidade. São decisões que repercutimos em actos moldados racionalmente pelos nossos objectivos e pelos poderes ao nosso alcance. São também os efeitos que sentimos e percepcionamos, fruto da nossa interacção com os sítios e as gentes que nos circundam (Figura 1). Informação é tudo isso e muito mais. Organiza-se em conhecimento, operacionaliza-se em saberes e redime-se em Graça. Mais ainda, como diz João Paulo II, a Fé - pela qual damos significado aos dados do Real - e a Razão - que dá sentido às nossas decisões - são as asas que nos conduzem à Verdade. E é pela Verdade que se deve orientar um jornal católico. Então porquê tratar apenas os dados que nos vêm das fontes? Que fazemos de todas as outras facetas da informação: dos sinais, das decisões, dos actos, dos efeitos, dos objectivos, do conhecimento, das capacidades, da sabedoria, da Graça, da Fé, da Razão e da Verdade?

Figura 1: Tipos de Informação

Naturalmente que a função de um jornal católico não é a informação mas a comunicação. No entanto, se tomarmos o pequeno modelo da informação da Figura 1, é possível perceber que a comunicação trata no fundo da emissão e recepção de informação codificada. Desta forma, embora seja importante estar atento e descrever os factos, o fundamental em comunicação social parece ser mais do que isso, nomeadamente: o sinal que comunico sobre o facto; a percepção que o público e os políticos têm daquela comunicação; a reacção do poder político à primeira comunicação dos factos; a comunicação que faço sobre a reacção política; e, finalmente, a interpretação do público sobre a segunda comunicação. O drama é que, como se disse, todo este processo não é neutro. Desde logo porque a codificação que os jornalistas fazem do real não o é. Depois porque a reacção dos políticos também não é desinteressada. Em terceiro lugar porque a atitude dos jornalistas face aos políticos está longe de ser inóqua. Finalmente porque a própria estrutura de codificação do público é enviesada.
Uma vez esclarecidos os conceitos de informação e comunicação, faz sentido tentar definir os objectivos operacionais de um jornal católico.
O primeiro objectivo é informar o público face ao seu poder de reacção e aos seus objectivos e não a alienação desse mesmo público com sinais inconsistentes com a realidade ou não orientados para a capacidade de decisão das pessoas.
O segundo objectivo é ajudar a formar os valores e objectivos dos políticos e do público. No fundo com os valores das bem-aventuranças e não pelo reforço de ideologias desligadas da realidade e da liberdade.
O terceiro objectivo tem a ver com a socialização da comunicação ou, se quiserem, com a sua efectividade em termos de decisão. E a questão mais uma vez está em aberto. Para que poderes queremos produzir informação? Para as pessoas ou para os políticos?
Para facilitar a compreensão convém confrontar estes objectivos com três casos reais da história recente de um jornal católico. Casos que, afinal de contas, serviram para moldar os objectivos agora expostos.
O primeiro caso tem a ver com a escolha de jornalistas e colaboradores com discernimento que, como disse atrás, caracteriza a postura tradicional da Igreja nos órgãos de comunicação social. E faz todo o sentido. O problema é avaliar a capacidade de discernimento das pessoas. A história é esta: Há tempos convidei um colaborador para escrever no jornal que dirijo e o primeiro artigo que me apresentou foi sobre o aborto, numa postura de análise séria que, contudo, não era claramente consentânea com a posição da Igreja, que é também a minha. Demorei algumas horas a decidir o que fazer e, no fim, optei por publicar o artigo com uma nota que, no fundo, dizia que o jornal deveria ser um espaço de reflexão sério através do qual as pessoas tivessem oportunidade de discernir pela escrita e pela leitura. Foi então claro para mim que não se tratava tanto de escolher pessoas com um discernimento parecido com o meu, mas sim de colocar o jornal ao serviço do discernimento das pessoas. Dito de outra forma um jornal católico não era apenas um relator de factos com uma visão discernida, mas sim um espaço de discernimento através do relato e análise séria mas diversificada dos factos. A verdade dos factos está mais no coração e na razão de quem escreve e lê do que no registo marcadamente sensitivo dos acontecimentos.
O segundo caso tem a ver com a denúncia por um nosso leitor acusando-nos de uma preferência por uma determinada força partidária. A acusação era grave e, com algum trabalho, fiz a análise de conteúdo dos jornais do primeiro mês em que estive em funções. Curiosamente o peso das notícias de cada partido no jornal era extremamente equilibrado revelando até uma distribuição consentânea com a votação dos partidos. Mas a vocação de um jornal de igreja não é de equilíbrio entre as forças partidárias! Isso são regras subjacentes ao mito da moralidade dos actos que variam com as modas da correcção. Um jornal da Igreja não deve dar preferência a nenhum partido. Deve contudo tomar partido. Deve tomar partido pelos pobres e pelos que sofrem; deve defender a paz e a justiça; deve pugnar pela bondade e pela verdade. Como se faz? Não sei bem, mas quero ir aprendendo nas edições de todos os dias. Faz-se com o relato de factos e cenários, com a identificação de problemas e potencialidades, e com a apresentação e discussão de soluções e expectativas. Acontece que, em democracia, a atitude dos partidos face aos factos, aos problemas e às soluções é essencial para apoiar as decisões dos governantes e dos seus eleitores. É assim importante relatar essas atitudes para que melhor se resolvam os problemas da pobreza e do sofrimento, da guerra e da injustiça, da maldade e da mentira. É muitas vezes difícil manter esta perspectiva, ao mesmo tempo isenta face aos partidos e consequente em termos dos objectivos apontados. Mas não conhecemos outra forma senão a troca de ideias, a reflexão, a decisão e a acção.
O último caso concreto que tenho para partilhar é mais complexo. Na realidade trata-se de redimir o mito da inevitabilidade dos efeitos tão assumido pelos jornalistas. Como é possível ultrapassar a colaboração escravizante com o inevitável? Como tornar a verdade incontornável? Não sei. Apenas vos posso revelar algumas falácias sobre o jornalismo que, no fundo, se associam ao mito da inevitabilidade. Primeiro, a falácia do quarto poder. De facto, de uma forma geral, não vi a presença do quarto poder no jornalismo; pelo contrário, o que vi, foi considerarem inevitável a continuação do Estado Novo, do Processo Revolucionário em Curso, das ditaduras eleitorais das Regiões Autónomas e por aí fora. Segundo, a falácia das fontes. Na verdade vi pouco o relato cuidadoso, pesquisador, analítico e consequente dos factos; pelo contrário, o que vi, foi o anúncio de projectos e programas e a denúncia fugaz de escândalos, guerras e desastres. Em suma é possível fazer melhor, sempre. E é esse também o desafio do jornalismo católico.

Tomaz Ponce Dentinho
Director do Jornal A União

Fonte Ecclesia

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