paroquias.org
 

Notícias






A propósito da “Nova Resolução” do Parlamento Europeu em favor do aborto
2002-07-13 12:07:35

Há momentos na História em que os problemas se adensam e assumem uma espessura preocupante. Isso acontece muito particularmente quando cresce e se torna mais profundo e cheio de ameaças o vazio de humanidade. Hoje, realmente, aquilo que preocupa mais não são os aspectos secundários ou marginais, mas por assim dizer o humano enquanto tal, ou seja, a verdade do homem, a sua dignidade, a sua liberdade e o respeito devido às pessoas individualmente assumidas e aos povos. Sobretudo está em causa a coerência na proclamação e defesa dos direitos fundamentais e, primeiro entre todos, do direito à vida (cfr. Declaração Universal dos Direitos do Homem, Nações Unidas, artº. 3º).

Quando sobre este direito fundamental e universal se quer abrir as portas a todas as interpretações e o recurso a todas as excepções com o crime do aborto (que é já negação daquela mesma universalidade), encontramo-nos diante do que Romano Guardini chamava uma “doença do espírito”. E o espírito cai doente quando falta o oxigénio da verdade, sem o qual a própria liberdade fica submetida a risco. O Parlamento Europeu interveio nesta matéria com diferentes “Recomendações” e resoluções (como é agora o caso) que, ainda que não tenham força legal no que diz respeito às nações da Europa, põem contudo em movimento, com mecanismos e modalidades provocatórias e ainda menos respeitadoras da soberania dos povos, propostas que podem criar grande confusão na opinião pública. Para juntar-se a tais objectivos, a verdade é submetida a diferentes manipulações políticas. Procura-se “impor” uma mentalidade que, na realidade, manifesta uma avançada doença do espírito. Não é isso mesmo o que chegou, uma vez mais, com uma das resoluções aprovadas no sentido de tornar “legal, seguro e acessível” o crime de aborto? Isto equivale a uma sentença e a uma execução capital de uma pessoa humana inocente, ainda que o horror desta iniquidade seja duplamente coberto com formulações ambíguas, como “a interrupção voluntária da gravidez”, e com o sistemático e trágico artifício, profeticamente denunciado pelo Santo Padre João Paulo II, de fazer apresentar o “delito” como um “direito” (cfr. Evangelium vitae, 11). Este jogo, não tanto apenas de palavras, mas cheio de trágicos efeitos, abre profundos feridas na própria verdade. A verdade, assim, é encarcerada e asfixiada e o direito sagrado à vida, espezinhado no pior massacre!
Para citar o Nº. 12 da Resolução, o Parlamento Europeu “recomenda, para proteger a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres, que o aborto seja legalizado e seja acessível a todos (Relatório de iniciativa de Anne Van Lancker). Estes termos não são novos. Em pleno Ano Internacional da Família (1994), o Conselho Pontifício para a Família recebeu uma carta com certo carácter oficial da parte do Embaixador dos Estados Unidos junto da Santa Sé, onde nos recordava, como convite implícito, que parássemos de opor-nos às políticas de então do Presidente Clinton, porque visavam apenas abortos (repita textualmente os termos) “legais, seguros e raros”. De imediato, dois aspectos há que chamam a atenção no que diz respeito a estes conceitos: não empregam mais a palavra “raros”, porque esta “raridade” nunca existiu, nem existe e, em contrapartida, o massacre cresce no mundo (é quase como se a Itália inteira fosse liquidada em cada ano) e estender-se-á ainda mais Europa, já como um direito de todos. E bem sabemos o que significa o aborto “legal”, ainda que o próprio conceito de “legalidade” esteja radicalmente viciado, porque nunca uma lei que permite a eliminação de um inocente pode ser tida como não iníqua! É uma “legalidade” que não pode anestesiar a consciência e tais decisões pesam sempre sobre a consciência e sobre a responsabilidade dos legisladores. Nem a “disciplina de partido” poderá reduzir a vergonha de tal atitude, e nem tanto por razões de fé, mas de humanidade que, como tais, não são inacessíveis à razão. Merece em contrapartida gratidão - e a história reconhecê-lo-á um dia (não distante) - a coerência humana de tanto legisladores responsáveis e corajosos que souberam opor-se numa sala de sessões, como observa um jornalista, “partida a meio”. Com efeito, segundo as informações, na sessão plenária de que se fala houve 280 votos a favor, 240 contrários e 28 abstenções.
Sabemos igualmente bem o que significa o termo “aborto seguro”: esta segurança não se refere propriamente às crianças mortas no seio materno, convertido de fontes de vida em sepulcro. A segurança refere-se apenas aos riscos de saúde para a mãe, cujos “direitos” prevalecem sobre os direitos dos concebidos, como se estes fossem apêndices e sua propriedade.
A única triste novidade é esta: o aborto será “acessível”, ou seja, facilitado e barato, distante dos direitos e da tutela da família. Inexplicável “acessibilidade”, quando na Europa várias nações se tornam mais conscientes da “tutela” dos embriões, pelo menos como um processo que se tornará mais exigente no futuro, com necessárias correcções de caminho, e quando, numa nova realidade carregada de esperança, a administração Bush está a favor do direito à vida das crianças desde a concepção e dos direitos da família, com toda a importância política de um tal facto.
Abrir-se-ão, assim, as vias, uma vez introduzida uma cómoda nova definição do aborto, à pílula do “dia seguinte”, apresentada como “não-abortiva”, porque o aborto teria lugar apenas após a instalação do embrião no útero materno e não desde a concepção! Na Recomendação Nº. 6, promove-se a contracepção dita “de emergência” como uma “prática normalizada no domínio da saúde sexual e reprodutiva” Mas cala-se estrategicamente que, neste caso, não há uma verdadeira contracepção, mas uma intervenção claramente abortiva no que toca ao embrião humano, cuja implantação é impedida. É toda uma “nova moral” em função de objectivos políticos que representam um desafio à verdade da procriação humana. Tem toda a razão a Deputada Elisabeth Montfort quando afirma, comentando estas recomendações: “É curioso como o direito à reprodução consiste num catálogo de procedimentos que impedem precisamente essa mesma reprodução.” Aí está a ambiguidade alarmante da proclamada protecção da saúde e dos direitos reprodutivos!
É um momento sombrio, triste, para esta grande Europa – primeiro, ancorada às mais robustas tradições, consciente das suas raízes cristãs, aberta aos direitos de Deus e os homens, aberta à família, ao dom da vida, aos filhos; a Europa que, hoje, sofre o inverno demográfico, doente no espírito em alguns sectores dos Parlamentos que deviam ter como estrela polar a prioridade da pessoa humana com o propósito do bem comum e do respeito dos seus direitos a partir dos mais fracos.
Virá um dia - talvez esteja à porta - em que, como está já a acontecer com o esclavagismo e as discriminações raciais, uma consciência histórica lúcida, que a democracia autêntica deve fazer amadurecer, fará emergir sentimentos de vergonha pelos crimes cometidos contra a vida humana nascente. Então, multiplicar-se-ão conversões aos direitos dos nascituros, que afortunadamente já agora se estão a multiplicar.

Cardeal ALFONSO LÓPEZ TRUJILLO
Presidente do Conselho Pontifício para a Família

(©L'Osservatore Romano - 6 Julho 2002)



voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia