paroquias.org
 

Notícias






Lourdes Pintasilgo escreve sobre a 97ª viagem do Papa
2002-08-03 13:58:16

A última viagem de João Paulo II ao Canadá, à Guatemala e ao México foi um momento raro e forte na vida da Igreja Católica. Diante de nós, num tempo em que tantos, face às dificuldades, se apressam a deixar a cena, aparece um homem que sobrepõe às suas enormes limitações a ener-gia dos que sabem que a vida nos é dada para a vivermos até ao limite.

Numa época em que tantos se deixam submergir pelo stress de tarefas não escolhidas, aparece um homem que rea-firma o sentido primeiro da sua missão e que o faz para além do limite do razoável.

É evidente hoje que esta não-razoabilidade das viagens do Papa acorda em nós uma estranha perplexidade. Hoje este homem é uma presença que desassossega, que nos dei-xa inquietos. «Faz impressão», dizem alguns. «Devia resig-nar», dizem outros. «Resignar»? Não é a questão mais im-portante: um místico homem de acção como João Paulo II, ao afirmar que cumprirá a sua missão até Deus querer, sa-be que nada é deixado ao acaso na Igreja e que não have-rá «vazio de poder». Mas «faz impressão»? Faz. Estamos demasiado confrontados todos os dias com a miséria, as ca-tástrofes vividas por milhões de seres humanos, que reagi-mos quase com indiferença ou, quando muito, temos uma palavra compadecida e passamos adiante. O hedonismo, que parece varrer tudo, impede-nos a atenção ao sofrimen-to, empurrando para a marginalidade o que é doente, diminuído, desfigurado, trágico e só.

E se essa presença de João Paulo II em lugares onde, segundo o que é razoável, ele não poderia deslocar-se, viesse forçar a nossa atenção? Sem que intimamente nos demos conta (ou damos?), este homem público é um ícone do imenso sofrimento de todos os seres huma-nos e sobretudo daquelas centenas de milhões para quem nem sequer somos capazes de olhar. Acorda-nos para a funda realidade que tentamos esconder de nós próprios: o ser humano não é só a sede inalienável de direitos defini-dos pela sua intrínseca dignidade. Ele é também lugar da mais total e absoluta vulnerabilidade. João Paulo II põe diante de nós o absurdo da sua própria vulnerabilidade. Se ao menos os cristãos percebessem essa mensagem, o mun-do mudaria de facto. Porque haveria que dar atenção, nu-ma prioridade não negociável, aos mais vulneráveis.
O motivo das viagens não pertence à categoria das mani-festações de poder nem tão-pouco a um vestígio de cedência ao culto da personalidade. Se o fora, como aceitaria João Paulo II dar-se a ver agora na sua fragilidade humana, no processo lento da sua decadência física? Este homem que parece pôr em causa em cada passo a sua sobrevivência, cujas palavras mal se entendem, é o mesmo que vimos há mais de vinte anos a subir montanhas, a descer lesto do avião após longas viagens e que se ajoelhava sem qualquer ajuda para beijar o chão. Este homem é o mesmo que denunciava com igual vigor o totalitarismo comunista e o liberalismo capitalista, condenando sem hesitação o «pecado estru-tural» (como lhe chamou) que rejeita milhões de pessoas pa-ra a crueldade de uma vida infra-humana. Este homem é o mesmo que aproximava todas as grandes religiões e sabia que essa era uma via para a paz entre os homens.
Este homem é o mesmo que, em qualquer das várias línguas em que se exprime, respondia aos jovens com convicções inaba-lá-veis e com o seu oportuno sentido de humor.

Desde o início do seu pontificado, João Paulo II deixou que as suas viagens fossem interpretadas num sentido nobre e tradicional. À semelhança dos apóstolos e dis-cípulos da Igreja primitiva, o Papa ia confortar as comunidades eclesiais em muitos e diversos lugares e contribuir, pela sua presença e palavras, para a missão de evangelização de que se sabia investido. As interpretações «políticas» do sen-tido das viagens não alteraram a rota traçada. Com a distân-cia que dão todos estes anos, vemos que se trata de outra coisa. E é agora, quando João Paulo II vive provavel-mente as últimas viagens permitidas pelo seu estado de saúde, que sur-ge em toda a claridade «o sentido das coisas escondidas». O Papa não confirma apenas a figura de peregrino que Paulo VI inaugurara. E também no plano do próprio entendimen-to da pessoa humana que a sua peregrina-ção ganha novo sentido. Ao viajar de forma aparentemente errática entre vá-rias regiões, João Paulo II está a dizer que os seres humanos não são indivíduos estranhos uns aos outros mas, antes, pes-soas singulares e únicas que partilham o mesmo destino. Diz-nos que uma outra globa-lização – de equidade e de fraternidade entre todos os povos – é possível. E julga-a tão necessária e urgente que por ela arrisca a própria vida.

Fonte Ecclesia

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia