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A eclesiologia do Concílio Vaticano II
2002-06-12 23:55:04

A constituição conciliar Lumen Gentium (LG ) representa, no campo da eclesiologia, uma autêntica “revolução copernicana”; um dos padres conciliares, entre outros pontos, descreve-a assim: “ontem, a teologia afirmava o valor da hierarquia; hoje, descobre o povo de Deus”.

Antes era dominante o modelo de Igreja como sociedade perfeita; agora um novo clima espiritual pelos movimentos de renovação litúrgica, bíblica e ecuménica fazem emergir um novo modelo que responde à questão: “Igreja, que dizes de ti mesma?”.

À imagem do concílio de Jerusalém pelo “Espírito Santo e nós”, surge um novo modo de a Igreja compreender-se, a primeira grande síntese eclesial: uma nova imagem e uma nova consciência eclesial.
O concílio responde à questão não com uma definição, mas com uma pluralidade de imagens de Igreja, complementares(LG 6), que na “inadequação radical” da linguagem, servem para dizer o “mistério” da Igreja. Esta existe em formas históricas, suas expressões parciais, que, numa dialéctica de complementaridade, se abrem para outras formulações do mistério, “realidade cheia da presença divina e sempre capaz de novas investigações”(Paulo VI). Ela apresenta uma dualidade de aspectos aparentemente antagónicos, “o aspecto institucional e o aspecto do Corpo Místico”, ou de paradoxos (Igreja de Deus e Igreja dos homens, visível e invisível, terrestre e escatológica), a considerar “não como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino” (LG 8).

A palavra “mistério”, para descrever a Igreja, oferece uma visão de equilíbrio entre o aspecto visível e invisível desta realidade complexa que é mistério e sinal, vida misteriosa e manifestação da mesma.
As imagens (pluralidade) da Igreja, inadequadas e complementares, inserem-se, a seu modo, no campo do debate científico e cultural. Tal como na mudança de paradigma nas revoluções científicas, as imagens ou modelos de Igreja aparecem após o domínio de uma única forma de pensar. O novo modelo procura responder às questões, acolhendo os êxitos dos anteriores, numa continuidade fundamental e não em ruptura absoluta, e apresentando-se não como único, definitivo, mas como caminho de aproximação à realidade ilimitada.

A redescoberta da Igreja como mistério é uma novidade profundamente tradicional, que se baseia no seu ser, como continuação do mistério de Cristo na história da salvação: é um regresso às origens e abertura às promessas, num equilíbrio instável entre fidelidade à tradição e abertura a questões novas, entre conservar e renovar.

O conteúdo da Lumen Gentium mostra a arquitectura que o mantém. Em primeiro lugar, a constituição está delimitada entre o que se refere à origem e ao fim da Igreja: o mistério da vida trinitária. Da vontade de Deus Pai “ de elevar os homens à participação da vida divina” (LG 2), surge um “povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4) em peregrinação “até que todos os povos tanto os que ostentam o nome cristão, como os que ainda ignoram o Salvador, se reúnam felizmente, em paz e harmonia, no único Povo de Deus, para glória da Santíssima e indivisa Trindade” (LG 69).

O plano de Deus inscreve-se na história, em que Deus se revela, num povo. Este povo não é um corpo uniforme; tem os ministérios ao serviço do bem de todo o corpo eclesial (LG 18). Os leigos são indispensáveis ao serviço da obra comum (LG 30); é um povo corresponsabilizado. Todo o povo é chamado à santidade, em que “o estado constituído pela profissão dos conselhos evangélicos...., está inabalavelmente unido à vida e santidade da Igreja” (LG 44).

Em segundo lugar, segundo a ordem dos capítulos, os dois primeiros apresentam o ensino sobre o mistério da Igreja; enquanto o primeiro considera o corpo eclesial a partir do mistério trinitário, o segundo apresenta o seu desenvolvimento histórico. O terceiro e quarto descrevem a estrutura orgânica da Igreja em que todos os baptizados têm a mesma vocação fundamental e são associados à mesma missão; entre pastores e fiéis há uma “comunidade de relações”. O quinto e sexto capítulos tratam da missão essencial da Igreja, a santificação; no interior desta vocação comum a todos os membros da Igreja, situa-se a vida consagrada. O sétimo descreve o desenvolvimento escatológico da Igreja e o oitavo apresenta Maria “no mistério de Cristo e da Igreja”; situa Maria na caminhada escatológica da Igreja, ela que “é imagem e início da Igreja, que se há-de consumar no século futuro” (LG 68).


Em terceiro lugar, a ordem dos três primeiros capítulos (mistério da Igreja, povo de Deus e instituição hierárquica da Igreja e especialmente o episcopado) mostra a “mudança copernicana” do Concílio. O conceito povo de Deus, após o mistério da Igreja, indica que o povo de Deus não surge por iniciativa dos homens mas do plano de Deus Pai. O povo de Deus, antes constituição hierárquica da Igreja e dos leigos, mostra que a comunidade eclesial e a vocação comum são prioritários face à diversidade de ministérios e vocações; a realidade primeira é o “nós eclesial” em que a unidade precede a diferença. A constituição hierárquica, após o povo de Deus, mostra que os ministérios estão ao serviço do corpo eclesial como mistério, a partir de Cristo. Revelam uma dinâmica que vai do primeiro capítulo ao segundo, do segundo ao terceiro; mas o terceiro(ministérios) leva o segundo (povo de Deus) ao primeiro (mistério) como à sua fonte.

A mudança de imagem da Igreja de sociedade para mistério conduz à sua sacramentalidade como expressão da realidade complexa, constituída pelo elemento humano e divino. Ela é, como sacramento, “sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG 1) e como seu sinal escatológico “germe e início do Reino” (LG 5). O sinal dá-se na comunhão interpessoal dos homens entre si, visível, que tem a sua origem em Deus, invisível, que é resposta às aspirações do homem. A LG fala de pessoas divinas e pessoas humanas participantes da unidade da Trindade. A Igreja é ensaio, aprendizagem para a comunhão que Deus é e oferece, e para quem todos os homens peregrinam. A comunhão, de que a Igreja é sinal, está sempre para além da imagem que ela dá ao mundo, mas nela se participa na comunhão com Deus. Pertence à Igreja a tensão, escatológica, a conversão permanente, que a faz peregrinar sempre à procura de si, do mistério que lhe está na origem; nesta condição peregrina caminha com os homens, que procuram a Verdade. Então, a questão inicial “Igreja, que dizes de Ti?” pode tornar-se na questão “Igreja, que dizes do homem e ao homem?”.

A Igreja, num processo iniciado pelo Concílio e jamais conclusivo deverá ser, sempre mais, sinal da “união com Deus e da unidade do género humano”. Desta unidade, a Igreja é testemunha, que torna presente (visível) o Ausente (invisível).

M. M. Costa Santos
Professor da Faculdade de Teologia - Braga


Fonte Ecclesia

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